Noemi Araujo (CLIPP)
Foto: Léli Baldissera
Nessa conversa com a psicanálise, a artista Élida Tessler escolheu estas fotos, (ver figuras), da sua Instalação INDA, por percebê-la como um texto, uma frase, uma confidência, um testemunho de resistência. As palavras da artista nos informam sobre a obra:
“O título do trabalho é INDA (1996). Foi composto de 69 meias de náilon (daquelas usadas com a antiga cinta-liga e não as meias-calças mais atuais). Todas pertenceram à minha mãe, cujo nome em ídiche é INDA. Em português é IDA. Filha de imigrantes da Bessarábia-Ucrânia, Ida viveu tempos de guerra. Dessa experiência, ficou algo do valor das coisas simples de uso cotidiano, da negação ao desperdício e da possibilidade de cuidado com seus pertences como se fossem a sua própria pele. Para selecionar as 69 meias dentre tantas outras estocadas ao longo de vinte anos, estabelece o critério da marca, da cicatriz, do rasgo: todas as meias são “cor de pele” e têm uma costura feita à mão para “cerzir” o fio puxado. Seria este o fio puxado da história? Essas costuras produzem desenhos incríveis na superfície do náilon, bem como os furos que não puderam ser consertados. São grafias do buraco que um lápis na mão de um artista jamais poderia produzir.” (Elida Tessler, maio de 2022).
Foto: Léli Baldissera
Foto: Léli Baldissera
Elida se apropriou do termo imigrantes, ao referir-se à condição da sua mãe que, como milhares de judeus durante a Guerra, tiveram seus laços sociais rompidos. Ao se distanciar da sua própria língua, o ídiche, eles aprenderam outras para recomeçar a vida espalhados pelo mundo. “Não gostamos de ser chamados de refugiados. Chamamo-nos uns aos outros ‘recém-chegados’ ou ‘imigrantes’”, diz Hanna Arendt em Nous autres réfugiés (1943). Assim, os judeus mudaram o sentido do termo “refugiados’’ por saberem da inexistência de algum ato que os condenariam ao refúgio.
Com Viena tomada pelos nazistas, a sociedade psicanalítica foi fechada, Freud rompeu definitivamente seu laço social com o país e perdeu suas quatro irmãs: Rosa, Mitzi, Dolfi e Paula exterminadas nos campos de Auschwitz, Theresienstadt e Treblinka. Uma testemunha de Nuremberg referiu-se a uma idosa que se identificou como irmã de S. Freud ao implorar emprego ao oficial, no acolhimento de Treblinka. Após conduzi-la a uma estação, dizendo-lhe que em poucas horas o trem a levaria de volta a Viena, sugeriu-lhe deixar seus objetos de valor, documentos e tomar uma ducha – nunca mais foi vista (Löwenthal, 1989).
Como na Guerra as máscaras caem, desvelou-se o lugar essencialmente vazio da mulher no seu encontro com o Real. Os semblantes – nome de família importante – e o de trabalhadora, não salvaram aquela idosa. É sabido que, nessa mesma contingência, uma mulher rica podia fugir em troca de joias, dinheiro ou prostituindo-se. Porém, isso não significa que o lugar dessas mulheres não seja igualmente vazio, como o daquela que acreditou na ação e nas palavras do homem que a enganou e a expropriou antes de enviá-la à câmara de gás.
Ao dizer A mulher não existe, Lacan explicita existir mulheres – uma a uma. Para Miller, isso não quer dizer que “o lugar da mulher não exista, mas que esse lugar permanece essencialmente vazio. E o fato de ele ficar vazio não impede que algo possa ser encontrado ali” (Miller, 210). Não significa também que “Não há feminino pois há gozo feminino que não responde à lógica do universal” (Marie-Hélène Brousse, 2012).
II
A atual Guerra entre Rússia e Ucrânia ainda não é maior e nem pior que as outras, mas é a de maior visibilidade. Na sociedade da transparência, qualquer informação pode viralizar e cair nas malhas da guerra paralela de narrativas e Fake News. A blogueira ucraniana Marianna Podgurskaya teve um vídeo seu viralizado e desmantelado após a ampla divulgação, também pela imprensa conservadora, como uma prova de que os russos estavam matando criancinhas na Ucrânia. Nele, as imagens do rosto machucado de Marianna, como efeito de maquiagem, no instante da sua internação para dar à luz, foram misturadas com imagens de explosões de guerras de outros países e não da Maternidade de Mariupol. A viralização da imagem da deputada ucraniana Kira Rudik com uma arma nas mãos motivou outras mulheres a imitá-la. “É assustador, mas estou com muita raiva”, disse Kira.
