Marizilda Paulino (CLIPP/EBP/AMP)

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A clínica da psicose na psicanálise, particularmente sob a orientação lacaniana, representa uma reformulação fundamental da abordagem analítica, afastando-se das contra indicações iniciais postuladas por Freud e enfatizando uma postura ética e um manejo técnico específicos.

Para Freud, a psicose não seria passível de tratamento na medida em que o psicótico não desenvolveria uma transferência ao psicanalista, pois o paciente estaria em um momento de retração da libido do objeto para o eu, com uma retirada do interesse e da ligação com os objetos do mundo externo, como bem desenvolvido no artigo de 1914, Sobre o narcisismo: uma introdução. Não havendo uma ligação com o objeto externo, o psicótico não desenvolveria uma transferência ao psicanalista, impedindo, assim, o tratamento.

Depois de Freud, muitos analistas estudaram a psicose e trataram seus doentes, Lacan inclusive, observando que os psicóticos desenvolvem uma transferência, embora diferente da dos neuróticos.

Lacan na Abertura da Seção Clínica de Vincennes (1977), ao ser perguntado por Miller se “a clínica das neuroses e a clínica das psicoses necessitam das mesmas categorias, dos mesmos signos”, responde:

A paranoia, quero dizer, a psicose é para Freud absolutamente fundamental. A psicose é isso diante do que um analista não deve recuar em nenhum caso (PAULINO, 2021).

Essa frase: o analista não deve recuar diante da psicose tornou-se uma marca na orientação lacaniana, podendo ser compreendida como um princípio ético, uma recomendação, e não como um imperativo rígido na abordagem do paciente psicótico. Ela traz em seu bojo a confrontação do analista com a sua questão pessoal de não querer saber devido às suas dificuldades pessoais: seja a irritação, o horror ao que escuta, a estranheza, o que não faz sentido, o que ele capta como violência, o que questiona a realidade compartilhada, etc.

Não recuar significa que o analista deve assumir uma posição de escuta e de uma presença firme, sustentando e manejando a transferência, para assegurar o lugar de sujeito para o psicótico, sabendo que é ele quem detém o saber sobre seu sofrimento. O analista não deve assumir a posição de mestre e sim procurar aprender com o psicótico. O não recuar implica também em o analista renunciar à interpretação e sustentar as invenções do psicótico, suas tentativas de construção, como o delírio, por exemplo.

A clínica da psicose ensina ao analista – não se trata mais de uma impossibilidade como pensava a psicanálise freudiana, mas sim de subverter certezas, de formular novas estratégias de manejo clínico e de sustentar que a transferência não se baseia no desejo de saber. A escuta e a presença do analista, como objeto na transferência, devem dar a possibilidade ao sujeito psicótico de construir um mínimo de laço social.

Lacan, médico psiquiatra de formação, com as entrevistas de apresentação de doentes, trouxe para a psicanálise mais uma forma de ensino. Diferentemente da psiquiatria que buscava, com a apresentação de pacientes, mostrar o que já se sabia sobre a vida e a doença do paciente, Lacan ofereceu a escuta psicanalítica desprovida de um conhecimento prévio, colocando-se em posição de aprender com o que o doente lhe dizia. Isto provocou uma revolução no modo de tratar o paciente psiquiátrico e ofereceu uma possibilidade de aprendizado importante para a formação do analista. O sujeito é entrevistado não para ser classificado, mas para testemunhar sobre seu caso particular, sobre a singularidade de seu caso.

 

Como acontece a apresentação de paciente com um psicanalista?

A estrutura permanece muito semelhante à situação de entrevista com um psiquiatra: duas pessoas (entrevistador-analista e entrevistado-paciente) conversam diante de uma plateia.

A instituição que acolhe o paciente indica o entrevistado. A equipe médica que o acompanha está sempre presente e, no geral, o paciente escolhido apresenta uma dúvida diagnóstica para a equipe. Todos ficam em silêncio atentos à conversa entre o analista e o paciente.

Após a entrevista, o paciente é conduzido para fora da sala, restando o analista e a plateia que, no geral, é composta pela equipe que acompanha o tratamento do enfermo: médicos, psicólogos, psicanalistas que cuidam do paciente na instituição, e psicanalistas em formação que atuam fora da instituição.

Inicia-se então a discussão do caso trabalhado, sendo concedida a palavra a todos os participantes. Nesse momento, são debatidas as questões diagnósticas, as condições do tratamento e possíveis novas orientações.

Temos aqui um valioso instrumento de transmissão da psicanálise. Os ouvintes (a plateia) têm a oportunidade de ver o psicanalista em ação, oferecendo a sua escuta e presença ao paciente, o que provoca o surgimento de elementos que ensinam ao analista sobre o sofrimento do doente. Isto afeta os ouvintes, trazendo também para eles a oportunidade de novas reflexões sobre o caso em si, e em relação à sua prática clínica.

Para o paciente, a entrevista pode promover uma implicação subjetiva, um reposicionamento discursivo e, muitas vezes, um impacto terapêutico significativo.

A instituição também sofre os efeitos das apresentações de pacientes – seja pela movimentação transferencial que atinge a todos da equipe, na medida em que os implicados na apresentação ficam expostos, bem como possibilita que se promova uma formação contínua para a equipe.

Para o analista, sempre em formação, a apresentação de pacientes é um importante instrumento de ensino que, ao lado de sua análise pessoal, supervisão de trabalho e conhecimentos epistêmicos, propicia o desenvolvimento de um trabalho cada vez mais perspicaz, analítico e consequente.

 

Referências Bibliográficas:

BRIOLE, G. La enseñanza de los enfermos, efectos de formación. Dejar la palabra a los pacientes. Recuperado em 8 de outubro de 2025: <www.nelmexico.org/wp-content/uploads/2021/02/glifos08.pdf>.

CHAMORRO, J. (2005) El encuentro del psicoanalista con el psicótico. In: Del Edipo a la sexuación. MILLER, J-A. [et al.] Paidós: Buenos Aires, p. 289-293

FERREIRA, C.M.R. (2007) Apresentação de pacientes: (Re)descobrindo a dimensão clínica. Ágora, Rio de Janeiro, v. X, n.2, jul/dez 2007, p.295-310.

FREUD, S. Introdução ao narcisismo (1914). In: Obras completas, volume 12: introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Trad. Paulo C. Souza. 1a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

LACAN, J. (2001 [1977]) Abertura da Seção Clínica. In: Opção Lacaniana, n.30. São Paulo: Eolia, p.6.

MILLER, J-A. Lições sobre apresentações de pacientes. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 138-149

PAULINO, M. (2021) O analista não deve recuar diante da psicose In: Revista Hades, VOL.2 – n.1, São Paulo. Recuperado em 8 de outubro de 2025: <www.clipp.org.br/o-analista-nao-deve-recuar-diante-da-psicose>.