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feito por nós #06

PORNOGRAFIA: A FANTASIA NA PRATELEIRA*

Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP)

“Mulher pelada” e “sexo” foram as palavras encontradas no histórico de busca do primeiro celular de um garoto de 10 anos. Sua mãe relata, em análise, seu espanto com a facilidade de uma criança acessar a pornografia digital e se questiona sobre as consequências deste fenômeno contemporâneo. Para Miller[1], do período vitoriano ao pornô, “não apenas passamos da interdição à permissão, mas à incitação, à intrusão, à provocação, ao forçamento”. Se a pornografia não é, em si, uma novidade na cultura, o que faz com que a clínica da pornografia seja própria do século XXI? A edição de 11 de abril de 2016 da revista americana TIME[2]  traz uma reportagem de capa sobre os jovens da geração da Internet, consumidores de pornografia desde muito cedo, e que têm procurado consultórios de urologistas apresentando queixas de disfunção erétil nos encontros sexuais com parceiras no mundo real. Esses jovens estão convencidos de que suas respostas sexuais foram sabotadas porque seus cérebros foram “mergulhados” em pornografia virtual quando eram crianças e adolescentes. Uma parte desses jovens deu início a um movimento para denunciar os perigos do consumo constante de pornografia, associando diretamente o fracasso no encontro sexual à superexposição à pornografia virtual desde a infância. Vejamos alguns trechos recolhidos desta matéria.

Noah Church é um jovem de 26 anos. Aos 9 anos ele encontrou fotos de nudez na internet e aprendeu a baixar vídeos pornográficos. Aos 15, chegaram os vídeos por streaming e ele logo começou a assisti-los com frequência, muitas vezes ao dia, acompanhado de masturbação. “Eu encontrava tudo o que eu podia imaginar e muitas coisas que eu nem imaginava”, diz ele. Depois que o apelo de algum tipo de vídeo diminuía, Noah seguia para o próximo, mais intenso e muitas vezes mais violento.

Em seu último ano no colegial, ele teve a oportunidade de ter um encontro sexual com uma parceira na realidade. Ele se sentia atraído por ela, e ela por ele. Mas seu corpo não parecia interessado. “Havia uma desconexão entre o que eu queria na minha mente e como o meu corpo reagia”, ele diz. Ele não obteve ereção. A princípio acreditou que se trava de nervosismo de principiante. No entanto, 6 anos se passaram e não importava a garota com quem ele estivesse, seu corpo não cooperava. Ele respondia apenas à pornografia.

Diferentemente de Noah e de outros ativistas anti-pornô, Gabe Deem, 28, tinha uma vida sexual ativa na juventude e consumia pornô apenas como um complemento. No entanto, a pornografia passou a dominar seu interesse sexual. “Alguns anos após o colegial, eu fiquei com uma linda garota. Nós fomos transar e meu corpo não apresentou resposta alguma. Eu fiquei assustado porque eu era jovem, em forma, e estava super atraído por ela”. Ele procurou o médico receando estar com níveis baixos de testosterona.

Em abril de 2015, Alexander Rhodes deixou um bom emprego na empresa Google para desenvolver websites de aconselhamento e apoio comunitário para pessoas que sofrem com o vício em pornografia. Ele iniciou um fórum anti-masturbação no popular site Reddit, além de um website próprio com o nome NoFap.com (“Fap”, em linguagem de internet, significa masturbação). Assim como os outros ativistas, Rhodes consumia pornô com regularidade desde muito cedo. No final de sua adolescência, quando estava com sua namorada, as coisas não iam bem. Se ele parava de pensar em pornografia para focar na garota, seu corpo perdia interesse. Ele tentou parar de assistir vídeos pornográficos algumas vezes antes de finalmente jurar nunca mais acessá-los no final de 2013. Segundo Rhodes, seus dois websites têm cerca de 200.000 membros cadastrados e mais de um milhão de visualizações de usuários únicos por mês. Para grande parte dos usuários desses sites, deixar de consumir pornografia não tem relação com valores morais e religiosos. “Eu parei de assistir vídeos pornôs para ter mais sexo”, diz Deem. “Parar de assistir pornô é uma das maiores atitudes pró-sexo que uma pessoa pode fazer”.

Estatísticas recentes sugerem a existência de correlação entre o consumo de pornografia e o aumento dos casos de disfunção erétil entre jovens. Em 1992, cerca de 5% dos homens apresentaram disfunção erétil aos 40 anos de idade, de acordo com o Instituto Nacional de Saúde dos EUA. Um estudo em julho de 2013 publicado no Journalof Sexual Medicine descobriu que 26% dos homens que procuravam tratamento para disfunção erétil tinham menos de 40 anos.

