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CLIPP nas IX Jornadas da EBP-SP – Rodrigo Camargo, aborda A ironia da inexistência do Outro.

A ironia da inexistência do Outro

Por Rodrigo Camargo

EIXO – SOLIDÕES E ESTRUTURAS CLÍNICAS

 

Se todo mundo é louco e se todo mundo delira, como disse Lacan em Vincennes em 1978 , o esquizofrênico seria uma exceção. Essa é a tese incrustada no texto Clínica irônica de Jacques-Alain Miller . Mas isso não está propriamente explícito no texto, embora algo se revele de fundamental sob a figura da ironia do “dito esquizofrênico” .
O problema se localiza na clínica diferencial das psicoses e seu fundamento está calcado numa clínica universal do delírio. Todos os discursos seriam então defesas contra o real e – sob a perspectiva encontrada a partir do ponto de vista do esquizofrênico – sua “ironia infernal” incidiria diretamente sobre a raiz dos laços sociais .
Sabemos que o esquizofrênico – apesar de falar e estar na linguagem – está fora do discurso e, portanto, do laço social. Ele não se defende do real por meio do simbólico e da linguagem, pois, como diz Lacan, para o esquizofrênico o simbólico é real .
Miller vai diferenciar em princípio a ironia do humor. É importante salientar que não se trata da figura retórica da ironia, isto é, daquilo que a ironia faz ao pressupor um intérprete que entenderia o que é dito em seu suposto contrário. A ironia aqui não tem a intenção de enganar, visto que ela diz que esse Outro não existe.
Todos os discursos são semblantes. Não há um discurso que não seja do semblante, é isto que a ironia do esquizofrênico denuncia, sem querer denunciar. A ironia é a forma cômica tomada pelo saber de que o Outro não existe, ao contrário do humor, que seria a vertente cômica do supereu e que pressupõe um Outro capaz de corroborar o dito humorístico na sua paróquia ou no seu próprio gueto.
O lugar do Outro constitui, portanto, uma espécie de bolha das relações sociais da qual o esquizofrênico seria aquele que a fura por excelência (e exceção) instaurando uma perplexidade naqueles que estão incluídos dentro daquela maquinaria dos discursos. O dito esquizofrênico então se situa preso num lado de fora e na sua ironia há uma ausência do Outro simbólico.
Vejamos como isso funciona e porque se aplica tão intimamente ao tema da solidão. É uma aposta de Miller – não só neste texto fundamental como também em seus cursos de orientação lacaniana – que a clínica psicanalítica seja irônica, isto é, que nesta perspectiva do ponto de vista do esquizofrênico seja uma clínica fundamentada na inexistência do Outro como tal, pois do contrário, segundo ele, a experiência da análise seria apenas uma cópia medíocre da clínica psiquiátrica ou até da clínica psicanalítica que se refere à norma edipiana.
Na clínica universal do delírio proposta por Miller o esquizofrênico ocupa um lugar de extimidade. A circulação na teoria dos discursos de Lacan só se conceberia então a partir do fundamento do sujeito fora-do-discurso, ou seja, da posição êxtima do “dito esquizofrênico”.
O delírio é universal porque os homens falam e porque há linguagem. A linguagem tem efeito de aniquilamento ou em outros termos “a palavra é o assassinato da coisa”. Assim, o simbólico se separa do real, quer dizer Miller: o gozo está interdito àquele que fala como tal. O lugar do Outro, como lugar do significante, seria o terreno limpo de gozo. E na perspectiva do esquizofrênico a palavra não é o assassinato da coisa, a palavra é a coisa!
“Surge uma diferença entre o objeto e a representação” . É assim que Lacan começa O sonho de Aristóteles, um texto contemporâneo ao mencionado acima em que Lacan pergunta: “Como Aristóteles concebia a representação?”
E este parece ser o X do problema. Desde Aristóteles não conseguimos mais nos livrar deste seu sonho, afinal, Aristóteles sonhava como todo mundo, isto é, ele também delirava . A tese freudiana onde tudo é sonho nos mostra também que o sonho é uma espécie de delírio e a perspectiva da ironia sobre a linguagem proposta por Miller é de alguma forma que (não) todos somos ainda aristotélicos.
Eis que no advento da transferência Lacan também se pautou num outro gigante da história da filosofia para ensinar o que não se ensina, a saber, Sócrates.
Na clínica da ironia – veja que Miller nos alerta: não se trata de “curar a neurose pela ironia” – podemos tomar previamente a marca do momento em que a subjetividade se manifesta pela primeira vez na história universal no procedimento irônico de Sócrates .
Trata-se de um aspecto solidário, posteriormente, à histeria e seu questionamento do saber estabelecido. Enfim, Sócrates foi talvez um precursor da psicanálise , isto é, assim como Freud, ambos concebem o desejo do homem como o desejo do Outro.
A posição do psicanalista corresponde dessa maneira à posição socrática no tocante à afirmação de um não-saber fundamental. Segundo Kierkegaard, Sócrates é o modelo da ironia , visto que para ele o próprio da subjetividade é ser questionadora.
A pergunta socrática está carregada de ironia pois diferentemente de se perguntar para obter uma resposta, perguntar sob a forma da ironia põe em descoberto alguma coisa. Dessa forma, o conceito de ironia tem o efeito de provocar a divisão subjetiva – daí estar ligado à perplexidade – pois quando se expressa o faz sob a forma da surpresa e disrupção.
Trata-se da manifestação do que deveria permanecer oculto: a verdade. E ela resiste ao saber. Se há verdade, não é adequação da palavra às coisas. Ela é apenas interna ao dizer, isto é, à sua própria articulação. Assim, se o significante se articula ao significante – por estrutura – sua referência é vazia; justamente, o que constitui o simbólico como uma ordem.
A ironia de Sócrates ao tornar opaco o que era transparente, sob a forma da ignorância, nos remeteria aqui à ironia infernal do esquizofrênico mencionada por Miller, cuja ruptura do laço social – pois nos perguntamos qual o elo lógico de seus ditos – na sua insistência tenta plantar sempre a possibilidade de um novo começo, sempre ali onde buscamos sentido, mas também ali onde todo saber é impotente, onde o S1 não se liga mais ao S2, mas também sempre onde estamos atrelados, por fim, inexoravelmente, ao Um-sozinho.

 LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário de Ornicar? Lacan a favor de Vincennes! In: Correio n. 65. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2010.

Conferência de abertura do V Encontro Internacional do Campo Freudiano, Buenos Aires, 1988.

LACAN, J. O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

MILLER, J-A. Clínica irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

CHAMORRO, J. Esquizofrenia: el discurso es real. In: Clínica de la psicoses, sem referência, 10/10/2002.

Conferência proferida por Lacan, em 1978, no Hospital Saint-Anne no serviço do professor Deniker. Traduzida ao espanhol por Pablo Peusner (versão utilizada para a tradução ao português).

BATISTA, M.C.; LAIA, S. (Organizadores). Todo mundo delira. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2010.

LACAN, J. O Seminário 8: a transferência. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

DERRIDA, J. O cartão-postal. De Sócrates a Freud e além. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

LÓPEZ, G. J. Clínica de la ironia: Sócrates, Kierkegaard, Freud, Lacan. Buenos Aires: Letra Viva, 2017.

MILLER, J-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.

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