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A PSICANÁLISE E A QUESTÃO TRANS

 

Paitings by Fabio La Fauci Reprodução @art

Cibelle Pereira Soares (CLIPP- Curso de Psicanálise)

Aqueles que não se identificam com o binário homem-mulher, não são exatamente novidade no mundo, porém ao longo da história da psicanálise, pouco se falou sobre eles. Ao constatar que cada vez mais pessoas se afirmam trans na sociedade atual e na clínica, Miller confirma a importância do tema para os psicanalistas atuais. Afinal, o próprio Freud dizia não haver antagonismo entre psicologia individual e a coletiva, sendo a psicanálise uma prática política que deve estar atenta às consequências do seu discurso no âmbito social.

O tema da transexualidade está em alta para a psicanálise nos últimos anos. Com uma abordagem distinta do enquadramento histórico patologizante, a transexualidade passou a ser tratada como uma das diversas formas de gozo do ser falante. De acordo com Brousse (2018), é um momento na história da psicanálise, no qual temos a oportunidade de assistir ao surgimento de um novo significante mestre, o gênero em substituição ao sexo, com suas implicações e consequências.

Stiglitz (2019) afirma que a psicanálise de orientação lacaniana está de acordo com Butler na desconstrução de gêneros sexuais – não há como definir o que são homem e mulher – mas se distancia das teorias de gênero ao não negar o real da diferença sexual. Na análise, a identidade é vazia, trata-se apenas de um remendo para o fracasso em nomear a experiência de satisfação mais íntima do corpo de cada um, em resposta ao encontro com outros corpos.

Não cabe ao analista ou à psicanálise reforçar a identidade de gênero dos sujeitos, ou quaisquer outras, já que. o que existem são apenas arranjos de sexualidade, nos quais cada sujeito se autoriza a si mesmo, fora do binarismo homem-mulher (Fajnwaks, 2020).

Homem, mulher, trans, cis, entre outros, são todos significantes de identidade que devem ser reconhecidos, mas não reforçados dentro de um contexto analítico. Bassols (2021) afirma que deveria haver um esforço a mais da psicanálise para desenjaular o sujeito de alguns significantes mestres, com cuidado para não os aprisionar em outros imperativos.

O que podemos apreender da experiência trans, é que ela descortina algo para todos os seres falantes, não apenas para aqueles que passam ou desejam passar pela experiência de transição de um gênero para outro. Bassols (2021) afirma que o trans é como um espelho com o qual cada sujeito se questiona sobre sua própria experiência de viver em um corpo, sobre a diferença absoluta de seu corpo de gozo.

Os avanços da medicina e do direito permitiram uma nova dimensão à identidade sexual e de gênero. Tratamentos hormonais e cirúrgicos oferecem soluções para um sujeito sentir-se mais à vontade com seu próprio corpo, e a conquista de acesso a direitos básicos começa a proporcionar uma vida mais digna à essa população. No entanto, apesar da importância crucial de tais avanços sociais, eles não resolvem o mal-entendido essencial de uma análise (Laia, 2013). O que a psicanálise pode fazer hoje com a clínica do real é reafirmar a busca por soluções singulares e contingentes, já que, para todos os sujeitos, o fim da análise exige uma desfalização e uma saída pelo lado feminino, do gozo suplementar, não-fálico e não-todo (Iannini e Tavares, 2019).

Stiglitz (2019) afirma que é preciso uma prudência pragmática na psicanálise, para que ela não se deixe levar pelo cientificismo dominante ou pelo relativismo pós-moderno, analisando caso a caso, sem regras universais, deixando aberto espaço para pluralidades.

Bassols (2021) chega a questionar a necessidade de intervenções médicas no corpo trans e reflete sobre o que a psicanálise pode fazer com relação a esse processo e questiona se não seria interessante trabalhar primeiro por meio das palavras, antes de o sujeito tomar qualquer decisão mais drástica ou definitiva, como uma cirurgia – existe uma promessa enganosa de felicidade e de resolução do mal-estar em vários instrumentos da ciência no capitalismo.

A psicanálise deve tratar cada sujeito em sua singularidade, confrontá-lo com a diferença absoluta de gozo, para além de qualquer promessa de felicidade trans.

Ansermet (2019) corrobora que cada um deve encontrar um caminho único, diferente, insubstituível e desejante, para além de todos os sistemas de gozo que são impostos, sendo importante que a psicanálise encontre novamente seu poder subversivo, mesmo que não saiba o que está por vir no lugar do patriarcado ou que não possa garantir que será algo melhor. Esse caminho parece ser uma unanimidade entre os psicanalistas contemporâneos que se debruçam sobre a questão trans, já que, segundo Jesus Santiago (2021), a montagem pulsional é própria e única.

Assim, pode-se concluir que a redução do gozo mortífero e o saber fazer com o real do gozo é o que é visado em uma análise e não qualquer adequação ao sistema de gozo vigente.

 

 

REFERÊNCIAS

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BASSOLS, Miquel. La diferencia de los sexos no existe en el inconsciente: Sobre un informe de Paul B. Preciado dirigido a los psicoanalistas. Buenos Aires: Grama ediciones, 2021.

BROUSSE, Marie-Hélène. As identidades, uma política, a identificação, um processo, e a identidade, um sintoma. Opção Lacaniana online, [s. l.], ano 9, n. 25 e 26, 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/As_Identidades_uma_politica_a_identificacao.pdf. Acesso em: 19 set. 2021.

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FAJNWAKS, Fabián. Jacques Lacan: precursor das teorias queer. In: CAPANEMA, C.A.; DURÃES, F.; MIRANDA JR, H.C.; MOTTA, J.M.; GUEDES, M.M. da C. (orgs). Psicanálise e psicopatologia lacanianas: impasses e soluções. Curitiba: Editora CRV, 2020. p.17-34

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