Embora não seja possível afirmar que esse aparente aumento no número de casos de disfunção erétil em jovens esteja diretamente relacionado ao consumo de pornografia, o fato é que esse grupo tem consumido cada vez mais esses vídeos. Um dos maiores sites de compartilhamento de vídeos adultos do mundo, o Pornhub, diz que recebe 2,4 milhões de visitantes por hora e que, apenas em 2015, as pessoas ao redor do globo assistiram 4.392.486.580 horas de seu conteúdo, tempo que equivale ao dobro do que a espécie humana já viveu na Terra. A internet é como um buffet 24-horas “coma-à-vontade”, que serve todo tipo de aperitivo sexual. Os jovens estão devorando, e sendo devorados.

O que faz da pornografia digital uma ameaça à virilidade nos jovens contemporâneos? Ao longo do ensino de Lacan a fantasia serve, em um primeiro momento, como anteparo à relação simbólica entre o sujeito e o Outro. Mais adiante, ela passa a ser a “relação essencial do sujeito com o significante”[3] , onde se verifica a relação primordial do sujeito com o objeto perdido. O sujeito se constitui dividindo-se e ao mesmo tempo eclipsando-se atrás do significante que o representa, articulando-se, assim, ao objeto a. Esse objeto, resto dessa divisão, marca no sujeito uma falta indelével. Sempre metonímico, o objeto é isso a que o sujeito se agarra quando desfalece diante da opacidade do desejo do Outro[4]. A estrutura mínima da fantasia, nomeada por Lacan de “fundamental”, é instituída como suporte do desejo[5].

Ao situar a clínica da pornografia como uma marca do século XXI, ofertando aos sujeitos uma gama de fantasias filmadas[6] disponíveis “na prateleira” dos sites, o objeto a abandona seu lugar de causa de desejo e passa a ser objeto de puro gozo. O efeito colateral é a desarticulação entre desejo e gozo, tendo o fenômeno contemporâneo da dependência sexual como um derivado[7] .

Assim, a pornografia produz uma espécie de bolha imaginária que isola, imuniza contra o desejo do Outro[8] , eliminando a função do véu. De acordo com as leis do mercado, ao eliminar-se o véu, cria-se a ilusão de um gozo total disponível ao consumidor[9] .

Ter a fantasia pré-fabricada e ao alcance do bolso implica em se defender do encontro sexual com o(a) parceiro(a) – encontro este que é sempre faltoso, e optar pela aquisição de um objeto disponível no mercado: “este algo novo na sexualidade tem produzido masturbadores aliviados de terem de produzir eles mesmos os sonhos quando despertos, uma vez que os encontram feitos, já sonhados para eles“[10]. Uma das principais características dos mercados neoliberais é a capacidade de capitalizar objetos e modos de gozo, operação que faz do objeto aa bússola da civilização de hoje[11] .

A elevação do objeto a – a pornografia, por exemplo, ao lugar de zênite social opera uma defesa diante da não relação sexual, embora se mostre uma defesa fracassada diante da insistência do real: “No discurso da civilização hipermoderna (…) o mais-de-gozar ascendeu ao lugar dominante (…). Ele comanda, mas o quê? Ele não comanda um ‘isso funciona’, mas sim um ‘isso falha’ (…). Aqui, o mais-de-gozar comanda um ‘isso falha’, em termos precisos, na ordem sexual (…). Isso nos levaria a dizer que a inexistência da relação sexual se tornou evidente, de modo a poder ser explicitada, escrita, a partir do momento em que o objeto a ascendeu ao sociel”[12] .

Para o psicanalista, a aposta continua sendo a mesma: confrontar estes sujeitos com seus modos de gozo, verificando em cada um a função que isto ocupa na economia libidinal; isto nos permite analisar seu corolário, seus efeitos. Não podemos esquecer que, seguindo a orientação deixada por Lacan, “(…) o discurso analítico só se sustenta pelo enunciado de que não há, de que é impossível colocar-se a relação sexual. É nisto que se escoram os avanços do discurso analítico, e é por isso aí que ele determina o que é realmente do estatuto de todos os outros discursos”[13] .

Apesar do empuxo exercido na vida dos jovens do século XXI, a pornografia explicita uma fúria copulatória que alcança um zero de sentido[14], o que faz com que estes sujeitos continuem sentindo falta de algo. Em algum ponto, a satisfação resvala para o sintoma, algo que comporta sofrimento.  É neste momento que estes jovens podem dirigir sua demanda a um analista, visando localizar sua singularidade, seu sinthoma. No último ensino de Lacan, o sinthoma é a resposta que cada falasser dá ao furo da estrutura ‘não há relação sexual’. Nas palavras de Lacan: “doravante, é com o sinthoma que temos de nos haver na própria relação sexual, que Freud tomava por natural, o que não quer dizer nada”[15] .

