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AS IMAGENS DA GUERRA E O FASCÍNIO

 

Kiev, Reprodução @ww3com

 

Cláudio Ivan Bezerra (CLIPP)

Não é preciso ter olhos abertos para ver o sol, nem é preciso ter ouvidos afiados para ouvir o trovão. Para ser vitorioso você precisa ver o que não está visível” Sun Tzu, “A arte da guerra”

 

No início das primeiras horas do dia 24 de fevereiro de 2022, o presidente russo Vladmir Putin anunciou o início de uma “operação militar especial” na Ucrânia. Em instantes, explosões em Kiev, Kharkiv, Odessa e Donbass (i). À velocidade da luz toda comunicação planetária passou a fixar o olhar para aquilo que passaria a ser o maior conflito militar na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Agências de notícias, emissoras, redações, âncoras, repórteres passaram a se concentrar em uma nova fonte de dados: as mídias sociais um arsenal inédito de narrativas diretamente do status quo. Rapidamente formava-se um ecossistema de informações sobre a guerra. Nos dias que se seguiram, o buscador do Google(ii) indexou mais de 158 milhões de páginas. Em apenas 0,46 s, várias páginas se especializaram em publicar e viralizar imagens da invasão à Ucrânia.

Nas primeiras imagens que correram o mundo pudemos testemunhar cenas de horror: trincheiras, sistemas de mísseis por satélites, comboios de blindados, naves cortando o céu ucraniano, disparo de foguetes, civis feridos, cenas de destruição testemunhadas com palavras de ordem, pedido de ajuda e choro de crianças. Por que as imagens da guerra despertam tanto fascínio no olhar humano? Quais seriam as representações antropológicas e psíquicas capazes de fixar o olhar humano em si sobre uma questão tão complexa e paradigmática? Há algo além do medo de uma possível terceira guerra mundial e o uso de armas nucleares?

Edifício destruído por bombardeio russo Reprodução: STR/ MYKOLAIV STA ADMINSTRATION / AFP

O antropólogo, sociólogo e filósofo alemão Dietmar Kamper estudou as relações da imagem na sociedade na era da reprodutibilidade e trouxe reflexões, pertinentes aos dias atuais, de como a imagem é explorada pelo capitalismo numa relação parasitária entre o homem e seu medo de morrer.(iii) A base do seu pensamento nos direciona para uma espécie de báscula sobre a existência da imago. Se por um lado traz uma representação de uma presença, por outro há uma ausência. Nesse paradigma, atribui-se à construção de imagens como uma defesa humana diante o medo da morte.(iv)

Se a criação de imagens serve como defesa do medo da morte, segundo Kamper, ao mesmo tempo mortifica, o objeto imago, separando-se do homem. Nisto o assentamento das imagens no cerne da sociedade parece não ter fim, num ciclo de produção industrial de imagens que nos encontramos hoje em dia. A tese defendida pelo professor e teórico da comunicação Norval Baitello Júnior, A Era da Iconofagia,(v) explica o fenômeno social contemporâneo do ser humano que devora imagens ao mesmo tempo que é devorado por elas. As imagens alimentam-se do olhar humano, e, sendo assim, é como se passassem a nos procurar. A construção da ideia inspirada pela antropofagia, que assim se desdobra: imagens que devoram imagens,(vi) processo de apropriação de imagens precedentes por novas imagens que vêm reincorporar uma série de contexto; em imagens que devoram corpos,(vii) entendida como a busca por audiência e o papel das mídias em alimentar o olhar.

 

Putin discursa em comemoração aos 8 anos de anexação da Crimeia. Reprodução: Valor.globo.com

 

Se de um lado temos o presidente russo Vladimir Putin; um político veterano bastante articulado pelo discurso, bem equipado com a propaganda e o controle das mídias de massa, do outro temos o ucraniano Volodimir Zelenski, um presidente jovem com expertise no cinema, publicidade e linguagens digitais. Ergue-se nesse cenário uma estratégia militar, com ares de reality show, através da combustão de imagens num processo de versões (viii) da verdade.

 

Volodymyr Zelensky na série do Netflix “Servant of the People” reexibida durante o período de guerra. Reprodução: ASSOCIATED PRESS

 

Em O problema econômico do masoquismo (1925)(ix), Freud aponta o residual masoquista que se mantém no aparelho psíquico através do princípio de prazer. O movimento libidinal que diante da pulsão de morte, e pulsão de vida, que vai ao encontro do sexual, possibilita outra articulação com objetos externos. Em 1932, este mesmo conceito é retomado para responder ao físico Albert Einstein sobre o paradoxo da pulsão de autodestruição aliado à pulsão de autoconservação na condição humana e o processo civilizatório em: O por que da guerra? (x)

 

E as imagem como se conectam a tudo isso?

A partir de Lacan somos introduzidos ao Estádio do Espelho e à função do objeto a que irão nortear a questão corpo-imagem pela forma como o homem se relaciona com a imagem do seu corpo:

“…fundamento de uma certa relação do homem com a imagem do seu corpo e com os diferentes objetos constitutivos desse corpo, com pedaços do corpo original, captados, ou não, no momento em que i(a) tem a oportunidade de se constituir” (xi).

Uma vez que a imagem especular se faz corpo (xii), antes do Estádio do Espelho podemos falar de um corpo fragmentado e a sua relação com o caos e a desordem, instância geradora de gozo que engendra a satisfação pela via fantasística.

Pela perspectiva psicanalítica temos uma leitura sobre os efeitos da fascinação provocados pela incidência das imagens de guerra trazidas pelas mídias. Ainda que tais imagens, que dominam o imaginário humano, não representem o sujeito em sua singularidade, a fascinação pelas imagens revela que a substância do corpo é o gozo (xiii).

i O GLOBO. Guerra na Ucrânia confira linha do tempo do conflito. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/guerra-na-ucrania-confira-linha-do-tempo-do-conflito-25415737> Acesso em: 3 mar 2022.
ii Pesquisa realizada no 3o dia dos ataques russos no buscador Google.com
iii BAITELLO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia: Reflexões sobre a imagem, comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014, p. 24.
iv Idem,p. 66.
v Ibidem.
vi Ibidem, p. 128.
vii Ibidem, p. 130.
viii BEZERRA, Cláudio Ivan. A verdade e suas teorias. Disponível em: <https://clipp.org.br/a-verdade-e-suas-teorias/> Acesso em: 19 abr de 2022.
ix FREUD. Sigmund. O Problema Econômico do Masoquismo (1924). In: O ego e o id e outros trabalhos (1932-1925). vol XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
x FREUD. Sigmund. Por que da guerra? . In: Conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos (1932-1936). vol XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 207.
xi LACAN, Jaques. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005, p. 132.
xii MILLER, Jacques-Alain. O Inconsciente e o corpo falante. IN: Scilict. O corpo falante. Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016 p. 22.
xiii Idem, p. 30.