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Entre o desejo e o risco: o que a psicanálise tem a dizer sobre a vulnerabilidade feminina à infecção pelo HIV/Aids

Eliane Costa Dias

Núcleo de Pesquisas em Psicanálise e Medicina da CLIPP

 

 

Após mais de duas décadas de enfrentamento da epidemia, a Aids continua sendo um grave problema de saúde pública mundial, com repercussões sociais, políticas, econômicas, culturais e psicológicas que lhe conferem o estatuto de um verdadeiro “fenômeno” da cultura contemporânea ou, nos termos de Carlos Gustavo Motta[1], de um  fantasma no laço social. Um problema de saúde pública ainda em expansão, particularmente em alguns subgrupos populacionais, entre os quais destaca-se a população de mulheres.

 

No Brasil[2], a chamada feminização da epidemia é evidenciada pela variação na proporção entre o número de casos masculinos e femininos que em 1985 era de 25/1 e em 2003 chega a  1,8/1. A transmissão sexual segue sendo a principal via de contágio entre as mulheres maiores de 13 anos (54% do total de casos notificados), seguida pelo uso de drogas injetáveis (15%). Vale destacar que aproximadamente 70% dos casos femininos encontram-se na faixa etária de 20 a 40 anos, ápice da vida produtiva e reprodutiva.

 

Nos interessa analisar a resposta produzida pelo discurso da ciência à inquietante presença feminina no cenário da Aids. A partir de meados da década de 80, à medida que o número de casos de mulheres infectadas com o HIV foi ganhando evidência nos boletins epidemiológicos e nos serviços de saúde, esse movimento foi inicialmente abordado como uma questão moral – são prostitutas, drogadictas ou mulheres promíscuas!!! Com o passar do tempo, a evidência de que se tratava de mulheresnormais (donas de casa, jovens, infectadas por seus maridos ou parceiros fixos), exigiu novas respostas do discurso médico e das ciências sociais que, no entanto, não ultrapassaram o plano da moral:

–          o apelo a uma maior “vulnerabilidade fisiológica” – relacionada a características anatômicas do corpo feminino que propiciariam uma maior exposição ao vírus;

–          a aposta no  saber – centrada na hipótese de que a possibilidade de prevenção da infecção dependeria de um nível básico de informações e conhecimento sobre a doença e seus meios de transmissão;

–          a tese de que a mulheres seriam vítimas da persistência de um desequilíbrio de poder nas relações de gênero – subjugadas, portanto, pelo exercício masculino da sexualidade.

 

Na tentativa de contenção dessa trajetória feminina da Aids no Brasil, muitos esforços e recursos têm sido investidos em programas de informação, orientação e assistência, visando instrumentar a população de mulheres no reconhecimento das noções de RISCOPREVENÇÃO. No entanto, vários estudos constatam que um nível básico de conhecimento sobre a doença e seus meios de prevenção não resulta efetivamente, entre as mulheres, em uma capacidade de avaliação realista sobre suas possibilidades de risco, muito menos em adoção de cuidados de prevenção.

 

Desta forma, como abordar a dificuldade feminina de negociar o chamado “sexo seguro”? Como compreender os inúmeros casos de mulheres que se relacionam sexualmente sem proteção ou engravidam com parceiros sabidamente soropositivos? Como explicar a persistência de uma certa “tolerância”, por parte das mulheres, em relação aos comportamentos de risco de seus parceiros?

 

Para ilustrar, apresento um pequeno recorte de um caso clínico:

Lúcia, 32 anos, casada, secretária, soronegativa, mãe de um menino de 2 anos. O atendimento psicológico para ela  é solicitado pelo marido, HIV+ sintomático, já com várias internações em decorrência da Aids e, naquele momento, fazendo tratamento no hospital dia de um serviço especializado. Esse marido diz que precisa de ajuda para a esposa em função do estado depressivo em que ela se encontra e pelo fato dela insistir em manter relações sexuais com ele sem preservativo. O marido comenta que, “não sabe porque”, há alguns meses, ficou impotente.

