Fonte: Lucio Fontana umbigomagazine.com/Eliane Costa Dias[i] (EBP/AMP/CLIPP)

O ser falante é essa relação perturbada com o próprio corpo que se chama gozo.”[ii]

“Há-um” é um aforismo que Lacan apresenta em seu Seminário de 1971-1972 “… ou pior” como uma afirmação jaculatória que segue de perto aquele outro aforismo, mais conhecido, “Não existe relação sexual”. Ponto de partida para o seu último ensino, Lacan nos apresenta, neste seminário, o falasser imerso na solidão do seu gozo (autoerótico) e às voltas com a impossibilidade de obter harmonia entre os sexos. Ávido em preencher, por meio da linguagem, esta hiância da não existência da relação sexual, o falasser faz do seu corpo a base para os mais diversos modos de gozo e de discursos que reiteradamente levam ao pior. Como circunscrever o real aí entalhado? Como o discurso psicanalítico intervém?

Para o biênio 2024-25, o Núcleo de pesquisa: Psicanálise e Medicina da CLIPP, sob coordenação de Niraldo de Oliveira Santos e Eliane Costa Dias, propôs como programa de trabalho percorrer o Seminário 19, buscando acompanhar o avanço epistêmico que ele imprime ao ensino de Lacan e extrair elementos que permitam pensar a atualidade da clínica psicanalítica.

Destaco alguns pontos do caminho já percorrido.

1. A posição do Seminário 19 no ensino de Lacan.

Na conferência Habeas Corpus (2018), Miller[iii] localiza no Seminário 20: mais ainda, o ponto de “reviramento” no ensino de Lacan, o ponto de “viragem” para seu último ensino. Penso que esse ponto de virada fundamental se dá na passagem do Seminário 19: … ou pior para o Seminário 20: mais ainda.

No Seminário 19: … ou pior (1971-72/2012), Lacan afirma o caráter primário e constituinte do gozo – Há o gozo! E o gozo está fora do Simbólico, está no campo do Um – Há gozo! Há Um!

Mais que isso: Lacan afirma a diferença radical entre o campo do gozo e o campo do significante. Não há relação de complementariedade entre o campo do Um (do gozo, do pulsional) e o campo do Outro (do significante, das significações, da linguagem). Essa impossibilidade estrutural de completude e de complementariedade Lacan formulou com seu famoso aforismo – Não há relação sexual!

Como nos diz Marcus André Vieira[iv], o Seminário 19 é um verdadeiro “canteiro de obras” para o último ensino de Lacan. Esse seminário possibilitou uma verdadeira reviravolta epistêmica em seu ensino, abrindo os caminhos para a afirmação da antinomia radical entre o gozo e o campo do Outro. O aforismo Há-Um leva a um outro Lacan que nos situa na clínica do real, do gozo, do sinthoma.

Podemos dizer que o tema central desse Seminário é a busca por uma forma de dizer o impossível de nomear – o gozo, o UM. Há-um fala da marca deixada pelo encontro do significante com o corpo vivo, e de como esse encontro contingente produz gozo e sinthoma, produz um acontecimento de gozo que toma o corpo, itera no sinthoma e leva à repetição no sintoma.

Um segundo grande tema do Seminário 19 é a sexuação. Em seu último ensino, Lacan busca vias para abordar a sexuação do ser falante, ou seja, a relação possível com o gozo estranho que lhe habita o corpo (uma vez que não existe a relação sexual). Uma via para abordar o sexual para além do que o drama edípico formulado por Freud permitiu.

2. …ou pior.

Lacan inicia Seminário 19 justificando a escolha do seu título “… ou pior”; nos diz que a palavra “pior” neste enunciado não é um substantivo (o pior), mas um advérbio de modo e os três pontos marcam um lugar vazio. “Meu título enfatiza a importância desse lugar vazio, e demonstra igualmente que essa é a única maneira de dizer alguma coisa com a ajuda da linguagem.” (p.11).

Lacan enfatiza o lugar do vazio “naquilo de que se trata”. Na medida em que não existe metalinguagem, a linguagem se organiza a partir de um vazio nela mesma – “não há Outro do Outro”, não há um sentido último, não há significante capaz de apreender o real.

Segundo Lacan, o que ocupa esse lugar vazio é um verbo: dizer. Não se trata de dizer coisas, mas de “um dizer”, que remete à premissa “Não existe relação sexual”. Assim, todo discurso comporta um furo, um ponto de real que o perpassa. A linguagem funciona como uma via de fazer suplência ao furo, ao traumático que o acontecimento do gozo instaura, inscreve no corpo falante. Ao não consentir com isso, ao tentar preencher (de sentido) o vazio, o falasser só consegue “dizer pior” (p.12).

