O Lugar do Segredo*
Por Marie-Hélène Brousse
É como psicanalista que sou convidada para esta conferência. É a tecnologia que torna possível a minha presença com vocês hoje neste debate em Turim.
Eu poderia me contentar com isso. Mas de forma alguma. Eu gostaria de estar em Turim, “em carne e osso”, como dizemos em francês. Respirar o ar da cidade, abraçar meus amigos, ir tomar um drink e jantar em uma cidade onde a cozinha é refinada e o vinho também, rir e passear “pra valer” como dizem as crianças… A tecnologia me permite participar de uma discussão sem o corpo: tudo o que resta é a voz, a fala e o pensamento. ‘É melhor do que nada’, você diz. Sem dúvida. Na minha disciplina, a psicanálise, trabalhamos com o enodamento do que Lacan chamou de “três dimensões”: o imaginário, o simbólico e o real. O imaginário está aqui: você vê a imagem do meu corpo e eu vejo o seu. O simbólico também está aqui: você ouve minhas palavras, ditas em italiano com meu sotaque francês. Mas o real? Ele só pode ser apreendido nesta conferência pela ausência do corpo.
Vamos entrar no tema proposto e pensar nos efeitos da tecnologia nos seres humanos. A tecnologia não é nada nova. É até um dos alicerces das sociedades humanas, como a arqueologia demonstrou. A partir de 1964, o eminente etnólogo, arqueólogo e historiador André Leroi-Gourand, trouxe à luz o vínculo fundamental entre a cultura e a evolução da tecnologia em sua obra O Gesto e Palavra. Hoje, sendo o modo de produção hegemônico capitalista, passamos para o consumo de massa. Como a ânsia por objetos é produzida nas massas? O acúmulo de dados e a disseminação de informações, via smartphones e computadores, são estimulados: “Gostou desse objeto, livro, música? Você também pode gostar deste outro produto.” As mensagens nos chegam às centenas, tocando em nosso apetite por esses objetos que Lacan batizou de latusas em seu Seminário de 1970, O Avesso da Psicanálise: “O mundo está cada vez mais povoado de latusas.” É onde ele descreveu como a “aletosfera” este mundo no qual a verdade recebe um “tratamento formalizado”.1 Este é o mundo no qual vivemos. Atualmente, o acúmulo de dados e suas aplicações estatísticas dominam o mercado de objetos. As mensagens que chegam até nós nos são endereçadas com nosso nome próprio, até mesmo pelo nosso primeiro nome. É a familiaridade de uns-sozinhos [ones-all-alone], ou melhor dizendo, uns que acreditam estar sozinhos. As massas são controladas por algoritmos que espelham os objetos descartáveis que capturam seus desejos.
A verdade tem a estrutura de ficção, disse Lacan. Recentemente, um dos filmes de James Grey, Ad Astra, em português “Rumo às estrelas”, revela a magnitude e o futuro das novas tecnologias que continuam a se desenvolver em nossa realidade mundana. Um astronauta da NASA, o herói do filme, é encarregado de uma missão para encontrar seu pai que desapareceu dezesseis anos antes, durante uma operação de pesquisa extraterrestre. Vamos deixar o enredo totalmente clássico da história de lado e voltar nosso interesse para o universo no qual essas pessoas estão vivendo. É um universo onde a tecnologia impera. Um exemplo: regularmente, os humanos, onde quer que estejam, na Terra ou em outros planetas, devem se apresentar diante das máquinas: sob suas peles, eles têm um chip que permite que as máquinas façam um diagnóstico físico e mental. Ou seja, os ditos instrumentos, que surgiram da tecno-ciência, verificam – enquanto condensam todo o discurso – se os humanos estão aptos a cumprir a missão que lhes foi designada e se eles são vítimas de um afeto que prejudicaria suas capacidades operacionais. Não há mais necessidade de psicólogos ou médicos. As máquinas são suficientes para avaliar a saúde física e mental, os pensamentos e as emoções que habitam o corpo.
