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O Rochedo de Freud

José Wilson Ramos Braga Jr.

A literatura psicanalítica está recheada de termos, axiomas, metáforas, elaborados por Freud e Lacan, que são repetidos por nós, psicanalistas, de forma espontânea, quase medular. Um exemplo disso é que quando falamos ‘rochedo’ de Freud: o termo nos remete imediatamente ao “rochedo da castração” – obstáculo final ou o impasse do tratamento psicanalítico.

O “rochedo da castração” é uma citação atribuída a Freud e muitos dizem que a encontramos no último parágrafo de seu texto “Análise Terminável e Interminável” de 1937. Podemos ainda nos deparar com outras traduções ou interpretações do ‘rochedo’ ou ‘rocha’ de Freud, tais como: “rocha biológica”, “rocha da feminilidade”, “rocha da diferença sexual”, “rocha básica”, “rocha de fundo”.

Essa variabilidade de traduções nos levou a questionar, durante o estudo do texto “Análise Terminável e Interminável” no Seminário de Leitura da Clipp, sobre o grau de exatidão das traduções brasileiras para o termo ‘rocha’ (ou rochedo), encontrado na publicação original de Freud, em alemão, como: “gewachsenen Fels” e gewachsenen Felsens. Além disso, o termo “rochedo da castração” nos fez também refletir: é o complexo de castração que se ergue como uma rocha intransponível? Ou, ao contrário, é a questão da castração que se defronta com uma rocha de natureza ainda a ser determinada com a suposição hipotética de um aquém e um além [da rocha]? 1

Este texto é o resultado da pesquisa sobre o tema, apresentada e discutida recentemente em nosso grupo de trabalho. As principais publicações encontradas, que me acompanharão nessa escrita, são dos psicanalistas Ferdinand Scherrer e Joël Bernat cujos artigos “LE ROC…” 1 e “Le refus de la feminité et autres rocs comme résistance majeure…”  2 tentam decifrar o enigma do ‘rochedo de Freud’.

AS VERSÕES TRADUZIDAS

Comecemos com a comparação das versões traduzidas em português. No Brasil, tomamos duas como as principais traduções do texto de Freud “Análise terminável e interminável” (1937): a Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas (Ed. IMAGO), que é uma tradução realizada na década de 1970, a partir da versão inglesa3; e a mais recente Obras Completas de Freud (Ed. Companhia das Letras, 2018), a partir do original em alemão 4. Seguem abaixo as versões (original em alemão1 e em português) do último parágrafo do texto referente à nossa pesquisa.

Versão alemã Man lernt aber auch daraus, daß es nicht wichtig ist, in welcher Form der Widerstand auftritt, ob als Übertragung oder nicht. Entscheidend bleibt, daß der Widerstand keine Änderung zustande kommen läßt, daß alles so bleibt, wie es ist. Man hat oft den Eindruck, mit dem Peniswunsch und dem männlichen Protest sei man durch alle psychologische Schichtung hindurch zum »gewachsenen Fels« durchgedrungen und so am Ende seiner Tätigkeit. Das muß wohl so sein, denn für das Psychische spielt das Biologische wirklich die Rolle des unterliegenden gewachsenen Felsens. Die Ablehnung der Weiblichkeit kann ja nichts anderes sein als eine biologische Tatsache, ein Stück jenes großen Rätsels der Geschlechtlichkeit. Ob und wann es uns in einer analytischen Kur gelungen ist, diesen Faktor zu bewältigen, wird schwer zu sagen sein. Wir trösten uns mit der Sicherheit, daß wir dem Analysierten jede mögliche Anregung geboten haben, seine Einstellung zu ihm zu überprüfen und zu ändern.

 