Em sua visada de cingir o gozo, Lacan retoma o diálogo com a lógica na filosofia, mas, para formalizar algo que não se inscreve na articulação significante da linguagem, ele recorre à lógica e a linguagem da matemática.

Desde a lição I, Lacan deixa claro que está introduzindo “uma nova lógica”. Uma lógica que se ancora e se orienta a partir “daquilo que não é”. (p. 20)

Nas três lições iniciais, Lacan apresenta os termos que toma da lógica aristotélica e que orientarão a construção de sua lógica:

Na lição III, ele articula os termos que toma da lógica com o “vazio”: toda proposição comporta um vazio, o lugar da falta, do buraco, da cavidade oca. Qualquer “x” colocado no lugar deixado vazio numa proposição, entra para lhe dar valor de verdade.

F ( ) F(x)

E esclarece seu propósito: “julguei poder enunciar e escrever, como na matemática, a função que se constitui por existir o gozo chamado gozo sexual, que é propriamente o que constitui um obstáculo à relação sexual. É a função Φx. (…) O que expresso com esta notação, Φx, é o que a relação do significante com o gozo produz.” (p. 31)

A função Φx designa, então, a relação que se estabelece com o gozo. Lacan já havia dito que o x marca um lugar vazio naquilo de que se trata. Na p. 32, ele nos diz que: “Φ significa a função que é chamada de castração”. Ou seja, no campo do Outro, da fala e da linguagem, a relação possível com o gozo se estabelece pela via do binarismo, da oposição falo/castração – o gozo fálico.

Miller, na lição VII do curso O Um sozinho[i], propõe tomar a lógica de Frege para pensar a função – F(x). Numa leitura lacaniana, o real é o “x”, chamado de variável, mas na verdade, o elemento desconhecido, indeterminado, um vazio. “Dizemos que é uma variável não para dizer que varia, mas para dizer que não sabemos se há alguma coisa de real que possa vir substituir o furo” (idem). O x, na verdade, como uma “constante”, que poderia ser substituído pelo significante Uniano – Um-sozinho. Segundo Miller, o “F” corresponde aos predicados, às atribuições em torno do “x”.

Como sugeriu Niraldo de Oliveira Santos, em uma das reuniões do Núcleo, na experiência do falasser, o “F” pode ser o falo imaginário (φ), o falo simbólico (Φ) ou o falo como verificador do furo (descrito por Lacan no Seminário 23).

3. O campo Uniano.

Em vários momentos do Seminário 19, Lacan adverte que o Um que está fora do sentido não é o S1. O S1, enquanto significante mestre, só existe no par S1___S2. “(…) é preciso haver dois para que haja S1. (…) Então, como se faz para ter ideia do real? (…) Como se dá a entrada do Um?”. (p. 74)

Na lição IV, localizamos um passo importante na construção da resposta para essa pergunta. Lacan nos diz que o que existe – incluindo o sintoma, o sujeito, o inconsciente -, só adquire existência a partir de algo que inexiste, que só é existência a partir de um símbolo que a faz inexistente. O símbolo, sim, existe – é um número, o número zero. A anterioridade que dá condição à existência não é o “nada”, mas o “vazio”, o “zero”.

A inexistência não é o nada. É, como acabo de lhes dizer, um número que faz parte da série dos números inteiros. Não há teoria dos números inteiros, se vocês não se derem conta do que vem a ser o zero.” (p. 50)

Na lição VII, Lacan introduz a questão sobre o que há entre o zero e o um – uma hiância. E começa a discutir a diferença entre o ser e a existência. Finaliza a lição afirmando: “(…) fomos levados pelo caminho no qual se deve interrogar severamente a irrupção dessa coisa estranhíssima que é a função do Um”. (p.107)

Lacan assinala que para dar conta disso que está fora da linguagem, mas é condição para tudo que existe, ele vai recorrer à linguagem e à lógica matemática, particularmente à teoria dos conjuntos de Cantor e à teoria dos números de Frege. Não sem passar pelo Um em Platão e Parmênides.