A primeira-dama da Ucrânia, Olena Zelenska, tem entupido suas redes com imagens de semblantes de jovens fantasiadas de soldados, manuseando armas como se fossem brinquedo ou joia. Dita a moda – Uniformize-se! – nesse recrutamento virtual do ódio ao outro. Para Marie-Hélène Brousse, a moda traz “marca do que Lacan chama de discurso do mestre da época (…) um discurso sem falas, que se constitui num determinado momento histórico” (2019, 87). Assim funciona a rede social, tal qual o quadro Embaixadores de Holbein, (1533) “uma armadilha de olhar” (LACAN. Seminário 11, p.88). Como sublinhou Marie-Hélène, “o olhar não remete às imagens e, portanto, ao imaginário, mas sim ao real, um real alocado no simbólico. Nesse teatro virtual, quanto mais se vê a imagem, menos há de olhar” (Brousse, p.116).
Ao postar no Instagram: Nossa resistência atual tem um rosto feminino, Olena alude ao já clássico A Guerra não tem rosto de mulher, livro publicado originalmente em russo (1983). Neste, a Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch deu visibilidade a um ponto de vista feminino silenciado por quatro décadas, versando sobre a participação de um milhão de mulheres recrutadas na Rússia para a luta de resistência aos nazistas: artistas, lavadeiras, padeiras, costureiras, enfermeiras, médicas, pilotas, engenheiras, estrategistas etc. Muitas fugiram de casa para se alistar, ainda adolescentes. Enquanto umas fugiam do país, outras permanecem no lugar de Penélope tecendo sua esperança de ter seus maridos voltando vivos, ao final da guerra.
Do que falaram essas mulheres? De sangues, cheiros, texturas, impressões, afetos, dores, sensações e sentimentos implicados na experiência da guerra. Evocam o vazio de objetos, de semblantes do feminino, ao falar da esquisita penetração nesse universo próprio dos homens, no uso das fardas e calçados de numeração masculina, no manuseio de tanques e armas.
Isso além de se deserdarem de funções ditas de mulher: filha, irmã, esposa ou amante, mãe. Era do lugar de uma figura do feminino refugiada de sua feminilidade que elas vinham testemunhar. Da alusão à inexistência do absorvente, por exemplo, ecoaria o imperativo – Masculine-se!, não somente pelo seu valor de uso, mas também por ser o único objeto de semblante exclusivo do universo feminino.
Ao recuperar um dos objetos de semblantes particulares do feminino, a instalação de Élida escapa desse imperativo… O INDA tem rosto de uma mulher pois a artista produz um discurso sobre o singular de uma mulher, e na contingência da guerra.
Ao final da guerra os homens foram recebidos como heróis e combatentes e as mulheres com preconceitos, por grande parte da sociedade, mas sobretudo por parte das Penélopes que viam nelas a figura da provável puta, ou da amante dos seus maridos no campo de batalha. Hostilizadas, impedidas de falar sobre essa experiência no campo de batalha, elas experienciaram um segundo refúgio – o silêncio. Um ódio entranhado nas várias camadas da guerra explodiu também nas diferenças entre Penélopes e heroínas. Seguindo Freud, em L’encore à corps (11/04/20220), Guy Briole diz: “a causa de uma guerra nem sempre é dita”. Há um ódio “visceral ao outro”, “inextinguível à semelhança” que marca os absurdos da guerra (11/04/2022).
Com Lacan, pode-se pensar nessa circulação excessiva de discursos imagísticos com muita velocidade e, sem o recurso do anteparo, como uma escassez de véu para mascarar algo. Sem isso não se consegue olhar para algo perdido. Dito de outro modo, olhar sem que “a falta falte.” “O anteparo restabelece as coisas em seu estatuto de real “(LACAN, p.105).
O anteparo pode ser aqui tomado como algo do lado daquela figura feminina, as refugiadas, tal como nomeadas, não sem escândalo, pelo então deputado paulista Arthur do Val? Val tomou o adjetivo fáceis para (des)qualificar um determinado grupo de jovens ucranianas devastadas, em situação humilhante de fuga da guerra. Associando seus corpos à mercadoria barata, Val não só desmascarou seu próprio semblante (humanitário) como encobriu algo do mistério dessa figura ao escolher o recurso do áudio para publicar esse feito.
