Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri(EBP/AMP/CLIPP)
Seria a guerra uma anomalia, uma falta, um escândalo, algo que poderia não acontecer em um mundo civilizado? A guerra põe em xeque a racionalidade humana, questiona a civilização, mas a segue como sua sombra, mesmo quando não há um brilhante sol no horizonte; a história da humanidade pode ser contada através de suas guerras.
A primeira “Grande Guerra”, chamada “mundial’, “a guerra para acabar com todas as guerras” (The war to end war), bordão de cunho ufano e idealista, usado para justificar a odiosa carnificina que se estendeu de 1914 a 1918, levou aos campos de batalha uma geração que partiu sob aplausos, em direção ao horror e à morte. Sabemos como terminam os grandes ideais e este não fugiu à regra; a segunda “Grande Guerra” foi gestada na primeira. Desde a guerra para acabar com todas, os tempos mostraram que jamais se alcançou a paz, aquilo que se buscava. Para além do flagrante paradoxo, entre o discurso pela paz e a efetividade da guerra, os conflitos abalam nosso mundo, com um nível de violência e terror proporcional ao desenvolvimento material e crescimento sofisticado dos estados envolvidos.
Em O Mal-Estar na Civilização, Freud aborda o antagonismo irremediável entre as exigências pulsionais do indivíduo e as restrições da civilização. Civilização ou cultura abrange as criações, realizações e construções da sociedade humana (ao que Hegel chamaria de Espírito), além das leis e regras que visam proteger os homens das intempéries naturais e ajustar seus relacionamentos.
Para Freud é marcante o aspecto da civilização que regula os relacionamentos humanos, tendo em vista que os mesmos afetam o outro como próximo, como fonte de auxílio, como objeto sexual, como membro de uma família, de uma comunidade, de um Estado.
Sem o elemento civilizatório que tenta regular os relacionamentos sociais, os mesmos estariam sujeitos à vontade arbitrária de cada indivíduo, o que significa que aquele fisicamente mais forte decidiria sobre tais relacionamentos a partir dos próprios interesses e impulsos pulsionais. No entanto, o envelhecimento natural, um outro mais forte, ou ainda, um bando de fracos poderia se juntar e derrotar o forte, o que colocaria em risco a vida em uma sociedade não civilizada.
“A vida humana em comum se torna possível apenas quando há uma maioria que é mais forte do que qualquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo” 1.
Este parece ser o passo decisivo para a civilização que, doravante, vai opor seus ideais às pulsões individuais, sacrificando a satisfação de cada um em nome do “bem de todos”. Trata-se de instalar o direito, que se coloca acima do indivíduo e seus desejos, sem levar em conta o valor ético desse mesmo direito.
Desse modo, civilização e justiça impõem restrições à liberdade de cada um, exigindo que ninguém fuja a tais restrições. Grande parte das lutas da humanidade estão centradas em torno de reivindicações do indivíduo contra as limitações culturais/civilizatórias, o que parece levar a um conflito irreconciliável.
Em Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte 2, Freud reflete sobre a impotência da civilização face às exigências pulsionais dos humanos. A guerra conduzida sempre em nome de ideais, autoriza e legitima a agressividade inerente ao ser humano. Com a guerra explode o jugo cultural que continha as pulsões, dando livre curso ao que a civilização considera como mal e pernicioso. O paradoxo é que a guerra tem origem na civilização, mas ao mesmo tempo promove a queda do que seria a pacificação que se esperava da civilização: a barbárie retorna e destrói o que havia sido construído às custas da renúncia pulsional.
Em Por que a Guerra? conversando com Einstein que pergunta como chegar à paz, Freud responde com o “porquê da guerra” 3. O ser humano quer a guerra e erradicá-la é um sonho, um delírio, visto que a civilização não erradica a pulsão, tenta domesticá-la, sublimá-la, sem grandes êxitos – algo sempre escapa.
Freud se interroga como o ser humano, que alcançou tão alto grau civilizatório, que sublimou de maneira prodigiosa, pode ainda estar submetido às pulsões, que explodem destruindo as criações edificadas: nem tudo pode ser sublimado.
A civilização se diz em oposição à guerra, poderia o mundo civilizado impedi-la? De que modo, se é a própria civilização que provoca a guerra, com suas exigências exorbitantes no que tange às renúncias pulsionais?
