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Estou aguardando, mas não esperando*

Imagem: Instagram @ veronica_zi_art

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Rosa López
Pergunta: O que pensa da desarrumação contraditória que acontece há al­guns anos na China?
Lacan: Eu aguardo.Mas não espero nada.
(Jacques Lacan, O Seminário 23: O Sinthoma, p. 133)

Devemos reconhecer que Lacan chegou ao ponto no qual a abertura ao contingente não suscitou nenhuma esperança. O real, esse conceito ao qual ele dedicou seus últimos anos sem recuar das consequências, foi sua resposta à subversão introduzida por Freud: “O que eu chamo de real… eu inventei, porque se impunha a mim… o real é minha resposta sintomática … O verdadeiro real implica a ausência de lei”1

Mas os seres humanos, incluindo os lacanianos, continuam a manter a esperança. Aquilo que nos permite projetar-nos em um futuro cheio de compromissos e comprometimentos (pessoais e institucionais), sem imaginar que é apenas uma montagem que poderia desmoronar como um castelo de cartas. Cientes de que estamos vivendo em um mundo de semblantes que ocultam a existência do real, recorremos a uma espécie de denegação: nós o conhecemos, mas não acreditamos nele.

“Que ideia maluca!” – exclamou o austríaco Stefan Zweig ao conversar com seus colegas belgas alguns dias antes da declaração da Primeira Guerra Mundial. “Você pode me enforcar neste poste se os alemães entrarem na Bélgica!” Mesmo agora – ele diz em suas memórias – sou grato aos meus amigos por não acreditarem em mim.2A lucidez de um homem como Zweig não foi suficiente para conceber o impensável de que a guerra fizesse parte das representações em jogo no verão de 1914.

Alguns anos depois, muitos judeus convocados para a reunião que os levaria aos “campos de trabalho” compareceram, voluntariamente, porque acharam inacreditáveis os rumores sobre a vontade nazista de extermínio. Primo Levi, em seu livro ‘Se isto é um homem’, conta como chegou a Auschwitz exausto e com sede após a longa viagem de trem. Ele tentou apenas pegar um pedaço de gelo ao alcance de suas mãos, para que um guarda o arrancasse brutalmente.

“Warum?”(“Por quê?”), pergunta o prisioneiro. “Hier ist kein warum” (“Aqui não há porquê”), responde o guarda. Essa história nos mostra que não há nada mais devastador do que um lugar sem porquês. Abolir perguntas é confrontar o sujeito com o não significado do real, sem qualquer defesa. A erradicação do porquê abre o caminho da destruição subjetiva antes mesmo de tocar o corpo.

Que uma epidemia global possa acabar com o maquinário arrogante de nosso tempo é mais improvável que a guerra, o que não significa que seja mais prejudicial.

Os eventos atuais são provocados com a força de um disparo. O cenário, até ontem inconcebível, é aquele em que somos lançados hoje. Como um pesadelo, nos tornamos parte das imagens de Wuhan que na tela pareciam tão distantes para nós. Aqueles “outros” que mal despertaram um leve sentimento de compaixão já são “nós”. Agora são as imagens de nossas ruas e hospitais que são transmitidas ao mundo. Justiça poética, dizem aqueles que vêem a ameaça no Ocidente como uma lição bem merecida. Mas não vamos esquecer que o real da ciência (o vírus) não tem significado, muito menos justiça.

Há fatos tão estranhos que só podem ser imaginados como ficção científica. Hoje, um desses eventos entrou na vida de TODOS (esse é o mais cinematográfico), perturbando nossos hábitos e virando de cabeça para baixo nossa sempre ilusória construção do mundo.

Ao contrário do que aconteceu com Primo Levi, nos é permitido fazer perguntas. E após essa irrupção do inesperado, vemos uma proliferação de todos os tipos de respostas, mais próximas da ficção subjetiva do que do saber da ciência. Parece que até agora ninguém sabe como esse novo vírus irá “se comportar” (curioso eufemismo).É a falta de saber que exige múltiplas explicações, algumas das quais tentam explicar sua causa com teorias da conspiração, outras usam o humor como forma de reagir ao absurdo. Essas são defesas que se complementam e nos permitem fazer algo extraordinário: ajustar-se rapidamente ao inicialmente inconcebível.

Passamos da negação à adaptação sem solução de continuidade, mas não é certo que isso nos prepare para tomar outra posição diante da existência, a que Lacan chegou quando percebeu que a causa está perdida porque o Outro não existe, exceto na transferência.

O novo vírus é um real com uma lei na qual a ciência atua para extrair saber. Isso é absolutamente necessário, mas não é suficiente, pois deixa de fora aquele outro vírus que nos transformou em seres falantes, aquele com o qual apenas a psicanálise lida.

*Texto publicado na Lacanian Review Online em 20/03/2020 no link abaixo
http://www.thelacanianreviews.com/i-am-waiting-but-not-hoping/
Tradução: J. Wilson R. Braga Jr.

1 Lacan, J., O Seminário 23: O Sinthoma, p.133.
2Zweig, S., O Mundo de Ontem, ZAHAR, 2014.