 

Nas entrevistas com a psicanalista, Lúcia diz:

“O que mais me enlouquece é a apatia dele… Eu sei que a Aids não tem cura… mas se ele quiser, pode se recuperar, voltar a ser como antes… Eu o procuro e ele não me quer… Não entende que esta é a maior prova de amor que eu posso dar… mostrar que eu o amo, que tenho tesão do mesmo jeito. As vezes, fico pensando que seria mesmo bom se eu também tivesse o vírus… Estaríamos no mesmo barco… Não haveria nenhuma distância… nada separando a gente, nem mesmo um preservativo”.

 

A experiência clínica de escuta analítica de mulheres HIV+ nos mostra que pouco tem sido investido no sentido de compreender as barreiras que as mulheres têm que enfrentar em relação a si mesmas visando a prevenção da infecção. Barreiras que, para além das determinantes culturais e sociais, se apresentam como aspectos constitutivos da própria identidade feminina. Muitas vezes, os procedimentos preventivos acabam sendo negados pelas mulheres, na medida em que tomar consciência desses cuidados e executa-los põe em jogo um risco mais imediato e muito mais assustador que a Aids – o risco da perda e/ou desestabilização da relação amorosa.

 

A psicanálise nos alerta para o fato de que, do ponto de vista da subjetividade, entre as mulheres, o ideal do amor romântico é um dos principais fatores de vulnerabilidade à infecção de HIV/Aids. Mas de que amor se trata ???

 

Mas afinal, o que querem essas mulheres?

 

Se para a biologia, a sexualidade humana se resume à distinção entre dois sexos, definidos a partir dos atributos anatômicos e do código genético, para a psicanálise, no entanto, a sexualidade humana não é da ordem da natureza, mas um efeito de fala, resultado das operações com os significantes impostos pela linguagem. Um assujeitamento ao significante que impõe que o desejo esteja em permanente defasagem com o gozo e nos conduz à verdade da não existência da relação sexual. Um princípio de heterogeneidade irredutível que caracteriza o ato sexual como um encontro sempre faltoso e o prazer como uma experiência sempre contingencial e fugaz, que nada tem a ver com duração, mas apenas com instantes…

 

No entanto, a resistência em aceitar essa perda conduz os seres falantes, de ambos os sexos, a se instalarem no parecer, no semblante, na demanda de amor.

 

A psicanálise tem a dizer que o amor está ligado diretamente ao semblante e tem por função preencher um vazio: o amor procura realizar o encontro que, pelo lado do gozo, se verifica impossível. Assim, o amor é dar o que não se tem.

Para Lacan[3], a relação masculino/feminino tem a ver com duas posições diferentes diante da castração e do gozo. Entretanto, como existe apenas um significante para representar o sexual (o falo), a mulher é privada de um significante que defina o “ser mulher”. Se o sujeito masculino encontra o significante de sua virilidade no mesmo lugar onde encontra o significante de seu gozo sexual e, por isso, pode ter a ilusão de ser “todo fálico”, a mulher terá que buscar esse significante fora de si. Como suprir a privação senão buscando-a no corpo do parceiro?[4].

 

Para Serge André[5], o que uma mulher demanda é subjetivar essa parte insubjetivável de si própria que representa o seu corpo. O que quer uma mulher é ser reconhecida pelo Outro, na sua subjetividade, na sua singularidade. Na busca desesperada de significação para o seu ser e submetida à ordem fálica, a mulher quer ser o falo, ser o objeto que realiza o desejo do Outro, que preenche a falta do Outro, numa eterna demanda de amor.

Não é de admirar que as mulheres questionem sistematicamente o amor, nem que elas o demandem de seu interlocutor. É preciso amá-las e lhes dizer isto, menos por uma exigência narcísica do que por causa dessa defecção subjetiva pela qual elas são marcadas enquanto mulheres. Se querem ser amadas, não é porque esse anseio tenha a ver com uma passividade natural, como acreditava Freud, mas porque querem ser feitas sujeitos lá onde o significante as abandona[6].

 

A experiência sempre intensa e dramática do amor nas mulheres reflete a ânsia de uma mulher em ser amada pelo seu ser singular, geralmente na exigência de ser única. É no ser e no reconhecimento daquele a quem dirige sua demanda de amor, que uma mulher busca encontrar o significante do seu próprio desejo. Para uma mulher, o equívoco em sobrepor no parceiro o objeto de amor e o objeto de desejo faz com que, na posição feminina, o amor oculte o desejo.