 

*Texto apresentado em plenária das Jornadas da EBP-SP, 2016. Publicado em Carta de São Paulo. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – São Paulo. Ano 23, nº 2, novembro de 2016.
Photoby CHUTTERSNAP onUnsplash
[1] Miller, J-A. O inconsciente e o corpo falante. IN: SCILICET: o corpo falante. Belo Horizonte: EBP, 2015, p. 20.
[2] Luscombe, B &Orenstein, P. Porn: why Young menwhogrewupwith Internet porn are becomingadvocates for turning it off. Time, 11 de abril de 2016.
[3] Lacan, J. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: JZE, 1999, p. 252.
[4] Horne-Reinoso, V. Fantasia (janela/tela). IN: SCILICET: o corpo falante. Belo Horizonte: EBP, 2015, p. 127.
[5] Miller, J-A. Uma introdução à leitura do seminário 6. Opção Lacaniana: revista brasileira internacional de psicanálise. São Paulo, n. 68-69, p. 25-34, dez. 2014.
[6] Miller, J-A. O inconsciente e o corpo falante. IN: SCILICET: o corpo falante. Belo Horizonte: EBP, 2015, p. 21.
[7]Focchi, M. Sex toys. IN: SCILICET: o corpo falante. Belo Horizonte: EBP, 2015, p. 282.
[8] Focchi, M. Sex toys, cit.
[9] Galante, D. Masturbação. IN: SCILICET: o corpo falante. Belo Horizonte: EBP, 2015, p. 198.
[10] Miller, J-A. O inconsciente e o corpo falante. IN: SCILICET: o corpo falante. Belo Horizonte: EBP, 2015, p. 21.
[11] Miller, J-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana: revista brasileira internacional de psicanálise. São Paulo, n. 42, p. 7-18, fev. 2005.
[12] Miller, J-A. Uma fantasia, cit.
[13]Lacan, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: JZE, 2008, p. 16.
[14] Miller, J-A. O inconsciente e o corpo falante. IN: SCILICET: o corpo falante. Belo Horizonte: EBP, 2015, p. 22.
[15] Lacan, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, JZE, 2007, p. 98.

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feito por nós: Focalizando o fenômeno digital que caracteriza o século XXI, Niraldo fala sobre os efeitos que este pode causar na sexualidade dos chamados jovens da geração internet. Situa a fantasia, sublinhando as modificações que Lacan fez no decorrer de seu ensino quanto à sua função. Indica que, inicialmente, serve “como anteparo à relação simbólica entre o sujeito e o Outro” e, depois, “passa a ser a ‘relação essencial do sujeito com o significante’ (…)”.  Sobre uma abordagem que localiza a clínica da pornografia como uma marca do século XXI, salienta que quando uma gama de fantasias filmadas é ofertada aos sujeitos “o objeto a abandona seu lugar de causa de desejo e passa a ser objeto de puro gozo”. E, nesse sentido, sublinha também que: “Ter a fantasia pré-fabricada ao alcance do bolso implica em se defender do encontro sexual com o(a) parceiro(a) – encontro este que é sempre faltoso (…)”.

Katia, considerando a relação que os sujeitos mantêm com o fenômeno contemporâneo da rede digital e a indicação de Niraldo quanto a desarticulação entre desejo e gozo como um efeito colateral, o que você poderia nos dizer sobre as manifestações sintomáticas oriundas dessa relação?

Pergunta elaborada por Vera Dias

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Katia R. Nadeau: Podemos pensar que o ponto central conceitual da desarticulação entre desejo e gozo não se baseia exclusivamente no fenômeno digital contemporâneo, embora afete as manifestações sintomáticas e toda a rede das formas de relação com o Outro.

Desejo e gozo são duas interpretações da libido Freudiana, relançadas por Lacan. Se a interpretação da libido como desejo é faltante, uma vez que o desejo se articula em uma falta, verdade mentirosa do desejo, se sustenta como metonímia de uma falta. Já na interpretação da libido como Gozo, há uma verdade libidinal que não mente. Ao que falta ao significante, não falta ao objeto a. O gozo, portanto, não obedece à lógica do desejo já que a lei é inoperante.

O excesso sempre será aliado da insatisfação, e se no caso do texto sobre o excesso de pornografia podemos verificar essa disjunção entre desejo e gozo, o que de fato está excluído é o corpo do Outro. A fantasia apresentada nas imagens explícitas, sem véu, o gozo da mostração do coito sexual realizado, onde o que se perde é o mais além da fantasia. A performance exclui a possibilidade de participar da cena a partir de seu próprio gozo fantasiado. Há ato, mas não há relação, nem sequer gozo. Como dia Miller “o pornô é uma fantasia filmada“, se perde assim o valor da fantasia singular, banaliza o Inconsciente, e o encontro com um outro corpo . Nada mais, “UM“ sem “Outro”, do que isso.

O valor soberano das imagens na contemporaneidade causa um curto-circuito em tempo real sobre os sintomas daqueles que fazem do uso das redes e das tecnologias, um desaparecimento da importância do corpo vivo e real, o seu e o do outro. A mortificação do gozo excessivo, não é dado novo, porém certamente se abre a partir daí, manifestações como ansiedade, fragilidade dos corpos, fobia social, regressões da libido, e tudo que arrasta o desaparecimento do real valor da vida onde não se confunda gozo e satisfação.