Sonia Perazzolo (CLIPP)
No seminário 20 (capítulo V, item 2) [1] Lacan traz a fórmula: “A realidade é abordada com os aparelhos do gozo. É assim que no ser falante, o gozo é aparelhado”. Com essa fórmula, Lacan diz que esse aparelho de gozo é a linguagem. Nascemos mergulhados na linguagem.
Em seu primeiro ensino, Lacan considera o inconsciente estruturado como a linguagem: desde Freud sabe-se que é através dos chistes, atos falhos e tropeços de fala que o inconsciente se manifesta. Como seria para o analista, para além da interpretação da fala do sujeito, intervir com um ato analítico? E o que seria esse ato?
Em sua clínica, Lacan fez uma subversão no tempo padrão das análises, tal como praticado por Freud. Utilizou também outro marcador para o tempo da sessão analítica, cortando a fala do sujeito em determinado ponto, criando com o corte a noção de ato analítico. O conceito de ato surge quando Lacan se questionava sobre os registros do Real nas suas articulações com o Simbólico e o Imaginário.
Luiz Fernando Carrijo [2],na apresentação do argumento para as “X Jornadas da EBP/SP (2021)” diz que
“Lacan colocará o ato como fator fundamental, tanto na formação do psicanalista quanto na existência própria da psicanálise”, (e que uma das características fundamentais do ato) “só pode ser considerado enquanto tal no ao-depois, ou seja, reconhecido pelos seus efeitos”.
Um caso emblemático, descrito por uma paciente de Lacan chama atenção na questão do ato analítico.
Num trecho do filme “Encontro com Lacan” (2011) dirigido por Gèrard Miller, vê-se a entrevista com Suzzane Hommel que foi paciente de Lacan: nascida em 1938 na Alemanha, conta que sofreu os horrores da Segunda Guerra Mundial e que os anos do pós-guerra foram cheios de angústia, mentiras, fome – o que a fizeram sair da Alemanha. Em meados de 1970 vai para Paris e em 1974, inicia sua análise com Lacan. Ela conta:
“Numa das primeiras sessões perguntei a Lacan: Posso me curar desse sofrimento? E ela mesma responde que, ao dizer isso, eu entendia que não. Eu imaginava que essa dor poderia ser arrancada de mim com a análise. Mas ele (Lacan) me olhava de um jeito que me fazia entender que eu teria que viver com isso. Um dia, numa sessão, contei um sonho: Acordo todas as manhãs às 5h; era às 5h da manhã que a Gestapo invadia a casa dos judeus”.
Lacan então se levantou de um pulo da poltrona e acariciou meu rosto com muita delicadeza. Entendi que ele deu um toque na minha pele”. Nesse momento da entrevista, o entrevistador diz: “Ele transformou ‘Gestapo’ em ‘Geste à peau’ (um gesto na pele em tradução livre).
“Sim. Um gesto delicado, muito delicado. Essa surpresa não diminuiu meu sofrimento, mas o modificou. A prova é que 40 anos depois eu conto essa história e ainda sinto esse toque no rosto. Foi um gesto que fez, um apelo à humanidade, algo assim”.
Lacan fez um ato analítico através de um gesto. A sessão não foi cortada com uma fala, mas com um gesto corporal que funcionou como um ato analítico – como um ato de amor.
Gabriel Racki [3] na apresentação do argumento para o X Enapol “Novos poros do amor” pergunta por onde é possível entrar no sujeito? Falando numa linguagem corporal, por onde entra a palavra de amor? Como corte, como separação do gozo que dará lugar ao desejo? Pode ser pelos poros da pele? Argumenta que nenhum dos discursos conhecidos precisa do amor para “funcionar”, mas o discurso analítico, este sim.
Seria um ato analítico pela palavra ou por um gesto, também um ato de amor? Quando um ato analítico desloca o sujeito do seu ponto de fixação, causa uma interpretação feita pelo próprio sujeito que mudará o sentido, o significado do seu sofrimento.
Foi o que aconteceu no belíssimo exemplo neste caso de Lacan. Um ato analítico que interrompeu, cortou um gozo, um efeito de acontecimento causado pela civilização: a guerra, onde esse sujeito estava enredado.
Um gesto, como diz a protagonista do caso, “que não diminuiu meu sofrimento, mas o modificou”. Pode ser que ela continue acordando às 5h da manhã, mas não se lembrará dos soldados, mas do gesto de Lacan, “geste à peau”, tocando seu rosto.
*Cartel: Leitura do Seminário 20 (Apresentado nas Jornadas de Cartéis EBP/SP – 2021).