Durval Mazzei Nogueira Filho (CLIPP)
dr.durval@uol.com.br

A expressão “sexo químico” ou sua contração anglófona chemsex, de chemical sex, é definido como a voluntária ingestão de certas drogas psicoativas ou não no contexto de festas sexuais ou relações sexuais com a intenção de facilitar ou aumentar a sensação de prazer no encontro sexual (Giorgetti e cols (2017), McCall e cols (2015), Sousa e cols (2023), Sousa e cols (2020)).

Segundo os pesquisadores, tal prática é notavelmente mais frequente nos encontros sexuais entre homens. Seja no contexto um por um, seja nas “Party’s Play” (“Festas Divertidas”) ou nas “High and Horny” (“Altos e Tesudos”).

Várias drogas podem servir de comburente, partindo do princípio que o combustível é o corpo dos participantes, do encontro ou das festas sexuais. Entre elas os prosaicos álcool e maconha, mas, mais caracteristicamente, drogas como o GHB (ácido Gama-HidroxiButírico), a mefedrona, a metanfetamina, os fármacos para disfunção eréctil (tadalafina, sildenafila) e os nitritos de alquila (poppers). O GHB é apresentado sob a forma de um pó de cor branca cristalina usado por via oral ou intravenosa ou dissolvido em água. Tem algumas designações populares como Ecstasy Líquido, Grande Hormônio para a Cama e etc. A mefedrona é apresentada sob a forma de tabletes ou em pó e é usada via oral, intravenoso, retal, fumado ou insuflado. Tem também nomes populares como “Gato”, “Miau, miau” ou é uma das “balas”. As metanfetaminas são apresentadas sob a forma de cristais ou tabletes, sendo usado aspirado, fumado ou intravenoso. O nome popular mais comum é Cristal ou Cristal meth ou “bala”. As medicações para disfunção erétil (Cialis, Viagra) são usadas por via oral ou sublingual e o Viagra (sildenafila) é a famosa “pílula azul”. Os nitritos de alquila (poppers) são usados por inalação e reúnem uma classe de vários nitritos (Amil, Butil, Isobutil, Isopropil). Dessas drogas, as para disfunção eréctil não têm um efeito psicoativo direto, mas, dado o efeito regular de favorecer a ereção, tendem a incrementar a autoconfiança do ser em questão. Também não têm um efeito psicoativo direto os poppers, à exceção de efeitos colaterais desagradáveis como tontura, vertigem, cefaleia, vômitos. A função deste grupo de substâncias é, preponderantemente, o relaxamento da musculatura lisa da garganta e do ânus, facilitando a penetração e a prática do “fist sex”.

O GHB apresenta um efeito similar ao álcool e, tal como este, inicia com um efeito estimulante e com o passar do tempo, as características sedativas ocupam o espaço subjetivo. O efeito estimulante permite uma vivência de aumento da energia psíquica ao lado do incremento da libido, além de facilitar o relaxamento muscular e a autoconfiança.

A mefedrona tem as características dos psicoestimulantes, inibindo a recaptação de dopamina e produzindo efeitos similares aos das metanfetaminas, tais como efeitos de euforia, sensação de maior empatia, favorecendo a falação e a certeza subjetiva de que agrada e é agradado.

As metanfetaminas também compartilham efeitos psicoestimulantes e apresentam à subjetividade sensação de euforia, de empatia e propriedades alucinogênicas menos intensas que os verdadeiros alucinógenos (LSD, psilocibina, mescalina), além da suposição de que agrada e é agradado pelo outro.

Os interesses no uso destas drogas são múltiplos: podem ser usadas solo ou em combinação (mais comum). Visam a favorecer o encontro sexual, combater o efeito redutor de libido dos antirretrovirais e de antidepressivos, driblar a inibição e, claramente, elevar o imaginário sedutor transformando sapos em príncipes.