3.1 O passo de Parmênides

Na lição IX[1] Lacan anuncia que passará a tratar do que está fora do campo do Outro, do que não é passível de inscrição – o Um. E nos convoca à leitura de Platão, mais precisamente, do Diálogo de Parmênides. Para alguns estudiosos, Parmênides fundou a metafísica ocidental com sua distinção entre o Ser e o Não-Ser. Enquanto Heráclito ensinava que tudo está em perpétua mutação, Parmênides desenvolvia uma tese antagônica: “Toda a mutação é ilusória”. Em seu pensamento, há uma recusa da sensação como meio de chegar à verdade. Para ele, a sensação é um caminho errado para a investigação, porque gera contradições e confunde o que existe com o que não existe, o ser com o não ser. Muito resumidamente, podemos dizer que a doutrina de Parmênides afirma:

  • A unidade e a imobilidade do Ser: o Ser é, o Ser é Um (uno e imutável).
  • A essência das coisas não muda.
  • Tudo que é não-ser não é. O mundo sensível, portanto, é uma ilusão.

O diálogo de Platão Parmênides (ou das formas), datado provavelmente de 449 a.c., tematiza a unidade do múltiplo, problematizando o enlaçamento entre Ser e Um, pondo em questão a tese original do pensador pré-socrático, de que “o todo é um”. Platão avança ao postular, na dinâmica do diálogo, a existência de um Um para além do ser, para além da ontologia enquanto teoria do ser.

Se com Parmênides “o Ser é Um”, Lacan destaca que há diferença entre a afirmativa “é Um” e a afirmativa “o Um é”. E para abordar o Um que está introduzindo, propõe o termo “campo Uniano” (p.122) e a afirmação jaculatória – Há-um [Yad’lun] (p.123).

Nesse ponto do Seminário 19, vale marcar uma sutileza em relação à tradução. O sintagma “Il y a de l’Un’’ (Yad’lun, na expressão contraída) tem sido traduzido, primordialmente, por “Há Um”, eliminando assim o partitivo, recurso que se emprega em francês diante de um substantivo que designa algo não contável, para indicar que se trata de uma quantidade indefinida desta coisa. É um recurso linguístico que não dispõe de uma correspondência em português, mas que transparece numa frase como “há disso no que ele propõe” ou na famosa sentença hamletiana, “há algo de podre no reino da Dinamarca”. A expressão em português “Há d’Um”, transmite melhor que algo de Um opera, sem o qual não haveria série ou cadeia significante, mas que dela não faz parte.[vi]

Acompanhando Lacan até este ponto do Seminário 19, depreendemos que na experiência do falasser estão em jogo diferentes dimensões do Um:

  • O Um imaginário – da semelhança e da unidade (ilusão do Uno).
  • O Um diferencial do simbólico – S1 – significante mestre que estabelece a diferença e a oposição, ordenando a articulação significante.
  • O Um-sozinho (Há d’Um) do real – significante unário, que não faz par com um S2, que ex-siste fora do Simbólico e do sentido, mas funda o vazio, “a porta de entrada que é designada pela falta, pelo lugar onde se cria um furo” (p. 141)

Seguimos no trabalho de percorrer esse Seminário. Mas sabendo que as importantíssimas elaborações de Lacan que estão pela frente, nos levam a sua inquietante conclusão:

“Já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências, e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele.” (p. 227)


[1] Na sistematização de J-A. Miller para o Seminário 19, a lição IX marca o início de um segundo bloco, que recebeu o título “O Um: que ele não acesse o dois”.
[i] Psicanalista, membro da EBP/AMP, associada fundadora da CLIPP, docente do Curso de Psicanálise e coordenadora do Núcleo de pesquisa: Psicanálise e Medicina.
[ii] LACAN, J. Seminário 19: …ou pior (1971-72). Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 41.
[iii] MILLER, J-A. Habeas Corpus. Scilicet: As psicoses ordinárias e a outras, sob transferência. São Paulo: EBP, 2018, p. 13-20.
[iv] VIEIRA, M. A. Sobre a lógica do tratamento. In: Gorski, G.; Fuentes, M. J. S. (orgs.) Leituras do Seminário …ou pior de Jacques Lacan. Salvador: EBP, 2015, p. 26.
[v] MILLER, J-A. O Um sozinho. Curso da Orientação Lacaniana (2011). Ensino integrante do departamento de psicanálise da universidade Paris VIII. (inédito).
[vi] VIDAL, P. E. V.; BASTOS, A. O passo do Parmênides. Revista Ágora, v. XX, n° 1, jan/abr 2017, p. 9-20.
NOTA: Este texto foi elaborado a partir das discussões empreendidas no Núcleo de Psicanálise e Medicina da CLIPP.