Antes da tentativa de Einstein junto a Freud, Kant desenvolveu propostas para se chegar à paz e, sem 4 demonstrar qualquer ingenuidade, propõe que a paz deveria basear-se na racionalidade. Sendo a razão, propriedade universal do humano, transforma seu projeto em um sistema universal e aposta na racionalidade humana para garantia da paz 5. Mas Kant nada cogita do inconsciente
A análise de Freud sobre a guerra, no entanto, não pode deixar de remeter a Hobbes que, com o Leviatã (1651), causou forte impacto, ao propor um estado forte e centralizador (o monstro Leviatã) capaz de submeter a natureza humana, intrinsecamente má e assassina, ou como ele afirma em Sobre o cidadão, “o homem é o lobo do homem”.
Com o construto teórico do “estado de natureza”, Hobbes se opôs à tese clássica de que a sociedade humana seria natural: para ele os humanos se reúnem em sociedade para proteger a vida, vivendo simultaneamente em dois mundos: o mundo natural, regido por leis naturais, que em nada contribuem para modelar a sociedade dos humanos e que jamais é apagado; o mundo artificial, das leis humanas e da justiça, instituído artificialmente pelos homens para garantir a vida e impedir que se assassinem.
A igualdade dentre os humanos estaria no fato de que cada um, por natureza, deseja a autopreservação: a igualdade diante da morte coloca a todos face à mesma insegurança, sendo necessário o estado civil, criado para garantir a vida do indivíduo, constantemente ameaçada pelos semelhantes.
No hipotético “estado de natureza”, vivendo livremente de acordo com seus instintos e vontades, a ameaça de morte advinda do outro é uma constante. O medo da morte, medo esmagador e universal, leva o ser humano a abrir mão da liberdade e passar a viver num estado regulado por leis, restritivo. A segurança de cada um adviria da lei, que emanaria do monstro Leviatã.
Leviatã, o estado, garante a segurança dos cidadãos ao permanecer estável, através do acúmulo de poder, acúmulo que levaria à guerra perpétua, de todos contra todos. Os estados manteriam entre si, a mesma posição vivida pelos súditos em “estado de natureza”, onde vigorava a guerra de todos contra todos.
Hobbes insiste em que o poder é o motor das coisas humanas e divinas e, se existe um “direito” natural ao ser humano, é o “direito” individual à autopreservação, direito que nega a existência de valores éticos elevados, virtudes ou quaisquer atributos morais absolutos que possam servir como critério, ou ponto de referência, para avaliar o que é justo e injusto na conduta humana. Não existe o “bem em si”, os homens são movidos pelo perpétuo e inesgotável desejo de poder que cessa apenas com a morte, dirá Hobbes, e a vida humana é este movimento incessante com o propósito único de acumular poder e evitar a morte.
Por serem todos mortais, não existe “naturalmente” grande assimetria entre os homens, dada a capacidade individual de destruir e ser destruído por um outro. Como supostamente todos os homens perseguem seus interesses imediatos, usando quaisquer meios à sua disposição, a falta de um poder forte centralizador faz retornar a a sombra da morte, inviabiliza a estabilidade das posses e a manutenção de acordos capazes de consolidar uma trama social. Nesse sentido, o ser humano continua a ser um predador assassino, tendo apenas um estado forte a coibir seus impulsos originários.
Para Hobbes, a constituição do estado desloca a violência característica do “estado de natureza” para o “estado civil” e, pensando assim, o que impediria que a rivalidade entre os estados produza incessantes guerras capazes de destruir a civilização?
Rousseau 6 critica Hobbes partindo dos problemas lógicos derivados de sua concepção do “estado de natureza”: o homem natural proposto por Hobbes não o é de fato, pois apresenta características derivadas da vida em sociedade. Hobbes descreve os homens no “estado de natureza”, num espelhamento da civilização.
Para Rousseau, o ser humano em “estado de natureza” é inocente, por desconhecer a lei. Como diz São Paulo na Epístola aos Romanos, “…eu não teria conhecido o pecado se não existisse a Lei” 7. Ao entrar em regime de “estado civil” há uma decadência inevitável, perde-se a inocência e, quanto mais civilizado tornar-se o ser humano, quanto mais desenvolvida a racionalidade, tanto mais decadente será.
Rousseau constata que a guerra é uma das pedras basilares da sociedade. Para ele, a questão da visão hobbesiana não está apenas na concepção de “natureza humana” em que ela se baseia, mas, também, no modo como Hobbes entende o termo “guerra”.