Apesar deste fenômeno caracterizar-se como contemporâneo, a associação de substâncias e sexo remonta à antiguidade. Há referência aos cultos gregos de mistério (Burkert, 1991). O vinho, o soma hindu, os cogumelos são referidos como participantes da cena sexual. Outras substâncias mais inocentes foram relatadas como afrodisíacas: o mel, o chocolate, ostras, alho, chifre de rinoceronte, ninho de andorinha, noz moscada e outros, ao lado do inseto cantárida (Lytta vesicatoria) citado pelo famoso marquês. Não é para deixar de fora que o campo místico e/ou mágico é repleto de referências unindo mística e sexualidade que remontam a culturas milenares como a chinesa, a árabe e a hindu, sem deixar de lado a referência às “bruxas” perseguidas pela Inquisição. Diz Finné:

preparações de afrodisíacos, encantamentos de amor e ou ódio, homenagem ao diabo, uniões carnais com demônios… bacanais que os autores sensacionalistas descrevem com uma lubricidade que alcança ou sobrepuja a dos participantes, são tantas as manifestações apaixonadas, que fundem feitiçaria, magia e amor carnal (1973, p.15).

Chama a atenção, do mesmo modo, a relação de certas personalidades católicas e seu modo de gozar com a presença divina como São João da Cruz, Santa Teresa d’Ávila ou Hadewijch de Antuérpia – o que tão somente revela a questão sexual mais ampla do primata falante, do ser apartado da instintividade básica e natural, por assim dizer. E que trouxe ao mundo um modo não programado de laço sexual.

A cena contemporânea exibe uma história também múltipla. Desde a contracultura dos anos 60, maconha e LSD associavam-se à prática sexual, salienta-se, sem a quase institucionalização do momento atual. As festas raves e os psychedelics warriors dos anos 80 em que a frenética música Techno estimulava dançarinos e dançarinas a dançar ininterruptamente sob o efeito de cocaína, quetamina (essa mesma, da terapêutica contemporânea antidepressiva), o LSD e o Ecstasy (metanfetamina), citada anteriormente. Nada impossível que o frenesi bailante transformasse em encontros sexuais meteóricos hétero ou homo ou pluri.

No entanto, a marca contemporânea é datada nos estertores do século XX e o alvorecer do XXI, a partir de festas gays na Grã-Bretanha e daí para o mundo, um pulinho. Estas festas deram consistência à vinculação drogas e sexo. Caracterizando uma busca voluntária nas quais os riscos que o dispositivo médico aponta tais como a disseminação de infecções sexualmente transmissíveis (HIV, Sífilis, Blenorragia, Herpes, Monkeypox), a laceração peniana, as lesões anais e os acidentes com as drogas usualmente presentes nas “parties plays”, não servem como alerta. Lembra a passagem de Kant, na Crítica da Razão Prática (1788/2017), que guardava a esperança que alguém inclinado à luxúria, controlaria a inclinação se, à saída do encontro sexual, o aguardasse uma forca. Parece que a humanidade não tem sido lá muito kantiana.

Arriscando um comentário – é possível supor ausência de homogeneidade entre os que buscam tais encontros sexuais regados a drogas. Desde homens tímidos, homens assumidamente devassos, homens com obstáculos a desenrolar laços pessoais, casais de relação aberta em busca de mais aventura. E mesmo mulheres, mais comum em encontros um a um, interessadas no relaxamento anal ou casais hétero ou homo que perderam a graça e ousam apimentar o laço com adereços químicos além dos habituais dispositivos de sex shop. E é claro, pessoas que dependem de drogas para fazer qualquer coisa, incluindo o sexo. Ora, uma série de antinomias podem participar da questão: liberdade sexual ou contenção, liberdade sexual e adicção a drogas e, especialmente, a antinomia prazer/mal.

Então: o que acontece com o sexo? Não é em somente uma narrativa que a prática sexual exibe um caráter de absoluto. Absoluto prazer. Um encontro que faz ver estrelas, um encontro onde o fascínio é mágico, um encontro inesquecível. E, claro, muitos podem ter vivido situações sexuais exatamente deste modo.