Versão português IMAGO Mas também aprendemos com isso que não é importante sob que forma a resistência aparece, seja como transferência ou não. A coisa decisiva permanece sendo que a resistência impede a ocorrência de qualquer mudança – tudo fica como era. Frequentemente temos a impressão de que o desejo de um pênis e o protesto masculino penetraram através de todos os estratos psicológicos e alcançaram o fundo, e que, assim, nossas atividades encontram um fim. Isso é provavelmente verdadeiro, já que, para o campo psíquico, o campo biológico desempenha realmente o papel de fundo subjacente. O repúdio da feminilidade pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo. Seria difícil dizer se e quando conseguimos êxito em dominar esse fator num tratamento analítico. Só́ podemos consolar-nos com a certeza de que demos à pessoa analisada todo incentivo possível para reexaminar e alterar sua atitude para com ele.
Versão português Cia das Letras Mas também se aprende, com isso, que não é importante de que forma a resistência aparece, se como transferência ou não. Decisivo é que a resistência impede que se dê alguma mudança, que tudo continua como era. Muitas vezes temos a impressão de que, com a inveja do pênis e o protesto masculino, penetramos por todas as camadas psicológicas até a “rocha básica” e, portanto, ao fim de nosso trabalho. Deve ser isso mesmo, pois o plano biológico realmente desempenha, em relação ao psíquico, o papel de rocha básica subjacente. A rejeição da feminilidade pode não ser outra coisa senão um fato biológico, uma parte do grande enigma da sexualidade. Se e quando conseguimos dominar esse fator, num tratamento analítico, será difícil de dizer. Consolamo-nos com a certeza de que oferecemos ao analisando todo estímulo possível para revisar e mudar sua atitude para com ele.

A problemática da tradução de “gewachsenen Fels”/gewachsenen Felsens também se encontra em outros idiomas:

  • Em francês: roc/roc (versão 1939) e “roc d’origine”/roc d’origine (versão 1985)
  • Em inglês: bedrock/bedrock (versão 1964)
  • Em espanhol: roca viva/roca viva

Observamos, então, diferenças radicais nas traduções das versões em português e mesmo nos outros idiomas citados acima. Distintas também são as traduções interpretativas do ‘rochedo’ ou ‘rocha’ de Freud (“rochedo da castração, “rocha biológica”, “rocha da feminilidade”, “rocha da diferença sexual”) que parecem ser não somente reducionistas como também parciais.

Algumas hipóteses podem ser aventadas para esse deslizamento entre os termos, os artefatos de traduções e os excessos de interpretação1:

  • as preferências pulsionais dos autores/tradutores.
  • as filiações da Escola, os centros de interesse e os preconceitos dos autores/tradutores.
  • a necessidade de dar um sentido ao enigma (da rocha), parecendo fornecer a solução a partir de sua nomeação: a castração, o biológico, a feminilidade, a diferença sexual…
  • projeções transferenciais daquilo que é lido, observado e comentado pelos leitores-intérpretes (“não há leitura sem efeito de transferência”). 2
  • projeções da realidade psíquica do leitor-tradutor.

A leitura da ‘língua de Freud’ não é realmente uma tarefa fácil para o leitor que desconhece seu estilo1. As traduções realizadas podem levar ao apagamento das asperezas do texto podendo se aproximar de uma ‘censura’. Talvez os tradutores se sintam impelidos pela pressa na suposição e pela exigência desesperada de sentido ao se deparar com aquilo que lhes escapa, o ‘fora-de-sentido’ apontado por Freud, que eles não reconhecem: sua própria castração. Não se trata, nesse caso, da castração edipiana, mas de uma castração bem mais primordial atestada pelos tradutores. Freud aponta uma resistência que é comum a todos, que se manifesta no analisando sob o divã, no analista durante a análise e pode também se manifestar no leitor. Ao traduzir, ler ou comentar sobre um texto, ou mesmo pensar nisso, corre-se o risco de fazer falar sua resistência em escutar aquilo que ela pode tocar, despertar no eu [moi].

O último parágrafo do texto de Freud descrito acima, embora possa aparentar simplicidade, é muito denso e de uma complexidade impressionante. Trata-se da ‘conclusão’ de uma questão sempre difícil que é o ‘final de análise’, que diz respeito a um enigma, o enigma da “rocha” (ou do “rochedo”) e que dá tanto trabalho aos tradutores: o “gewachsenen Fels”.

“Gewachsener Fels” e gewachsener Felsen

Os termos acima foram utilizados por Freud para descrever sua “rocha”, aquela que faz obstáculo no caminho de uma análise e ao mesmo tempo aquela que é a base da vida psíquica. Numa tradução livre no tradutor do Google encontramos: rocha cultivada; bedrock ou grown rock (em inglês); roche cultivée (em francês) e roca cultivada (em espanhol). Nas versões em inglês, o termo bedrock  é utilizado nas traduções e para ambas formulações de Freud. Resta a saber qual é a melhor versão para designar aquilo que Freud quis transmitir em seu texto.

O termo “rochedo da castração” em alemão seria Kastrationsfels ou Fels der Kastration, e rochedo biológico corresponderia a biologischer Fels ou Fels der Biologie. Podemos nos perguntar o porquê de Freud não ter utilizado nenhuma dessas expressões tão marcantes.