Supondo a existência de um “estado de natureza”, dado o caráter intermitente e ocasional dos contatos entre os humanos, não haveria possibilidade de um conflito generalizado. O eventual encontro violento entre indivíduos (por exemplo: dois seres famintos disputando alimento) não pode ser considerado um confronto militar, entre estados. A luta entre indivíduos e a guerra são formas distintas de violência.
A guerra é a forma extrema de conflito; opõe estados e não indivíduos. Não faz sentido falar em “guerra” no hipotético “estado de natureza” sendo a guerra possível apenas entre entidades sociais. A criação do estado, considerado por Rousseau como um ato violento, um “funesto acaso”, generaliza a tendência aos conflitos militares. A propensão à guerra é intrínseca a qualquer sistema de estatal e não pode ser evitada permanentemente: a assimetria de poder entre os estados maximiza os conflitos, visto ter sido o estado fundado na violência organizada, detentor legal da violência e intensificador de seus efeitos. Além disso, não há um limite para que um estado se considere poderoso o suficiente, havendo a constante tendência ao aumento de seu poder destrutivo. A existência mesma de um estado muito poderoso é uma ameaça à paz: os demais tenderão a aumentar o próprio poder para enfrentá-lo.
A criação do estado – e de toda a violência que ele cristaliza – é uma resposta dos ricos e poderosos para preservar sua riqueza e poder, ou seja, a consolidação de um sistema legal amparado na violência organizada, aparato do estado, é um artifício dos poderosos para garantir seu domínio e a usurpação da maioria por uma minoria.
Para Rousseau os sistemas legais são sistemas de dominação e, como não há uma autoridade ou instituição capaz de ordenar as particularidades de cada um, a sombra da guerra se faz ameaça constante. O contato entre os estados, a interdependência entre os mesmos, induz os conflitos e gera um “estado de guerra” constante: os tratados são apenas tréguas temporárias. Levando o pensamento de Rousseau às últimas consequências, uma paz duradoura seria impossível; visão pessimista que nega a ideia de Rousseau enquanto um idealista ingênuo.
Um pequeno parêntese: Voltaire, com sua verve ferina e perspicaz, dizia que, depois de ler Rousseau, vinha-lhe um desejo irresistível de subir em árvores.
Diante das posições de Hobbes e de Rousseau não é difícil pensar em Freud e no Mal-Estar intrínseco à civilização e ao indivíduo. Hobbes e Rousseau propunham um conceito de natureza humana que, independente de ser má (Hobbes) ou inocente (Rousseau) mantinham um constante atrito com a civilização.
Freud sem falar de natureza humana, atribui às pulsões que buscam satisfação e são tamponadas pela civilização em favor da construção da mesma, o mal-estar inconciliável entre o ser humano e seu desejo e o estado com suas normas e leis.
BIBLIOGRAFIA
Freud, S. O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas, Vol. 18. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.
Freud, S. Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte. In: Obras Completas, Vol. 12. São Paulo: Cia. das Letras, 2010. (p.209).
Freud, S. Por que a Guerra? (Einstein e Freud). In: Obras Completas, Vol. 18. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.
Hobbes, Thomas. Leviatã, ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Rousseau, Jean-Jacques. Os Pensadores, Ed. Nova Cultura, 1987.
Kant, Immanuel. A Paz Perpétua – Um Projeto Filosófico. Portugal: Universidade da Beira Interior, 2008.
São Paulo. Epístola Aos Romanos. 6º Livro do Novo Testamento – Bíblia Sagrada.
1 Freud, S. O Mal-Estar na Civilização. Op. Cit. p. 56/57.
2 Freud, Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte, Op. Cit.,209.
3 Freud. Por que a Guerra? Op. Cit.
4 Kant. “O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natureza (status naturalis), o qual é antes um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não exista sempre uma explosão das hostilidades, há sempre, todavia, uma ameaça constante.” Op. Cit., p. 10.
5 Kant. «Aspirai, antes de mais, ao reino da razão pura prática e à sua justiça e o vosso fim (o benefício da paz perpétua) vos será dado por si mesmo.» Op. Cit., p.42.
6 Rousseau, Jean-Jacques(1712/1728). Do Contrato Social, publicado em 1762, é um fragmento de vital importância para o pensamento político contemporâneo: Rousseau reflete sobre o papel da sociedade civil na preservação da liberdade, além de garantir a segurança de seus membros. No Discurso sobre a Origem e os fundamentos da Desigualdade entre os Homens, composto em 1753, Rousseau expõe Estado de Natureza x Estado Civil.
7 São Paulo, op. Cit.