Mas, fodeu ou fudeu (como queiram). Este termo da linguagem prosaica, comum, cotidiana traz seja no sentido literal, denotativo, seja no sentido subjetivo, interpretativo ou figurado, conotativo, o avesso do absoluto prazer. Chega perto do absoluto fracasso. E o termo esparrama-se por qualquer atividade dos seres sexuais. Do emprego perdido à partida de futebol que resultou em derrota ou a perda de alguém muito querido. O que não impede que essa mesma linguagem prosaica, cotidiana, possa construir promessas (“hoje vai ser a melhor foda da vida”) ou triunfos (“ontem dei a maior foda da vida”). Impossível não perguntar como é que é isso? Ou “Che vuoi?”. O termo que descreve o encontro sexual dançar entre sentidos tão antinômicos, revelando proposições igualmente críveis, coerentes e possíveis. Da celebração ao desencanto.

No entanto, o tema aqui em questão, o chemsex, é um ápice do que escapa à marca heteronormativa tida como a que mais se aproxima à norma natural pois conecta o sexo à procriação e que foi elevada à marca da cultura ocidental exibindo caráter menos pecaminoso desde que ungida por um sacramento. Uma charge ilustrativa é o encontro de dois unicórnios na arca de Noé que se apresentam como João e Joaquim e, incontinenti, deduzimos a razão de tornarem-se seres mitológicos e que não estão na natureza como os ornitorrincos, bichos menos prováveis que equinos com chifre.

Sabemos que no início das proposições freudianas – os Três ensaios (1973/1905) – a primeira das “Aberrações Sexuais” são os desvios relacionados ao objeto sexual. Freud classifica-os em invertidos absolutos (o objeto sexual tem que ser do mesmo sexo), os invertidos anfígenos (o bissexual) e os ocasionais (quando a ausência do objeto sexual normal – hétero – qualquer outro serve). O princípio lógico do pensamento freudiano é que há um objeto sexual normal e que alguns sujeitos escapam a esta norma. São os aberrantes. Apesar do sentido conotativo do termo levar a definir Freud como um terrível sexista, patriarcal, cisheteronormativo, há algum exagero nesta discriminação, pois, no mesmo texto o próprio reconhece que para muitos “a inversão é algo tão natural como a orientação heterossexual da libido (p.1173)”. Aí está um sujeito buscando pensar a sexualidade e não um moralista judaico-cristão, apesar de envolvido na moral sexual de seu tempo. Diz Roudinesco

não foi nem o sexo, nem as performances sexuais, nem seus desvios que Freud privilegiou, e sim a ideia de que o conflito sexual e sua representação seriam a própria essência da atividade humana. [o discurso analítico] pensa essa atividade de um ponto de vista… clínico: amor, desejo, Eros, libido, bissexualidade, homossexualidade, sexualidade masculina ou feminina, psique, pulsão… ele se afasta de uma abordagem puramente anatômica, genital ou biológica da sexualidade – e logo da sexologia (2019, p.308).

O que não impediu de, no correr da psicanálise, alguns psicanalistas terem advogado posições conservadoras, no sentido da heterossexualidade consistir em norma e meta analítica. Mas houve também o contrário disso, apesar da normatividade ainda operar. A referência é àqueles que interpretavam que qualquer tropeço no laço heterossexual implicaria que a verdade daquele sujeito estaria na impossibilidade neurótica de viver a experiência realmente verdadeira: um objeto do mesmo sexo. O equívoco destes repousa na assunção de que a naturalidade do sexo deveria tornar o encontro homem/mulher tão harmônico como a chave e a fechadura. O que é falacioso, dado que o discurso analítico não assume a imanência sexual. A posição sexual é construída na saga do pequeno infante, do bolo de carne ao corpo falante, saga que Freud nomeou complexo de Édipo, centrado na diferença sexual e na castração. Assim, não há uma substância masculina e outra feminina na interioridade dos seres. Como escreve André

não há sexualidade natural ou contranatural. A sexualidade humana é desnaturalizada… Desnaturalizada não quer dizer desregulada, e sim que o instinto já não controla mais, cabendo então à instituição, ao socius, fazê-lo. Não há sociedade que não trace linhas de demarcação entre o obrigado, o permitido e o proibido (2019, p.30).

