Rodrigo Camargo (CLIPP)

Paidós

A crença no verdadeiro poderia fazer da psicanálise uma religião. O ensino de Lacan vai operar numa outra vertente, radicalmente diferente. A partir dessa outra perspectiva, onde se buscou afastar a psicanálise desse tipo de crença, que entramos na perspectiva do real e não mais do verdadeiro. A aposta lacaniana é que entre a verdade e o real há um impossível.

Aqui no Brasil conhecemos e trabalhamos em torno do livro de Jacques-Alain Miller, Perspectivas sobre o Seminário 23 de Lacan: O sinthoma onde ele mostra que “Lacan tenta pensar a psicanálise a partir do real”.

Na verdade, esse livro como o conhecemos corresponde parcialmente (são suas doze primeiras lições) ao “Curso de Orientação Lacaniana” ministrado por Jacques-Alain Miller na França, entre o final de 2006 e meados de 2007 (dezessete lições no total), posteriormente publicado em espanhol, na íntegra, como El ultimíssimo Lacan.

A partir da experiência psicanalítica, o ensino de Lacan organizou os ditos de uma análise em torno de um dizer, um impossível de dizer. Sobre a verdade do inconsciente revelada por Freud, não se chega nunca a dizê-la toda. Trata-se, porém, de uma sabedoria imbuída nesse nunca, pois dizer toda a verdade é materialmente impossível. É exatamente por esse impossível sobre a verdade que isso tem a ver com o real (Ver Lacan em Televisão).

Dessa maneira Jacques-Alain Miller vai lançar a pergunta que nos guiará em seu curso sobre o último ensino de Lacan: “Será que o inconsciente está do lado da verdade, do verdadeiro, ou do lado do real?”. Sua proposição abre a perspectiva de que o inconsciente é real. Afinal, seria algo muito diferente postular que o inconsciente ressoasse meramente como simbólico.

Lacan escreve “história” (em francês, histoire) com as letras de “histeria” (notem a letra “y” na palavra hystérie), chegando em seu hystoire, mais um dos incontáveis neologismos que ele inventou ao longo de seu ensino. De qualquer forma, teria sido muito mais simples se a tradução em português fosse “hystoria”, com y e sem acento, mas não foi essa a opção que a edição brasileira escolheu.

O que nos importa aqui problematizar, no entanto, é que Lacan operou uma “disjunção capital” entre história e real, pois dessa oposição com o real, a história caiu na condição de um mero fenômeno de interpretação. A hystoria é escrita e grafada assim por Lacan, porque requer uma relação com o Outro, mostrando que ela se faz numa articulação entre S1 e S2, isto é, segundo Miller, a histeria funciona como esse “nome da articulação do um ao Outro”.

Existem vantagens e desvantagens nessa diferença que se nota, em ambas as edições – tanto em espanhol como em português – até então são as únicas a que temos acesso ao importante curso publicado, de Jacques-Alain Miller. Por exemplo, alguns esquemas estão presentes na nossa edição e não estão na Paidós. No entanto, o que interessa aqui destacar são duas passagens do El ultimíssimo Lacan que não estão presentes na edição da Jorge Zahar.

A primeira é um quadro fundamental que aparece na décima terceira aula, exatamente a que vem depois do encerramento do livro em português. As aulas no curso em espanhol estão intituladas e essa se chama, numa livre tradução, Períodos do ensino de Lacan. Temos um quadro muito esclarecedor feito por Miller no final da sua aula do dia 9 de maio de 2007. Vou tentar reproduzi-lo aqui:

  1. Período imaginário > estádio do espelho
  2. Período simbólico
    Estrutura matemática > significante articulado
    Estrutura linguística > metáfora e metonímia; grafo; estrutura significante
    Estrutura lógica > 4 discursos; F(x) φ(x) ꓱx ꓯx
  3. Período topológico > nó borromeano; toro
  4. Período do ultimíssimo Lacan > desestruturação do símbolo; contrapsicanálise; poesia?

Já a segunda passagem é um significante que aponta para um terremoto: temblor, ou seja, o tremor, melhor, o efeito de terremoto no seu próprio ensino. É Lacan contra Lacan – essa é a verdadeira perspectiva do ultimíssimo e derradeiro Lacan. Ali, no desastre configurado do simbólico vai perdurar o novo imaginário do real.

No capítulo IX do Seminário 23, Do inconsciente ao real, Lacan afirma que o real em questão tem valor de trauma. Ele diz:

“Não que eu visasse traumatizar quem quer que fosse, sobretudo meus ouvintes, a quem não tenho razão alguma para querer a ponto de causar um trauma. Digamos que é o forçamento de uma nova escrita, dotada do que é preciso mesmo chamar, por metáfora, de um alcance simbólico, e também é forçamento de um novo tipo de ideia, se assim posso dizer, uma ideia que não floresce espontaneamente apenas devido ao que faz sentido, isto é, ao imaginário”.

Assim, o forçamento dessa nova escrita por Lacan é a escrita do real, isto é, não uma escrita direta, porque depende de um conjunto que ele tratou borromeanamente como fazendo cadeia, pois não faz nó. A escrita do real consiste num ato, naquilo que Lacan nomeou, uma de suas rodinhas de barbante como real.

O real foi a resposta encontrada por Lacan frente à descoberta freudiana do inconsciente.

“É na medida em que Freud fez verdadeiramente uma descoberta – supondo-se que essa descoberta seja verdadeira – que podemos dizer que o real é minha resposta sintomática. Reduzir essa resposta a ser sintomática é também reduzir toda invenção ao sinthoma” (Lacan, op. cit., p. 128).

Enfim, algo novo! Lacan tratou do que considera como o acontecimento Freud. Se o inconsciente é de Freud, o objeto pequeno “a” é de Lacan. No entanto, se o objeto pequeno a provocou um tremor na psicanálise, o ensino de Lacan também sofreu suas consequências a partir dele. Sua escrita, afinal, se torna “insuficiente para capturar àquilo de que se trata no real”, nas palavras de Miller.

Esse foi o questionamento que leva Lacan ao nó borromeano,colocando-o na berlinda de seu ultimíssimo ensino.


Bibliografia
Lacan, J. O Seminário livro 23 – O Sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 128.
Miller, Jacques-Alain. Perspectivas sobre o Seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2009.
Miller, Jacques-Alain. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012.