A CARTA ROUBADA, OS TRÊS PRISIONEIROS E O DESLUMBRAMENTO DE LOL V. STEIN*
Maria Helena Barbosa – Membro da EBP/AMP
A Carta Roubada[1] , Os Três Prisioneiros[2] e O Deslumbramento de Lol V. Stein[3] são três textos trabalhados por Lacan onde o objeto olhar e suas posições na gramática do sujeito ocupam um lugar destacado.
Na Carta Roubada, a operação topológica do olhar acontece em “três tempos, ordenando três olhares, sustentados por três sujeitos, de cada vez encarnados por pessoas diferentes”.[4]
Lacan nos mostra[5] como as incidências imaginárias do olhar estão relacionadas à cadeia simbólica que as liga e orienta. Os sujeitos se deslocam no curso da repetição subjetiva, determinado pelo lugar que vem ocupar o puro significante, que é a carta roubada. É isto que confirma o automatismo de repetição.
Aí o lugar que o objeto olhar ocupa é de sombra e reflexo da “determinação maior que o sujeito recebe do percurso de um significante”.[6]
A sintaxe subjetiva engendra a marca significante e o jogo que a criança exerceu, fort-da, o homem desdobrará nesta alternativa estrutural de presença e ausência. “(…) o objeto humano cai sob o golpe da dificuldade que, anulando sua propriedade natural, o subjuga doravante às condições do símbolo”.[7]
O significante estabelece relações singulares com o lugar. Sua materialidade é particular – presença/ausência, unicidade, sentido – fazendo prevalecer no processo lógico envolvido a estrutura espacial.
É a dominância do significante sobre o sujeito.
No sofisma dos Três Prisioneiros[8], a topologia do olhar se sustenta na visão de pura lógica. Aqui, em um desafio, novamente três sujeitos que olham e são olhados entre si. A partir do que vêm nos outros e dos outros, cada um deve chegar a uma conclusão quanto ao atributo do qual é portador. Isto acontece na medida em que o sujeito vê o atributo dos outros dois, mas, no entanto, não vê o próprio.
Nesta topologia do olhar, não há nada ali que não possa ser visto de uma só vez – o instante do olhar – mas, “não é o que os sujeitos vêm, é o que eles encontraram positivamente do que eles não vêm”.[9]
Lacan nos apresenta o sujeito enquanto calculável e, ao final deste processo, o sujeito conclui o movimento lógico numa asserção que “(…) nós a caracterizamos como uma asserção subjetiva, a saber, que o sujeito lógico, aí, não é outro senão a forma pessoal do sujeito do conhecimento, aquele que só pode ser expresso por eu. Em outras palavras, o julgamento que conclui o sofisma só pode ser efetuado pelo sujeito que formou sua asserção sobre si”.[10]
Para efetuar este processo, o sujeito passa por um movimento de verificação das três combinações possíveis que o leva a três etapas desenvolvidas em três tempos, o que faz prevalecer uma estrutura temporal no processo lógico envolvido
Temos aí a determinação essencial do eu.
No Arrebatamento de Lol V. Stein, o olhar, como diz Lacan, “encontra-se espalhado por todo o romance”.[11] Ele se encontra em diferentes posições, dependendo do ternário que se constitui e do nó lógico que o encerra.
O primeiro ternário é constituído em sua primeira cena, onde Lol fica a suportar que, sob seus olhos, seu noivo e outra mulher, se arrebatem em uma dança interminável durante o baile até irem embora, juntos e sem ela. Lacan reconhece nesta cena a estrutura do fantasma.[12]
Lol não encontra a palavra que, nomeada, a situaria nesta triangulação. Ao não encontrá-la, atravessa um limite, situando-se em um para – além (da determinação do significante sobre o sujeito) onde vai se agarrar ao fantasma para se localizar. É um fantasma onde um vestido vai funcionar como “suporte do cálculo do lugar do sujeito”.[13]
A operação topológica do olhar é central neste cálculo. “(…) na costura do seu centro, todos os olhares se voltam para o seu (…). Que siga Lol agarrando (…) o talismã (…) o olhar. Todo o olhar será o seu (…)”.[14]
A posição do olhar não é de sombra ou reflexo da determinação do significante (como na Carta Roubada) uma vez que este faltou. Também não pode se sustentar na visão de pura lógica (como nos Três Prisioneiros) uma vez que, pela operação ocorrida, Lol, ao suportar o cálculo de sua posição em um vestido, acaba por ficar sem um corpo a lhe fazer borda para o olhar. O sujeito, desta forma localizado, está privado de olhar e ser olhado, ponto de partida para que pudesse se incluir no jogo que lhe permitiria fazer uma asserção sobre si mesmo.