Posto isso, vem a pergunta “Che vuoi?” aos praticantes do chemsex. O escrito acima implica no questionamento do que querem os praticantes desta modalidade sexual. O foder em seu sentido de plenitude e harmonia? O encontro de uma experiência que traria a marca da relação sexual efetivamente acontecida? E, notavelmente, pois, de acordo com os estudiosos do tema, não é uma prática generalizada, mas caracteriza os HSH (homens que fazem sexo com homens). Para apimentar a discussão, não há estudo psicanalítico que não oponha sexo e drogas. Miller (1995) discute, nesse escrito, mais de uma vez a questão sobre sexo e drogas. Diz: “não podemos dizer, em efeito, que o recurso à substância tóxica é precisamente utilizado para fechar ao sujeito o acesso ao problema sexual?” (p.14) […] e insiste

desde o ponto de vista psicanalítico, não diríamos que a droga transforma-se no verdadeiro partenaire essencial… [na verdade], um partenaire que permite fazer um impasse com respeito ao Outro e particularmente com respeito ao Outro sexual? (p.17)

e termina com uma afirmação: “a toxicomania é menos uma solução ao problema sexual que a fuga do fato de colocar-se [cada sujeito] esse problema” (p.19).

Beneti e organizadores (2008) dizem

a toxicomania parece resistir à fórmula lacaniana segundo a qual o objeto encontra-se para sempre perdido, uma vez que a cristalização do objeto droga anula a circulação do desejo (p.147).

Tais comentários são válidos mesmo que, como indicado acima, pressupõem-se a não homogeneidade dos praticantes. Certamente, alguns cabem na noção “toxicômano” outros não. No entanto, se consideramos que a experiência da droga é uma experiência global, a saber, uma experiência de sensibilidade, de pensamento, de corpo, de emoção, de prazer, de dor em curto-circuito entre objeto e sujeito (a→$), que torna sem resposta o impasse diante do Outro sexual, mesmo o uso pontual, para foder, entra na mesma categoria. Pois é bastante difícil colocar em palavras se o êxtase advindo desse encontro droga-corpo próprio-corpo do outro advém da somatória ou da droga enquanto tal. O que é possível supor é que, se os corpos bastassem, o comburente seria desnecessário. A combustão implicaria tão somente o fascínio pelo outro, pelo olhar, pelo toque, pela voz do outro sobre o si mesmo. Há algo obrigatório na cena que faz com que a fantasia ($◊a) pareça insuficiente e desnecessária e o curto-circuito impere (a→$).

O que acontece, então, com o sexo? O cinema, com alguma frequência, demonstra que o sexo pleno, de satisfação plena, é claramente viável. 91/2 semanas de amor, de 1986, dirigido por Adrian Lyne, com Mickey Rourke e Kim Bassinger é um exemplo. O recente premiado pelo Oscar, Anora, de Sean Baker, com Mickey Madison e Yura Borisov, é outro. A série de filmes pornô, hétero ou homo, exploram a mesma possibilidade: plenitude. Há pesquisadores que salientam a naturalidade do sexo, a naturalidade do prazer sexual, e que seria logicamente possível se não fossem certas injunções culturais que atrapalham o desenrolar sexual espontâneo e são peças soltas que podem ser, com a terapêutica correta, extirpadas e o segredo do prazer é revelado. Dizem Masters e Johnson

as ortodoxias religiosas sempre presentes, intolerâncias sociais e ignorância em assuntos sexuais de parte dos mentores da saúde contribuíram imensamente para a nossa falta de compreensão do impulso sexual como processo natural, comparável com outras funções naturais como a respiratória, intestinal ou hepática (1977, p.14).