Então, as novas tecnologias, por meio do uso de algoritmos, virão para derrotar os seres de fala? Já estão à procura de nossas escolhas, nossos gostos, nossos hábitos e nossos movimentos. A sentença de morte soou para a psicanálise? Essa disciplina, para sempre odiada pelos poderes do estado, essa disciplina fundada na linguagem articulada e no poder da fala e cujo objeto é o material verbal das palavras, logo será obsoleta? O analista será substituído por um terminal na rua ou em um hospital?
Você entendeu que a questão é ética e não técnica.
Com efeito, a técnica psicanalítica não se priva da orientação do sujeito da ciência ao qual está vinculada desde sua origem. Ouvimos nossos analisandos. O que isso implica? Determinar um elemento na sequência de palavras que surgem da associação livre, denominado por Lacan como “ponto de basta”, elemento que comanda o deslocamento da cadeia falada. Isso implica também no estabelecimento de uma cadeia de significantes que constitui o ser do sujeito, ou melhor dizendo, sua falta-a-ser. O objetivo, como nos ensinam os testemunhos ao final do tratamento, é a redução e extração de um termo que denomina a escolha de satisfação ou de gozo do sujeito. Portanto, como psicanalistas, atuamos sem ignorar o que pode ser chamado de programa de gozo de um ser falante. Como analistas, nos compete poder deduzi-lo das palavras do sujeito. Nosso objetivo, entretanto, é outro. Porque, embora vejamos esse esboço vir a se definir, ele não tem outro valor senão o saber que o sujeito extrai dele para orientar sua vida e suas escolhas. O saber obtido, que está em jogo em uma análise, é uma conquista que se deve ao sujeito e apenas a ele, em sua irredutível singularidade. Além disso, o analista é excluído no final do trabalho, “sicut palea”, como estrume, diz Lacan, valendo-se da expressão de São Tomás de Aquino 2. É o que nos permite mostrar que o discurso analítico, ao contrário de outros tipos de discurso, não é um discurso de dominação. O saber adquirido na e pela própria análise de alguém é, portanto, o avesso do conhecimento adquirido pelos dados e pelas estatísticas que visam interferir nas escolhas do sujeito. A propósito, uma nova profissão foi criada nas mídias sociais, Facebook, Instagram, Twitter: “influenciadores”. Os psicanalistas são o avesso dos influenciadores.
O avesso da psicanálise é o segredo. Se hoje a tecnologia permite agrupar as escolhas do sujeito – inclusive as mais íntimas – em uma pasta de dados, no cenário psicanalítico as declarações aí relatadas são objeto de um segredo absoluto. Sem pasta, sem gravação, sem coleta de informações. Se alguém pede para fazer uma análise, as entrevistas preliminares permitem ao analista decidir se essa pessoa pode entrar no dispositivo psicanalítico. É assim que alguns de nossos colegas latino-americanos receberam solicitações de narcotraficantes. Eles recusaram a eles a entrada na análise. Existem contraindicações para a experiência psicanalítica. O segredo é uma coisa rara. Você percebe que aquele ligado à confidencialidade não é o analisando. O sigilo é imposto apenas ao analista. Obviamente, incide tanto sobre a identidade quanto sobre o sintoma, na medida em que é atribuído a um nome próprio. Lugares para o segredo tendem a ser cada vez mais escassos. No entanto, o segredo é um dos alicerces da possibilidade de convivência social pacífica, bem como da possibilidade de viver. Está associado a fortes afetos; modéstia, vergonha e ansiedade. Está associado ao que chamamos de objetos-causa do desejo, ou os objetos que são extraídos do corpo, que estão na origem de todo desejo. Este segredo não se dirige apenas aos outros, aliás ao Outro, é também um segredo para o seu guardião.
O corpo humano está em jogo aqui; este corpo habitado, atravessado e cortado pela linguagem e pelas palavras recebidas ou faladas desde a infância; este corpo falante cujas facetas Jacques-Alain Miller expôs.
A psicanálise é um dos raros locais onde o segredo do gozo dos corpos falantes ainda tem seu lugar.