Freud escreve a primeira fórmula entre aspas (“gewachsenen Fels”) que poderia indicar uma citação ou um empréstimo, pode ser ainda a marca de uma ressalva ou insatisfação quanto à escolha dessa expressão. A tradução de Paulo César de Souza (Cia das Letras) assim como a de Laplanche (edição francesa de 1985) mantêm essa tipografia.

Um outro fato muito importante é que foram utilizados o mesmo termo rocha ou fundo (assim como em outros idiomas), para descrever aquilo que Freud chama Fels e Felsen, como se indicassem a mesma coisa, entretanto, são indicadores de perspectivas diferentes sobre a mesma realidade.

“Der Fels” e der Felsen

A distinção desses dois termos passa sempre despercebida entre os tradutores e comentadores do texto de Freud. Mas existem algumas razões para que diferenciemos o sentido dessas duas palavras cujo significado é “rocha” ou “rochedo”.

Do ponto de vista puramente gramatical são duas palavras distintas. Scherrer descreve bem essas questões em seu artigo1, e se interroga sobre o motivo que pode ter levado Freud a escrever nessas duas formas:

  • Teria sido erro gramatical de Freud? Improvável, mas possível.
  • Um erro do tipógrafo que passou despercebido pelo autor durante a revisão? Talvez.
  • Freud poderia ter considerado os dois termos como sinônimos.

A leitura atenta e repetida do autor o levou a identificar uma distinção e sublinhar a diferença estilística entre os termos: Fels e Felsen não designam a mesma coisa. Vejamos suas diferenças marcantes no quadro abaixo.

“Fels” Felsen
Fels seria o nome da barreira da resistência final no curso da análise, no final da travessia, pela passagem [passe] das resistências, de toda estratificação psíquica até o estrato semântico da questão, do complexo de castração* – protesto viril (nos homens) e Penisneid (nas mulheres) = reivindicação fálica.

A questão da castração no registro imaginário e simbólico – do mito, da narrativa, da historização, da construção e da interpretação do analista e do neurótico.

O “rochedo” seria a metáfora da questão da castração, de um corte mais radical, a rocha de um real que resta fora de sentido.

Felsen designaria uma base, alicerce, ou fundação subjacente, que ainda precisa ser determinada, mas que não basta apenas caracterizá-la como “biológica”.
Fels é de uso antigo e significava, em um primeiro sentido, uma rocha no mar, um recife – um obstáculo, uma passagem delicada e difícil. Felsen se refere imediatamente aos campos da mineralogia e geologia onde seu uso é comum, e o Fels utilizado apenas por analogia.
Sentido de: dureza, solidez, firmeza ou mesmo inflexibilidade e inexorabilidade, mas também confiabilidade. Sentido de: ponto de apoio, uma base, uma fundação ou mesmo de princípio (origem).
No contexto freudiano, o valor da palavra Fels é puramente metafórico – de seu referente mineralógico retém apenas o traço de dureza que evoca a impenetrabilidade do obstáculo e a resistência inquebrável – uma rocha sinistra, opressiva ou ameaçadora no caminho da interpretação e, deve-se acrescentar, da construção do analista. O uso do substantivo Felsen também é metafórico. Mas, nesse caso, a metáfora é menos sinestésica e mais descritiva, menos patética e mais teórica, menos formal e mais substancial do que para Fels.

Os vínculos com o referente geológico são, do ponto de vista estrutural, mais preservados: o biológico sendo em estratos psíquicos o que a rocha profunda é em camadas sedimentares.

De fato, Freud não diz que o biológico é a rocha subjacente, mas que “desempenha o papel” pelo psíquico, ele é, por assim dizer, o lugar ou o representante.

* Freud nunca usa a palavra “castração” isoladamente, mas sempre associada à fantasia ou à angústia, e, em nenhum caso, associada à “rocha” ou “rochedo”.

Os termos Fels, Felsen e biológico, portanto, vêm, cada um em um nível diferente da elaboração, para metaforizar, para dar sentido a uma realidade enigmática, que tem relação com a essência ou a estrutura da resistência e seu correlato metapsicológico, o recalque e, digamos – imediatamente, do “recalque originário”, que é a fonte secreta do enigma – que caracteriza este último parágrafo – para a feminilidade e a sexualidade.