Através do objeto voz, num tom embriagado de fantasmas sexuais, o locutor encobre algo enigmático dessa figura feminina emblemática da guerra transformando-a em fácil conquista amorosa. Provavelmente, isso sustentou algum semblante que poderia ser aniquilado em caso de uma imagem viralizada. Com Marie-Hélène, indago se é de um corpo feminino associado ao ideal proveniente de uma “imagem situada em posição de menos phi, um falo” que esse áudio evocou. (p.28).
Existe “algo que, para as mulheres, sob o aspecto de serem vendidas e compradas, é universal (…) basta ver na Internet, (…) há algo no feminino, na condição de orgânico, que tem afinidade com o objeto em sua condição de objeto de troca (…) as mulheres, de certo modo, sempre são objetos de troca” (p.22). Isso nos remete àquela mulher que sem a menor possibilidade de escolha, não mantivera nem a chance de ser trocada como objeto, de imigrar e, completamente despida de suas referências indenitárias se aniquilasse, como a irmã de Freud.
Como Sigmund Freud e Ida Tessler, as ucranianas que precisam romper seus laços sociais com a língua e com o país hoje, o fazem do lugar da figura do feminino tal como retratado no cinema neorrealista italiano? Nos filmes de guerra em particular, a mulher tende a só aparecer em cena para revelar-se objeto da violência, normalmente legitimada pelo discurso ideológico do homem, como na personagem de Anna Magnani com seu rosto aflito, torturado e exageradamente feminino, em Roma cidade aberta, realizado por Rossellini na cidade ocupada pelos nazistas até 1945; o desespero silencioso de Ingrid Bergman, em seu refúgio isolado na inóspita aldeia vulcânica de Stromboli, do mesmo diretor; ou o pavor de Sophia Loren tentando proteger-se e à sua filha da violência a céu aberto, em Duas mulheres, de Vittorio De Sica.
Ao contrário daquele áudio do dito “deputado-missionário” (cassado em 17.05.2022), a maioria das imagens de ucranianas deixando o país divulgadas na mídia tradicional hoje, são de mulheres devastadas, em geral falando do lugar de mãe: cuidadora e protetora: nos escombros, trens, estações, estradas, descampados e fronteiras. São rostos femininos que são vistos, ao contrário também daqueles postados nas redes sociais de mulheres fazendo semblantes de soldadas.
REFERÊNCIAS:
ALEKSIÉVITCH, S. A Guerra não tem rosto de mulher. [1983] São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 392.
ARENDT, H. “Autres réfugiés” [1943], Allia, 03/01/2019, Paris.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio: Jorge Zahar, 1985.
LAMY, M.I., Ata do Seminário de Leitura – SEMINÁRIO 11: Os Quatro Conceitos da Psicanálise. Coordenação: Maria Inês Lamy, transcrição e ata: Nádia Aslan, EBP-RJ, 10/12/2021.
LÖWENTHAL, H. L. “L´émigration de la famille Freud em 1938”, RIHP 2 1989, pp.459-460.
BRIOLE, G. L’encore à corps. 11/04/2022.
BROUSSE, M.-H. Mulheres e discursos. Rio: Contra Capa, 2019
___________ “O que é uma mulher?”, Latusa Digital, ano 9, nº49, 2012, p.19.
MILLER, J.-A. “Mulheres e semblantes II”, Opção Lacaniana Online, março 2010, p.2.
Áudio: Do Val. A. https://www.youtube.com/watch?v=cJ-n8-Gn1Tc
Filmes:Duas mulheres (1960) de Vittorio De Sica, com Sophia Loren, ambientado na Itália durante IIª Grande Guerra Mundial.
Roma cidade aberta (1947) de Roberto Rossellini, com Anna Magnani, ambientado na Roma ocupada por nazistas em 1944-45. Lik: https://www.youtube.com/watch?v=gcRbKX2MeF
Stromboli (1950) de Roberto Rossellini, com Ingrid Bergman, ambientado na Itália durante a IIª Guerra. Link: https://www.youtube.com/watch?v=xWYj9B6HR-o
Fotos: BALDISSERA, L. 69 meias de náilon e pregos. Instalação INDA. Exposição aINDA (1996), de Élida Tessler. Galeria de Arte da Unicamp, em Campinas/SP. Disponível em