Responsável, Mas Não Culpado
Por Jérôme Lecaux
Como parte do trabalho preparatório para as próximas Jornadas da Escola*, lembrei-me de um texto de Karl Abraham, que li há muito tempo. É um artigo audacioso e provocativo cuja tese principal está contida no título: “A Experiência do Trauma Sexual como uma Forma de Atividade Sexual” [1]. Para esse texto datado de 1907, o autor achou por bem acrescentar, em 1920, uma nota no final do manuscrito na qual ele especifica que este texto “contém muitos erros nos conceitos de Freud” (ele não especifica quais) e que ele “só recentemente começou a iniciar-se no método de pensamento psicanalítico” [2].
A questão levantada pelo texto é a da responsabilidade das vítimas de abuso sexual pelo que lhes acontece. Ele estrutura sua argumentação sobre diversos aspectos. Em primeiro lugar, ele faz a analogia com certos pacientes deprimidos que têm ideações de morte sem passar ao ato suicida e que, em uma situação de perigo, demoram um pouco a se proteger. Ele dá o exemplo de uma jovem que se desvia um pouco tarde demais de um cavalo a galope que ela provavelmente poderia ter evitado.
Abraham então cita uma história que Freud retirou de Dom Quixote e que retomou em A psicopatologia da vida cotidiana:
“Uma mulher arrastara um homem até o juiz alegando que ele lhe havia roubado a honra pela violência. Sancho a indenizou com a bolsa repleta de dinheiro que retirou do acusado e, depois que a mulher se retirou, deu a ele permissão para persegui-la e recuperar sua bolsa. Os dois voltaram se engalfinhando, e a mulher se vangloriava de o vilão não ter conseguido arrancar-lhe a bolsa. Sancho declara então: ‘Houvesses tu defendido tua honra com metade da determinação com que defendeste essa bolsa, o homem não teria conseguido roubá-la de ti.”[3]
Abraham se pergunta se a suposta causa, o acidente ou a agressão, às vezes, não proporciona a satisfação de uma pulsão de forma dissimulada, para encobrir uma complacência inconsciente. Ele toma as devidas precauções e, claro, indica que não se trata de considerar que todos os acidentes ou todos os abusos são dessa natureza.
Há casos em que o agressor se aproveita de uma situação inesperada que a vítima não tem como escapar. Mas por outro lado, certo número de abusos é precedido por um contexto de sedução. Ele lembra de casos nos quais a vítima concorda em seguir seu futuro abusador ou adota uma atitude passiva em relação a ele. Ele também faz uma distinção entre aquelas crianças que, após o abuso, falam com seus pais imediatamente e outras que não dizem nada. Ele tem a impressão de que as vítimas para cujas consequências são mais deletérias, talvez sejam aquelas que se deixaram seduzir, foram passivas e não disseram nada. A partir daí, ele passa a se interessar pela culpa que essas vítimas sentem, às vezes contra as evidências. Ele se pergunta se essa culpa não está exatamente ligada a uma atração inconsciente pela questão do sexual, que – tal qual pessoas suicidas que se expõem ao perigo – os deixa expostos ao abuso sexual, ou, pelo menos, que essa atração obscura não os impediu, atrasou ou inibiu sua resistência ou sua fuga. Abraham apresenta ainda outro argumento: várias vítimas de abusos sexuais são repetidamente abusadas, ele fica surpreso com isso.
Portanto, este texto de Karl Abraham é bombástico porque se presta facilmente a confusões. Há uma linha muito clara que precisa ser esclarecida. De forma alguma se trata de culpar as vítimas de abuso sexual pelo que lhes acontece. Não é disso que se trata, mas do fato de que um certo número delas se autocondena; sentem-se culpadas. Por quê?
Num texto da mesma época (“A Etiologia da Histeria”, 1896), Freud fala do fato de que os abusos sexuais expõem a criança a uma experiência da qual ela não tem nenhum saber que lhe permita interpretá-la. E que “cenas infantis” desse tipo se portam da mesma maneira que uma representação inconsciente: o eu [moi] não consegue incorporá-las. É por isso que os abusos têm efeitos patogênicos em um segundo momento, muitas vezes anos depois, quando um novo saber permite uma outra leitura do ocorrido, ou quando uma situação semelhante desperta esse traço do abuso inicial.
Então, a vítima é culpada? Não. Ela não é culpada, mas vamos propor a ela que seja responsável. Tratar os sintomas decorrentes do abuso por meio da fala produz um sujeito que vai se apropriar de sua história. Esse sujeito que se constitui após tomar a palavra, em virtude do seu estatuto simbólico, terá a impressão retroativa de que sempre esteve lá. Representará a cena do abuso como uma cena em que foi passiva ou silenciosa. Isso é esquecer, pela ilusão do après-coup, que no momento do trauma ainda não estava lá, ou que já não estava mais. O abuso petrifica, congela, reduz a vítima ao seu corpo, ao objeto de gozo do abusador. Uma criança pequena não possui recursos psíquicos para responder adequadamente.
Por outro lado, em uma análise, trata-se de assumir a responsabilidade por aquilo com que tivemos que lidar, a responsabilidade de compreender no sentido original: responder por isso, dizer algo sobre isso. É o que permite a um sujeito se diferenciar dele. Falar sobre o que aconteceu, já é deixar de ser a vítima, silenciosa ou passiva, do abuso; é diferenciar-se da posição de vítima que pode congelar um sujeito em seu sofrimento e impedir que o supere. Substituir a culpa infrutífera pela responsabilização. Responsabilizar-se é assumir o que aconteceu, o que teve que enfrentar, o que lhe aconteceu, mesmo que não se tenha escolhido, de modo a examinar como podemos conseguir lidar com isso para minimizar o transtorno. A psicanálise não fornece uma receita para sair dele, mas um dispositivo que permite ao sujeito tratar o real a que ele foi exposto.
Traduzido por José Wilson Ramos Braga Jr.