Para Freud, é o biológico que forma a base (o solo) do psíquico, aquele da feminilidade em ambos os sexos. Esse biológico provoca uma rejeição, sua manifestação psíquica que, na situação analítica e transferencial, produz uma resistência, qualquer que seja o sexo do sujeito. Essa rejeição à feminilidade seria a representação psíquica da rocha que é sua expressão, a base biológica. 2

Gewachsen

Vejamos agora o termo Gewachsen, aquele mais espinhoso para os tradutores. A maioria deles simplesmente o eliminou, como evidenciamos nos exemplos das traduções que destacamos acima. Seu significado associado a Fels e Felsen pode confundir até um germanista. Encontrar a palavra correspondente em outro idioma é uma verdadeira dor de cabeça.

Em francês,  Laplanche utiliza o termo “d’origine” (de origem), mas a referência à origem não aparece em gewachsen; Freud certamente teria utilizado outras locuções mais adequadas como: Ursprung, primitiv, primar, que formariam: Ursprungfels (rocha de origem), primitiver Fels (rocha primitiva), primärfels (rocha primária), Urfels (rocha originária ou original). Em português temos o termo “básica” (talvez “de base” fosse uma melhor versão), que se aproxima mais do sentido de gewachsen.

Gewachsen é a forma adjetivada do particípio passado de wachsen, que significa crescer (croître, grandir, pousser – reservado para os organismos vivos (utilizados para metáforas orgânicas). Mas seu uso figurado é polissêmico como são frequentemente as metáforas orgânicas, particularmente à época de Freud. Gewachsen, portanto, não significa crescimento, embora muitos o tenham entendido assim. Pode-se traduzir como a “rocha crescente”, que fica de pé, a pedra vertical, em suma, uma representação fálica. Isso certamente contribuiu para o sucesso da designação “rochedo da castração”.

Denomina-se ein gewachsener Boden um solo que se desenvolveu e evoluiu sem sofrer nenhuma transformação, nem qualquer outra intervenção de qualquer natureza pela mão do homem, que não experimentou o mergulho [le soc] do significante, pode-se dizer. Gewachsen, então, tem o sentido de natural, virgem, selvagem, de pousio. Evoca a densidade, o caráter impenetrável ou bruto, no sentido de que estamos falando de um minério bruto. Esse é um dos sentidos mantidos aqui por Freud que já havia recorrido a essa metáfora do solo natural em textos passados. 5,6

Ein gewachsener Felsen tem o significado de uma rocha dura (sólida) que permaneceu no lugar de sua formação ou seu ponto de emergência na superfície da terra, sem nunca ter conhecido nenhum deslocamento natural ou artificial e que, além disso, não sofreu nenhuma transformação ou alteração devido à erosão ou à intervenção humana. Na geologia onde ele tem o senso geral de rocha de base, sinônimo de Urfels (rocha originária) – bem traduzida pela tradução em inglês, bedrock, de rocha-mãe (rocha de base, rocha básica). Gewachsener Felsen, a rocha originária, ainda intacta, da vida e da sexualidade.

Enquanto “gewachsener Fels” se refere à ideia de limites, de limite, de fronteira; gewachsener Felsen tem o significado explícito de alicerce, pedestal, base, fundação sobre a qual repousa e apoia estratificações psíquicas, como as camadas sedimentares sobre a rocha da qual elas provêm. Essa rocha não designa “castração”, mas é a metáfora do “recalque originário” (Urverdrängung).

A Rejeição da Feminilidade

Freud segue para finalização de seu texto e escreve sobre a feminilidade como fato biológico – enigma da sexualidade, e a posição do analisando frente a esse fator. Como segue:

“A rejeição da feminilidade pode não ser outra coisa senão um fato biológico, uma parte do grande enigma da sexualidade. Se e quando conseguimos dominar esse fator, num tratamento analítico, será difícil de dizer. Consolamo-nos com a certeza de que oferecemos ao analisando todo estímulo possível para revisar e mudar sua atitude para com ele.”

Freud se confronta com a resistência do analisando, ou seja, sua rejeição à feminilidade, como a uma rocha – pela força da “escavação”, chega a encontrar a “rocha viva”.2 O encontro com o “biológico” como resistência. As diferentes traduções são também o eco das distintas posições dos autores-tradutores sobre o “biológico” de Freud, isto é, a sua própria relação psíquico-biológica, de acordo com os estratos que eles mesmos atravessaram ou não. É daí que podem surgir as discrepâncias nas traduções e as interpretações equivocadas.