Os autores afirmam, portanto que desfazendo-se destas peças soltas, destes penduricalhos culturais, o sexo pleno, despido de preconceitos e crenças errôneas, é possível. E sem drogas. Os tropeções são resultantes do que pode ser retirado com a tranquilidade de uma cirurgia psíquica, sem cortes ou derramar sangue e são mais resultado de disfunção (em homens, ejaculação precoce, ausência de ejaculação, impotência primária e secundária; em mulheres, disfunção orgásmica primária e contingente, vaginismo e dispareunia) do que um fenômeno intrínseco à desnaturalização sexual. Béjin (1983a) comenta que esta perspectiva é a que ocupa a cena ao escrever que

é precisamente por terem podido e sabido aguentar o confronto com os psicanalistas, no terreno terapêutico, que os sexólogos estão em vias de conquistar uma vantagem decisiva. Esta vantagem… procede de uma dupla legitimação, também ela favorecida por uma erosão da credibilidade da psicanálise: legitimação pelo sucesso terapêutico, para começar, mas legitimação pela referência a um ‘corpus’ de enunciados científicos experimentais (p.210).

Um detalhe interessante é que este mesmo autor, não obstante o cientificismo que o anima, escreve também, sobre a parceria sexual, que

o coito não é […] uma ‘comunhão’, mas uma série de atos de ‘comunicação’ entre duas quase-mônadas, atos conducentes a dois prazeres solitários. Não se trata de um egoísmo ou de um narcisismo a dois, mas da conjunção de dois egoísmos num acme. O ‘partner’, no amor… não é mais do que um catalizador dum avatar da masturbação (Béjin, 1983b p.245).

Se ele fosse um pouco além de Freud e Reich, dois autores que cita, ele encontraria o Há-Um de Lacan e a ausência de matéria masculina e feminina no primata falante. Lacan, no seminário 19 (2012:1971-72), declara-se o fundador da “henologia (p.147)

a ciência do Um em oposição ou complementação à ontologia. Chega a esse neologismo depois de discutir intensamente esse Há-Um como um símbolo que substitui um conjunto vazio definindo que “o ser falante é alguma coisa, talvez sim… Acontece que esse ser é inapreensível. E é ainda mais inapreensível por ser forçado a passar pelo símbolo para se sustentar (p.103).

Modo lacaniano de afirmar a inevitabilidade do mal-estar na cultura, pois há um corpo e um além do corpo, o símbolo e o Outro, em qualquer época a criar um impasse a dois seres fazerem um. A argumentação de Lacan é centrada nas fórmulas da sexuação e do ganho teórico e clínico que é, pensar as artimanhas do sexo além da diferença anatômica, o que coloca alguma luz de que, mesmo entre HSH, ambos munidos do complemento fálico real, a satisfação não está ao alcance de modo direto. Como fica claro, é proposto algo além de um complexo entrelaçamento de processos biológicos, sociais e psicológicos aos quais Lacan opõe as fórmulas lógicas da sexuação, como escreve Zizek (2024) e complementa que

Lacan não está falando sobre biologia, mas sobre a diferença sexual como o fato de nosso universo simbólico: a ligação entre os paradoxos simbólicos apresentados pelas fórmulas da sexuação e a biologia do sexo é, obviamente, contingente e externa – elas registram o impasse que um ser-de-linguagem encontra quando tenta simbolizar sua sexualidade (p.136).

Sejam os parceiros do mesmo sexo, de sexos distintos aos pares ou em grupo.

