Durval Mazzei (EBP-SP/ CLIPP)
Há um sentido estrito no termo “política” que se vincula às estruturas decisórias e à orientação organizadora em uma sociedade. Visa o bem comum, a distribuição de recursos, a organização legislativa, judiciária e executiva, a prestação de serviços públicos. Usual é a presença de partidos defensores de modos distintos de exercer tal função, cada um deles orientado por um significante-mestre.
No entanto, há sentido mais amplo, que aproxima a noção da ideia de laço social. Aí estão expressões tais como política de boa vizinhança, política como eufemismo para astúcia, malandragem, política como luta e militância por uma causa. Estes são sentidos que escapam ao senso estrito. Saliente-se que na Política de Aristóteles encontram-se referências à natureza humana, à temperança às paixões e à educação, indicando, desde a Antiguidade, a pluralidade do termo.
Nada estranho, portanto, aplicar o termo para o que se dá entre psicanalistas e suas Escolas, Sociedades, Colégios, Centros, Departamentos e analisantes. Especialmente, o que ocorre no laço com estes últimos que implica em como é dirigido o ato analítico.
Miller (2017) definiu três momentos onde a política entra no jogo.
O primeiro implica as marcas sociais e culturais em torno do exercício do ato analítico e inclui tanto a tomada de posição diante de fatos políticos, como o manifesto contra Le Pen na França – de semelhança clara com o manifesto de analistas tupiniquins contrários à reeleição de Bolsonaro, assim como as críticas de Miller (2017a) ao regime do venezuelano Maduro. Posição que enfileira analistas ao campo democrático, opondo-se ao aviltamento totalitário de qualquer ponto cardeal.
Ora, a presença do analista em cenários não restritos à clínica, permite Laurent (2007) defender a figura do analista cidadão, participante de fóruns sobre a saúde mental – onde o totalitarismo dos protocolos dita ordens – ao contrário do analista somente crítico. A meu ver, entretanto, a função crítica do analista e mais obviamente, do discurso analítico – questionador dos discursos do Mestre, do discurso Universitário, do discurso Histérico e do discurso Capitalista – não deva ser minimizada, como no texto citado. E, apesar da distância deste rol com a clínica, é obrigatório lembrar que Freud (1921-2019) emparelhou a “psicologia individual” à “psicologia social”. E por mais que seja difícil cingir como se dá tal jogo, é interessante a atenção a estas relações.
A presença maciça na clínica dos assim chamados sintomas contemporâneos, entre eles as variadas compulsões descoladas de seu par clássico – as obsessões – se não se vinculam à política no sentido estrito, vinculam-se a novo laço social, onde o objeto vale mais que a identificação, e o sujeito submete-se ao objeto como efeito de uma política de consumo e valorização do ter.
O segundo momento associa-se ao que se dá entre os grupos analíticos e no interior das diversas formas de associação psicanalíticas. A saga de Lacan é francamente marcada por esta inclusão na política, desde a saída da Sociedade Psicanalítica de Paris à dissolução da Escola Freudiana, passando pela excomunhão da Associação Internacional (IPA) e a consequente escrita do Ato de Fundação (1965-2003) e da Proposição de 9 de outubro (1968-2003), visando outro modo de laço entre os analistas que não herde a prática totalitária vigente nas Sociedades da IPA, criticada mais recentemente entre associados (2008). Toda essa história é política e indica uma provável vitória do ensino de Lacan sobre visadas totalitárias, dado que o portador da resolução que retirava do dr. Lacan a condição de analista-didata, mais tarde desfez do valor deste título.
O terceiro deposita o olhar sobre o que pode ser chamado política da cura, ou da clínica. Uma citação na História da Psicanálise, de Reuben Fine (1981), serve como ponto de referência pelo contraponto com o desenrolado até aqui. O citado é Paul Greenacre que recomenda “que o analista evitasse envolver-se em causas sociais ou públicas. Qualquer outra política [que não a clínica] ‘contaminaria’ a transferência (396)”. Fine cita outros autores que não estão em acordo com tal posição julgada “dura demais”, mas considera que a maturação da técnica alcançou o ponto máximo quando “todas as manifestações que podiam ser compreendidas em termos da maneira pela qual as experiências, impulsos, fantasias e conflitos passados eram revividos no curso da análise, e que se relacionam agora com a pessoa do analista em seu conteúdo manifesto ou latente (397)”. Equivale a construir o gabinete analítico em um submarino, descer a dois mil metros para que o frescor da transferência não seja ‘contaminada’ e levante obstáculo à pureza da revelação do inconsciente. Obviamente, um inconsciente sem pulsação e caracterizado por uma lembrança traumática vigorosamente rechaçada e que está lá tão profunda quanto o fundo do oceano. A conceituação de transferência deduzida deste modo de política da cura, ou da clínica, a reunião de afetos e pensamentos na pessoa do analista, é radicalmente distinta da política da cura, ou da clínica, que supõe a presentificação do inconsciente por meio das formações do inconsciente: sonhos, atos falhos, chistes e o insistente sintoma com o qual o analisante tem, deve se haver para viver um tanto mais feliz.
Enfim, esta última colocação, distinguindo os meteóricos chistes, tropeços e sonhos do sintoma-companheirão implica o efeito mais notável da política lacaniana da cura: não há solução possível para o real da divisão do sujeito. A divisão é estruturante, tornando inviável qualquer esperança de totalização do falante, originado da separação e da alienação, e nunca uma suficiência. Apenas tanto mais feliz.
E no campo da política lacaniana no segundo sentido, a concepção acima demonstra que não é possível a formação do analista que não seja consequência da transmissão um a um, fundada na transferência singular ao analista singular e na transferência de trabalho no seio da instituição. E o trabalho clínico cobra um preço: o analista há que pagar com o próprio ser. Isso significa pagar com a condição de cidadão. Não lhe é permitido, desde a posição de objeto a como agente, ir além da causa de desejo, isto é, não há que doutrinar, não há que dominar, não há que ajuizar sobre o certo e o errado. Há que ouvir a abominação e, se não puder, desista ao menos daquele analisante.
Referências:
Fine, R (1981) História da Psicanálise. EDUSP/LTC, Rio de Janeiro.
Freud, S (2019) Psicologia das massas e análise do eu (1921). Coleção L&PM Pocket, Porto Alegre.
Lacan, J (2003) Ato de Fundação (1965). Em Outros Escritos, Jorge Zahar Ed, Rio de Janeiro.
Lacan, J (2003) Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o analista da Escola (1968). Em Outros Escritos, Jorge Zahar Ed, Rio de Janeiro.
Laplanche, J (2008) A análise do analista. Jornal Brasileiro De Psicanálise Vol 41, número 74, p: 11-24.
Laurent, E (2007) O analista cidadão (1996). Em A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Contra Capa Livraria, Rio de Janeiro.
Miller, J-A (2017) Politica Lacaniana (1997-1998). Colección Diva, Buenos Aires.
Miller, J-A (2017a) Conferencia de Madrid. https://wapol.org. Acesso 14/02/2023.