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“DELÍRIO GENERALIZADO”

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri

“Não nos deixaríamos queimar por nossas opiniões: não estamos tão seguros delas. Mas, talvez, por podermos ter nossas opiniões e podermos mudá-las”. Nietzsche

Filosofia e Psicanálise são discursos diferentes: Freud afirma privar-se do prazer de ler Nietzsche, para não se influenciar pelas “geniais intuições” do filósofo; Lacan, por outro lado, deleita-se e usa da Filosofia para teorizar a Psicanálise. Discursos que poderiam dialogar entre si se diálogo existisse, mas, passar de um a outro pode e enriquece ambos.
Transformar a obra de um autor em “caso clínico” foi o que fez Freud com Memórias de um doente dos nervos de Schreber e Lacan com os escritos de Joyce, ensinando que uma obra pode ser analisada, interpretada, permite inferências diversas. A obra nietzscheana suscitou e suscita interpretações, não raro contraditórias, e analisar seus escritos, voltando o interesse pelas idéias mais do que pelo portador das mesmas, é o escopo desse trabalho. Nietzsche está longe de ser um filósofo sistemático o que não impede o rigor de suas análises.

A idéia de “foraclusão” aparece na primeira clínica de Lacan relacionada à estrutura psicótica, mas ao final de seu ensino, ele postula o conceito de “foraclusão generalizada” para além da estrutura, não mais diagnosticando a psicose, mas enquanto modo de ser humano. Postulado com não poucas consequências sobre a clínica, Lacan questiona a idéia de normalidade e propõe a absoluta singularidade.

Nos textos de Nietzsche, essa idéia surge em teorizações sobre a Linguagem, a Moral e Deus, enfocando o universal humano: o sujeito aqui é universal, e em determinados momentos ele postula o surgimento de filósofos, criadores de novas visões de mundo. A “foraclusão generalizada” aparece quando Nietzche analisa a fundo a Linguagem, os fundamentos da Moral e o surgimento do Deus cristão, tripé que daria sentido à civilização ocidental, além de apontar para os riscos trazidos pelo desvelamento da “foraclusão generalizada”, cujo nome é, para ele, “a Morte de Deus”.

Ao levantarem-se os véus das criações humanas presentificam-se os riscos encontrados nesse mundo “pós-tudo”, mundo no qual a queda dos ideais deixa os humanos sem referências. Deus, Linguagem e Moral seriam o “delírio generalizado” da humanidade d.C., fruto da “foraclusão generalizada”, colocada na origem das criações humanas.
Ouvimos de Nietzsche que “Os Homens …  imersos em ilusões e imagens de sonho, seu olho … resvala às tontas pela superfície das coisas e vê “formas”, sua sensação não conduz … à verdade, mas contenta-se em receber estímulos e … dedilhar um teclado às costas das coisas. … ai da fatal curiosidade que através de uma fresta foi capaz de sair … do cubículo da consciência… e agora pressentiu que sobre o implacável, o ávido, o insaciável, o assassino, repousa o homem, na indiferença de seu não-saber, e como que pendente em sonhos sobre o dorso de um tigre.”

Texto anterior à “a morte de Deus”, Verdade e Mentira denuncia, nos seres humanos, a propensão invencível a enganar-se, a evitar o desvelamento “do assassino”, repousando indiferente em “seu não-saber”.
Nietzsche, professor universitário, ofereceu um curso sobre retórica antiga, refletindo sobre a origem da linguagem e postulando que a mesma nada tem a ver com conhecimento ou com as coisas, análise feita posteriormente por linguistas, a começar por Saussure e importante ponto utilizado por Lacan nas formulações sobre Linguagem, elaboradas a partir da clínica .

Para Nietzsche o homem cria, com a linguagem, um mundo próprio, muito humano, firme o bastante para apoiar-se e dominar o mundo da existência. Mas ele afirma, ao final do Século XIX, que
“… começa a despontar para os homens que eles propagaram um erro descomunal, em sua crença na linguagem” pois esta é apenas “…a figuração de um estimulo nervoso em sons…

Há um corte radical entre o mundo da linguagem e o mundo da existência, ou seja, um estímulo nervoso provocado por um objeto é transformado em imagem exterior; há uma distância instransponível entre aquele e as coisas do mundo, abismo que o intelecto transpõe usando de artimanhas, parte da condição humana. No entanto, a capacidade linguageira de formar conceitos a partir das metáforas provindas dos estímulos nervosos, destaca o homem do animal, sendo a linguagem defesa dos “mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres”, aos quais “está vedado travar uma luta pela existência com chifres e presas aguçadas”, conforme se vê em Verdade e Mentira.