 

Mas, se amar é dar o que não se tem, o amor experimentado por uma mulher pode conduzi-la a uma angústia devastadora. O que leva Lacan a afirmar que, para uma mulher, o amor por um homem pode ser muito pior que um sintoma, ou, seu pior sintoma!

 

Desta forma, o “homem castrado”, o “estropiado” é uma escolha tentadora na medida em que evidencia em seu próprio corpo uma falta (o alcoolismo, a droga, a promiscuidade, o HIV+, a depressão etc.) que a mulher pode farejar e sobre a qual vai se alojar na tentativa de dar um sentido a sua falta-a-ser. No cenário da epidemia de Aids este movimento fica cada vez mais evidente no fenômeno crescente dos pares discordantes – casais (hetero ou homossexuais) onde um parceiro é HIV+ e o outro soronegativo. O sujeito HIV+ acaba recoberto de um valor fálico que o posiciona (no fantasma do parceiro) no lugar de objeto. Uma escolha amorosa constituída para seguir velando a falta em ambos os integrantes do casal. No entanto, como alerta Viviana Rocca[7], uma escolha que se converte em armadilha: para o sujeito soronegativo não há lugar para a perda do amor e para o sujeito HIV+, não há saída dessa captura amorosa.

 

No campo do enfrentamento da epidemia de HIV/Aids, a psicanálise tem a dizer, portanto, que parte da vulnerabilidade feminina à infecção está relacionada com a própria constituição da feminilidade, para cada mulher. Tem a ver com a forma como ela vive e se coloca nas relações sexuais e afetivas, mas principalmente, com a forma como se posiciona em relação ao Outro e em relação ao desejo e a seu modo de gozo.

 

Os destinos do feminino na contemporaneidade.

 

Se a psicanálise afirma que o sujeito (e o próprio inconsciente) se constitui na relação com o Outro da cultura, é fácil deduzir que se as relações com o Outro mudam, mudam as formas de produção de subjetividade, as vias de expressão do inconsciente e, principalmente, os sintomas. No momento histórico de uma sociedade globalizada, regida pelas leis do consumo e do mercado, onde a máxima da liberdade e da autonomia leva ao extremo do individualismo e da anulação do sujeito, quais os destinos para o feminino? quais os sentidos produzidos para o ser mulher?

 

Parece-nos preocupante que na cultura do descartável e da permanente estimulação, que consolida uma modalidade existencial que privilegia muito mais as vias de gozo do que as de significação, os destinos possíveis para o feminino recaiam num “fazer-se objeto” que, no limite, beira a degradação ou na relação com o próprio corpo. Mais preocupante ainda, constatar que ambos os caminhos levam à morte: morte do desejo, morte da condição de sujeito, morte social e, em última instância, morte física.

 

É evidente que compreender e abordar a vulnerabilidade das mulheres, não apenas à infecção pelo HIV, mas na área da saúde em geral, é uma tarefa complexa e multifacetada, mas certamente estéril se não pudermos levar em conta essa dimensão da subjetividade feminina, sem que os profissionais de saúde possam ajudar suas pacientes a se fazerem questão sobre o “ser mulher”, sobre a forma como se colocam nas relações afetivas e sexuais.

 

O manejo das possíveis respostas talvez seja uma tarefa específica ao analista, mas o manejo do “fazer questão” certamente não é, podendo fazer parte da consulta médica, da consulta de enfermagem, de nutrição, de planejamento familiar etc.

 

Assim, talvez possamos contribuir para que essas mulheres, seres falantes do sexo feminino, possam passar do amor desmedido (ideal e sempre além) para o amor vivido (o amor possível, o amor realizável).

 


[1] MOTTA, Carlos G. – Sida: um nombre de lo real. In: anais eletrônicos do XIII Encuentro Internacional Del Campo Freudiano e Primer Encuentro Americano, set/2003 (info@eamericano.com.ar). 

[2] Boletim Epidemiológico: Aids. Brasil: CN DST/AIDS, 2003.

 

 

[3] LACAN, J. – Seminário 20 – Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

[4] SCHERMANN, E. Z. – O gozo en-cena: sobre o masoquismo e a mulher. São Paulo: Escuta, 2003, p. 167.

[5] ANDRÉ S. – O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

[6] Idem –  p. 256.

[7] ROCCA, V. – Del brillo que puede configurar um sujeito HIV+. In: Psicoanalisis y el Hospital, ano 10, n. 20, nov./2001.