Sem um significante que possa determiná-la e sem uma asserção sobre si mesma que lhe permita posicionar-se, resta a Lol a visão que se mostra em uma fantasia onde se apreende enquanto um sujeito marcado pelo desejo de uma forma bem peculiar.
O que acontece, no desenrolar do romance, não é uma repetição determinada pela insistência da cadeia significante e sim uma reedição da cena fantasmática, promovida por Lol através de um arranjo entre um casal de amantes e ela. Permanece no campo de centeio, em frente ao hotel, enquanto os amantes se encontram. Neste arranjo, “é um nó que se refaz”.[15]
Reedição do primeiro ternário
É neste ser-a-três que Lol se agarra e o que se passa nesta nova triangulação a realiza.[16] “Um objeto se apresenta, existe aí um gozo que se localiza”.[17]
O olhar, neste ternário, é recuperado no estado de objeto puro.
O segundo ternário é introduzido por J. Hold, com uma temporalidade que lhe é própria e que não diz respeito a Lol. Ele entra em cena como o homem da operação: é ele que apresenta o olhar, é ele que dá a ver-se.[18] Entra enquanto sujeito na realização do fantasma de Lol o que leva a ser também aquele que se angustia.
Lacan apresenta a constituição deste nó lógico em três tempos. No primeiro tempo, J. Hold é tomado pela angústia quando vê Lol no campo de centeio através da janela do quarto do hotel onde espera sua amante, Tatiana. Num segundo tempo, ele se apazigua ao inventar que Lol o vê assim como ele a vê. E em um terceiro tempo, ele passa a se mostrar e a mostrar Tatiana para Lol, deitada no campo de centeio.
São os três tempos da lógica do fantasma em J. Hold. No primeiro tempo, há o olhar que o surpreende e o inquieta; no segundo, a reciprocidade constitui um recobrimento para evitar este olhar que angustia; no terceiro, ele promove a operação do olhar.
Neste ternário, o estatuto do objeto olhar é imaginário.
Já o terceiro ternário, Lacan o introduz com Marguerite Duras, sua obra enquanto objeto e ele mesmo subjetivamente arrebatado. Este ternário constitui um nó que tem, em seu centro, o arrebatamento de Lol V. Stein.
Em sua homenagem, interpreta o texto de Duras sem pretender fazer disto uma psicologia da autora. Coloca que a operação analítica sobre o texto é determinada pelos limites do método. Mostra, com Freud, o quanto o artista sempre precede o psicanalista e o quanto M. Duras prova saber sem ele o que ele ensina”.[19]
A interpretação de Lacan verifica que Duras, através de sua arte, recuperou o objeto.
O objeto está estruturado da mesma forma que a pulsão, o que possibilita uma satisfação particular ao artista que é o sentido da sublimação.
Aqui o estatuto do objeto é simbólico.
*texto originalmente publicado no Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 2002, número 37, p.16
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[1] Poe, Edgar A. Antologia de contos, Ed. Civilização Brasileira S.A , 1959
[2] Lacan, J. “O tempo Lógico e a Asserção de Certeza Antecipada – Um Novo Sofisma”, Escritos, Ed Perspectiva, 1966
[3] Duras, M. O deslumbramento de Lol V. Stein
[4] Lacan, J. “Seminário sobre a Carta Roubada”, Escritos, pg 22
[5] Idem, pg 18
[6] Idem, pg 18
[7] Idem, pg 53
[8] Lacan, J. “O Tempo Lógico…”, pg 70
[9] Idem, pg 75
[10] Idem, pg 80
[11] Lacan, J. – “Homenagem a Marguerite Duras pelo Arrebatamento de Lol V. Stein”, pg 126
[12] idem, pg 125
[13] Laurent, E. – Intervenção no Seminário “Les Us du Laps” de J.A. Miller, 19ª Aula – Tradução interna para o Seminário Colombe
[14] Lacan, J. – “Homenagem a Marguerite Duras pelo Arrebatamento de Lol V. Stein”, pg 126
[15] idem, pg 124
[16] idem, pg 127
[17] Laurent, E. – Intervenção – Tradução Interna
[18] Idem
[19] Lacan, J. – “Homenagem…”, pg 125
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Feito por nós: Maria Helena aborda três textos de Lacan indicando que neles “o objeto olhar e suas posições na gramática do sujeito ocupam um lugar destacado”. No primeiro, “o lugar que o objeto olhar ocupa é de sombra e reflexo da ‘determinação maior que o sujeito recebe do percurso de um significante’”, o automatismo de repetição. No segundo, marca que “(…) a topologia do olhar se sustenta na visão de pura lógica”, apresentando o sujeito enquanto calculável. Nesse processo, o sujeito conclui o movimento lógico numa asserção subjetiva sobre si, como “a forma pessoal do sujeito do conhecimento, aquele que só pode ser expresso por eu”. Por fim, sobre a interpretação que Lacan faz do romance O arrebatamento de Lol V Stein, como uma homenagem à sua autora, diz que nesse trabalho “o olhar (…) se encontra em diferentes posições, dependendo do ternário que se constitui e do nó lógico que o encerra”. Declara que no primeiro ternário “O olhar é recuperado no estado de objeto puro”; no segundo seu estatuto é imaginário e no terceiro, simbólico.