Para encaminhar uma conclusão nada melhor que recorrer à mitologia, a história que Aristófanes conta sobre os andróginos n’O Banquete (S/D: 3085 AC). O primeiro ponto é que não existia apenas o ser esférico com dois sexos e dois pares de pernas e de braços. Estavam lá também homens e mulheres observando a empáfia dos seres completos enquanto chafurdiavam na lama da incompletude. A empáfia dos andróginos levou-os a desafiarem Zeus e invadir o Olimpo. Foram derrotados e punidos. Diz Zeus

acho que descobri um jeito de existir a Humanidade, mas deixar de insubordinações: enfraquecê-la. Por ora vou cortar cada um deles em dois; serão ao mesmo tempo, mais fracos e mais proveitosos para nós, por aumentarem o número… Dito isso, fendeu os homens em dois… de cada um dos que fendia, mandava Apolo virar a cara e a metade do pescoço para o lado do corte, para que o homem contemplando seu talho, tivesse melhor comportamento; quanto ao resto mandava-o medicar (p.60).

Um comentário: o detalhe de Zeus, o grande patriarca do Olimpo, mostrar ele mesmo, sua falta ao considerar que ele precisa da devoção e do amor da Humanidade, ao glorificar o dobro do número de fiéis: o significante da falta do Outro.

O mais interessante é que um ente olimpiano vem oferecer ajuda aos recém divididos. É Hefestos, deus do fogo e da metalurgia, hábil ferreiro e produtor de objetos. Hefestos dirige-se aos novos homens e mulheres e pergunta: “Homens, que é o que desejais um do outro?… o que desejais não é unir-vos um com o outro o mais possível, de modo que não vos aparteis um do outro noite e dia? (p 62)”. E oferece uma saída para eles. Não oferece exatamente um instrumento, mas derrete-los juntos e formar uma liga, de maneira que, os dois fiquem um: amalgamados.

Interessante é que uma metáfora similar Bataille (1957:1987) usa para associar ao erotismo. Escreve

toda a concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta. A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua (p.17).

O dissolver de Bataille e o derreter de Hefesto participam do mesmo rol de significação. E faz a referência à nostalgia aristofânica, com escusas quanto ao neologismo, ao comentar que “somos seres descontínuos, indivíduos que morrem numa aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida (p.15)”.

A fala de Hefestos aos homens inclui, claramente, que ambos deverão desaparecer, se desejarem verdadeiramente, tal reunião. Outra antinomia às relatadas acima: sacrifico o um para a inexistência, isto é, Há-Um ou vazio. Aristófanes é ambíguo em relatar se alguém topou a oferta de Hefestos.

O que torna razoável é supor que a tecnociência fez o papel de Hefestos: produziu objetos para que esse sonho de dissolução passasse ao ato – entre eles, as drogas. Ninguém mais corre o risco de derretimento para viver a ilusão de fazer Um com o outro, pois depois da experiência com a droga, carente de produção de saber como Lacan comenta na “Subversão do Sujeito” (1960:1998), volta à cena o Um do sujeito. Burroughs faz eco em “Junky” (1953:1977) a experiência de morte da heroína é invariavelmente seguida de ressurreição – relato de um homem que viveu até os 83 anos.

Trata-se, então, de notar que o correr do espírito do tempo contemporâneo permite que, não obstando o fracasso que tende à repetição, a ilusão do Um indivisível – quando o laço erótico assoma, é consistente com a busca que o encontro sexual promete. E os instrumentos que derretem ou dissolvem parecem meios eficientes de fazer crer, mas constituindo um modo de existir de tal forma que, o impasse diante do Outro sexual, do mesmo sexo ou de outro sexo, permanece claramente oculto e transferido para o próximo encontro… E assim sucessivamente…

quase todas as nossas aflições advêm de não termos sabido ficar no nosso quarto… na cela do recolhimento, a todos esses alterados que procuram a felicidade no movimento e em uma prostituição que eu poderia chamar de fraternal, se quisesse falar a bela língua de meu século (Baudelaire, 1869:2016).

A bela língua de dois séculos atrás, demonstrando que o primata falante, o falasser, está aí há muito tempo.


 

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