Mas o que seria esse “biológico” para Freud? A relação com o biológico, em Freud, é uma constante e ele sempre manteve essa questão do biológico em diferentes elaborações. E um dos principais pontos, concernentes à nossa pesquisa, é que, do início ao fim de sua obra, Freud sustenta que a função primária da psique é lutar contra toda excitação: a psique recusa fundamentalmente a excitação.

E toda vida psíquica será uma tentativa de lutar contra a excitação, cancelá-la ou desviá-la, mas não suprimi-la completamente – o equilíbrio e a vida psíquica exigem o jogo dialético de duas pulsões: Eros, que excita e Thanatos que se opõe, isto é, uma mistura e um confronto permanente de excitações e defesa contra a excitação2. Podemos denominar essa defesa também como pulsão de morte.

“Estar excitado(a)” [Être excité(e)] é representado pelo termo “feminino”, como uma posição feminina, contudo, esse feminino não se relaciona com a diferença anatômica, mas com a bissexualidade psíquica. Portanto, esse feminino diz respeito a ambos os sexos. A excitação é experimentada como passividade na medida em que a vivenciamos. Fazendo um contraponto, diz-se que a libido é “masculina” (aqui também, não no sentido anatômico), pois é uma ação sobre um objeto, a fim de extinguir a excitação. Nesse sentido, ele é ativo e está ao serviço de Thanatos, na medida em que procura suprimir a excitação.

Feminino” e “masculino” são aqui traduções psíquicas de mecanismos biológicos fisiológicos fundamentais. Freud já nos alertara sobre as noções de masculino e feminino, e que vinculá-las a características psíquicas é se adaptar à anatomia e às convenções: “Essa distinção não é psicológica”.7  Portanto, desde que não seja encontrada uma definição psicanalítica satisfatória para o par masculino e feminino, a noção de bissexualidade pode “influenciar nossa pesquisa e dificultar qualquer descrição”.8

Freud indica em suas formulações uma maneira pela qual a psique reage ou interage com o biológico. Ao longo de seus escritos, ele manteve esse dualismo e criou os conceitos de pulsão e afeto como sendo elementos entre o biológico e o psíquico, representantes da passagem de um mundo biológico para um mundo psíquico. O biológico é o solo primário a partir do qual o psíquico se desenvolve e se constrói pelas experiências vividas que são depositadas neste solo como sedimentos, em camadas sucessivas.

O tratamento analítico consiste em um retorno a essas experiências narradas, significadas e ressignificadas ao longo da jornada analítica. Mas há sempre um resto que resiste à significantização. É o impossível de dizer que corre nas últimas linhas do texto de Freud até o enigma da feminilidade, da diferença sexual, do vivente, vivente sexuado. Um resto que resiste à interpretação, “o ponto de falta-de-significante”.9

 


1 Ferdinand Scherrer. «Le roc…», in Essaim 2011/2 (n° 27). https://www.cairn.info/revue-essaim-2011-2-page-83.htm
2 Joël Bernat : « Le refus de la féminité et autres rocs comme résistance majeure… » (et quelques modes de résistance à la notion de résistance). http://www.dundivanlautre.fr/lexique-freudien/joel-bernat-le-refus-de-la-feminite-et-autres-rocs-comme-resistance-majeure-et-quelques-modes-de-resistance-a-la-notion-de-resistance
3 Mariangela O. Kamnitzer Bracco. JORNAL de PSICANÁLISE 45 (83), 233-241. 2012. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v45n83/v45n83a19.pdf
4 Sigmund Freud. Análise Terminável e Interminável (1937) – Cia. Das Letras – 2018. Tradução: Paulo César de Souza. https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14486
5 Sigmund Freud, « Formulations sur les deux principes du cours des événements psychiques » (1911), dans Résultats, idées, problèmes I, Paris, PUF, 1984 (souligné par moi). Rappelons que cet article a été influencé par la lecture du livre d’Otto Rank sur l’artiste: Der Künstler, Ansätze zu einer Sexualpsychologie, Leipzig und Wien, 1907.
6 Sigmund Freud, Conférences d’introduction à la psychanalyse (1916-1917), Paris, Gallimard, 1999, p. 473.
7 Sigmund Freud (1933), « La féminité » in Nouvelles conférences d’introduction à la psychanalyse, Gallimard, 1984, p. 150-181.
8 Sigmund Freud, (1938), Abrégé de psychanalyse, P.U.F., 1985.
9 Jacques Lacan, L’angoisse, op. cit., p. 159.