Rosangela, considerando o objeto olhar e suas posições na gramática do sujeito, você poderia comentar a importância que ele ocupa na experiência analítica?
Pergunta elaborada por Vera Dias
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Rosangela C. Turin: Lacan no Seminário X, cap.XVII, completa a lista de objetos da teoria freudiana (oral, anal e fálica) com a voz e o olhar na constituição subjetiva e diz, à página 264: “sobre o componente de fascínio na função do olhar no qual toda a subsistência subjetiva parece perder-se, ser absorvida, sair do mundo, é enigmático em si mesmo. No entanto, é ele o ponto de irradiação que nos permite questionar o que a função do desejo nos revela no campo visual”.
Miller, no texto “Lacan e a voz”, na Opção Lacaniana online ano 4, n° 11, diz que a experiência clínica é o que fez com que Lacan adicionasse a voz e o olhar à lista de objetos freudianos, ou seja, foi a experiência clínica da psicose que levou Lacan a estender esta lista. Podemos dizer que, de algum modo, estes objetos eram conhecidos pelos psiquiatras e que a teoria da voz e do olhar como objetos advém do cruzamento da experiência psiquiátrica de Lacan e da teoria dos estágios de Freud, influenciada pela estrutura da linguagem de Saussure. É do delírio de observação que Lacan extraiu o objeto escópico, pois esse delírio torna manifesta a presença separada e exterior de um olhar sob o qual cai sujeito.
Desde os primórdios da psicanálise, o divã na experiência analítica funciona como um aparato que desvia o olhar e favorece a associação livre. Em abril deste ano de 2021, Maria Helena Barbosa apresentou, na Seção Clínica da CLIPP, uma entrevista de Jacques-Alain Miller, de 1999, chamada “Divã Virtual”. Segundo Miller, o divã serve para amputar a motricidade, deixando materializado este corpo derrotado e abandonado. Acrescenta que, numa sessão, analista e analisante não estão juntos para se ver, e o divã representa isso: deixar surgir a não equivalência. Logo, o divã não passa de uma cama onde um corpo se despe de seu formato ativo e imaginário para que o falasser se encontre com que há de resto. Nessa perspectiva, transmite a ideia de que o divã é um objeto capaz de deixar presente e ao mesmo tempo ausente a relação sexual, na medida em que possibilita o ser falante se entregar totalmente à experiência do encontro com o corpo parasitado pela palavra.
Atualmente, com a pandemia de COVID 19 e urgência do isolamento e distanciamento social, a experiência analítica se desdobrou do encontro presencial para os atendimentos online, que privilegiam o olhar e a voz a partir de um enquadramento da tela do computador ou celular. Estamos colocando em discussão na Seção Clínica da CLIPP a diferença da presença do analista em carne e osso e a presença do analista no encontro online bem como os efeitos desta nova modalidade.
Nesta entrevista, Miller enfatiza que o psicanalista é o objeto que Freud inventou na medida em que ele é capaz de se fazer objeto. Apesar de se tratar de uma discussão em andamento, partimos do pressuposto de que é o ato do analista em oferecer ao falasser o lugar de encontro com sua própria estranheza que confere o estatuto de Psicanálise, seja num encontro com a presença dos corpos de carne, osso, boca e olhos, seja no enquadramento de um encontro virtual com áudio e vídeo. Nessa nova circunstância, como pensar o objeto olhar na experiência analítica? Haveria uma mudança em relação ao olhar sem a intermediação da tela? Quais efeitos para a análise de cada um? Embora ainda estejamos em pleno “tempo de compreender”, arrisco dizer que dependerá da singularidade de cada falasser na relação com seu objeto olhar.