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A gente tava brincando, senhor

Daniela de Camargo Barros Affonso

Uma fila de meninos, cabeças baixas, algemados, acompanhados por policiais. A imagem dos rostos é distorcida para não serem reconhecidos. Todos pretos e pobres – os trajes denunciam a condição social. São infratores, afirma a repórter, a maior parte envolvida com o tráfico de drogas; a reportagem enfatiza a grande operação da polícia para localizá-los e apreendê-los.
Imagens como estas pululam e se repetem em programas televisivos vespertinos: crianças e adolescentes pretos, pobres, moradores das áreas degradadas das cidades, associados a algum delito. A locução raivosa do apresentador brada indignação por saber que não vão para a cadeia.

“Menino negro é espancado e amarrado nu em poste na zona sul do Rio.” A notícia, veiculada na televisão, viraliza nas redes sociais, acompanhada da imagem do menino, e ganha ares de polêmica ao ser comentada pela apresentadora, que justifica a ação como legítima defesa e sugere: “Aos defensores dos direitos humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido”.

Pesquisas1 indicam que cerca de 90% da população brasileira é favorável à redução da maioridade penal, o que poderia parecer um contrassenso quando dados da Unicef atestam que dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Como explicar que o desejo de encarcerar crianças e adolescentes, segregando-as do convívio social, seja de tal magnitude?

Lacan, em 1947, diz: “(…) o desenvolvimento que crescerá, neste século, dos meios de agir sobre o psiquismo, e o manejo concertado das imagens e paixões do qual já se fez uso com sucesso contra nosso julgamento, nossa resolução e nossa unidade moral, darão ensejo a novos abusos do poder”2. A atualidade da frase e seu caráter visionário são apontados por Marie-Hélène Brousse, que a considera uma definição da mídia e particularmente da televisão. “Escolhem-se as imagens, elas são construídas e, eventualmente, são manipuladas, associadas ao manejo das paixões, paixões de segurança”3, ressalta.

A veiculação massiva e intrusiva de tais imagens não é, pois, sem consequências. Elas afetam subjetividades, estabelecem modos de gozo que se manifestam em atos de ódio e segregação, e respondem pelo mal-estar na civilização em que os indivíduos são consumidos por imagens. Lacan recorre ao conceito freudiano de Unheimlich, algo íntimo, mas que provoca estranheza. Quando este estranho-íntimo se dá a ver numa cena, provoca horror, fazendo surgir a angústia: “A angústia é quando aparece neste enquadramento o que já estava ali, muito mais perto, em casa, Heim”4. A angústia derivada da aparição insistente na cena das imagens dos meninos pretos, pobres e supostamente portadores do gozo da violência, desestabiliza a montagem inicial, gerando angústia e o desejo de eliminá-los, como forma de retornar à montagem inicial5.

Cria-se, a partir da pregnância da imagem, uma espécie de categoria social a ser segregada, eliminada. Antônio Teixeira aponta que a dimensão do universal que organiza o modo de pertencimento de um sujeito a uma comunidade depende, para se instituir, da violência de uma expulsão. “Essa é a forma como Lacan nos instrui a perceber a constituição social do universal, longe de ser um princípio pacificamente dado (…)”6. Este sujeito “eliminável” ou o “homem alvejável”, segundo a expressão cunhada pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares7, captura olhares e gera reações.

Um menino de 15 anos gravava um vídeo com dois amigos numa favela no Rio de Janeiro, quando, alvejado por um policial, morreu, não sem gravar sua agonia. Quando perguntado pelo policial o que fazia lá, um dos meninos respondeu: “a gente tava brincando, senhor”8. Mas tratava-se de um “homem alvejável”. Dados da Unicef mostram que o Brasil é o segundo país do mundo em assassinato de adolescentes, verdadeiro genocídio do “homem alvejável”.

No Seminário 10, Lacan destaca a função de excremento que certos grupos sociais podem ocupar9. Mas o resíduo insiste em retornar, fazendo fracassar qualquer tentativa de eliminação definitiva. A psicanálise tampouco caminha na direção de incluir este resto, mas traça outras veredas. Para Brousse “a psicanálise é um novo tratamento das paixões feito pela manipulação dos significantes, que revela o simbólico em sua natureza de semblante.10(…) A psicanálise é uma disciplina do texto e o saber dela é textual e não referencial. A única referência da psicanálise é a própria letra. Daí decorre que o método psicanalítico propõe tratar o real pela letra, é a única possibilidade de sair do senso comum” .

Texto elaborado para o VII Enapol (setembro de 2015)

1 CNT (11/6/2013); Ibope (17/9/2014); Datafolha (15/4/2015).
2 Lacan, J. “A psiquiatria inglesa e a guerra”, em Outros escritos. RJ, Jorge Zahar Ed., 2003, p. 125.
3 Brousse, M-H. O inconsciente é a política. SP, EBP, 2003.
4 Lacan, J. O Seminário – livro 10: a angústia. RJ, Zahar, 2005, p. 87.
5 Barros, R. do R. e Vieira, M. A. (Org.) Ódio, segregação e gozo. RJ, Subversos, 2012, p. 26 a 30.
6 Idem, p. 96.
7 Ibidem, p. 127.
8 Eliane Brum, El País, 30/3/2015.
9 Lacan, J. O Seminário – livro 10: a angústia, p. 327.
10 Brousse, M-H. Op. Cit., p. 75.