A linguagem engana o ser humano, fá-lo acreditar falar das coisas, quando fala de si: mas não apenas a Linguagem, também a Moral engana. Nietzsche reflete, não sobre a Moral estabelecida, mas sobre os fundamentos, a genealogia da moral. Se “o homem,o animal homem, não teve até agora nenhum sentido” a Moral, companheira da linguagem, oferece um sentido necessário ao crescimento da civilização, “o homem se designou como o ser que mede valores, que valora e mede, como o animal estimador em si”.

Nietzsche é o filósofo da “morte de Deus” , não qualquer um, mas do Deus cristão, ideal maior que, surgindo com o cristianismo, deu origem e certificou os demais ideais por dois milênios. Esse Deus, ao morrer assassinado pelos ateus, desencadeia os efeitos que marcam a inexistência do Outro.

“Se Deus morreu, tudo é permitido” disse Dostoievsky, o que vale para Nietzsche, pois esta criação foi engendrada para dar sentido aos humanos, limitá-los em seus instintos. Só pode morrer quem nasce: o Deus que morre pelas mãos dos ateus começou a ser gestado antes de Cristo, com a teoria platônica das idéias ou formas puras. Platão propõe um “mundo racional”, “mundo verdadeiro”, real, ao lado de um “mundo sensível”, “mundo dos sentidos”, humano, lugar onde prolifera o falso. A idéia de uma Verdade sem contraponto com a falsidade, Bem supremo inquestionável, prepara o advento do Deus único, onipotente, onipresente, onisciente e extremamente bondoso, o que jamais havia sido pensado.
A figura histórica de Cristo, “espírito quase livre”, permite a criação humana, demasiado humana do Deus cristão, no momento em que o mundo ocidental ameaçava precipitar-se na destruição, por não mais acreditar nos deuses antigos.

Partindo da análise da Linguagem aliada aos conceitos de Deus e Moral, Nietzsche antecipa o que Lacan formula como “todo mundo é louco, quer dizer, delirante” , ou seja, a humanidade cria visões de mundo que tamponam o Real, o insuportável, afinal “… somos mais artistas do que sabemos” .

A formidável criação platônico-cristã durou quase dois mil anos, com sua Moral triste e tamponadora dos instintos, ao contrário da Moral grega, na qual estes foram contemplados. No entanto, com o ateísmo e a descrença no Deus cristão, rompe-se um nó: perde o sentido a Linguagem e a Moral, a humanidade periga, o que faz Nietzsche perguntar-se “Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa um espírito?

Nada se sustenta por si só”, diz Lacan no Saber do Analista, os círculos do nó borromeano se interpenetram: retirado um deles, os demais se desfazem. E o horror de Nietzsche, que aparece no aforismo 125 da Gaia Ciência, é que os homens, os ateus não se aperceberam que, matar o Deus cristão – a mais poderosa criação humana até então – equivalia a apagar o sentido trazido pelo Cristianismo. Mais ainda, nada estava preparado para entrar nesse lugar, por isso, espertamente, continuava-se a viver com a Linguagem e a Moral cristãs. No entanto, apenas uma questão de tempo, não se demoraria a perceber a falta de sentido daquelas, desamarradas que foram pela falência de Deus, do Grande Pai.
A queda dos ideais, dos Nomes-do-Pai, faz aparecer a foraclusão em sua crueza; o esgar do Real apresentando-se sem disfarces, libera as manifestações contemporâneas, sintomas novos que prescindem do Inconsciente – mais uma defesa contra o Real. A ‘foraclusão generalizada” que leva ao “delírio generalizado”, desvelada, abala as defesas do humano contra o Real. Lido por este prisma, Nietzsche aparece quase como um profeta.

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
Novembro de 2010

*TRABALHO APRESENTADO NO XVIII ENCONTRO BRASILEIRO DO CAMPO FREUDIANO – O SINTOMA NA CLINICA DO DELIRIO GENERALIZADO 19 E 20 /11/2010

NIETZSCHE, Humano, demasiado Humano, p. 151. Coleção Os Pensadores – Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

A era de grandes sistemas (Descartes, Spinosa, Leibniz, Kant, Hegel, p. ex.) parece ultrapassada na história da Filosofia,

NIETZSCHE. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, p. 46.OP. Cit.

NIETZSCHE, Da Retórica, p.46. Ed. Passagens: Lisboa, 1995

Frege em Sentido e Referência teoriza de modo mais estruturado a relação entre objeto e linguagem.

NIETZSCHE. Humano demasiado humano,.p. 93. Op. Cit.

Idem, Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, p. 47/ 48. Op. Cit.

Idem, Para a Genealogia da Mora/, 3ª Dissertação. Op. Cit.

Idem. Gaia Ciência, aforismo 125. Op. Cit.

LACAN, Jacques. Transfert à Saint Denis? Ornicar?, n. 17-18, 1979, p. 278.

NIETZSCHE. Para Além de Bem e Mal. (Aforismo 192). Op. Cit.

NIETZSCHE. Ecce Homo, p 366.Op. Cit.