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Atualidades Psicanalíticas #20

Amor em tempo de Isolamento

Por Alan Rowan

Diante da pandemia do coronavírus, ficar isolado tornou-se um ato social, um ato de cuidar – ainda que também tingido de angústia – e, claro, um ato obrigatório nos países cujos cidadãos vivem no assim chamado “Lockdown”. Naturalmente, os críticos têm especulado sobre os efeitos de tal isolamento: nos indivíduos, nas famílias e nos amantes/casais. Por exemplo, no caso do casal, podemos nos perguntar: o amor se fortalecerá, será reencontrado onde esmoreceu ou veremos, com o tempo, um salto nas taxas de divórcio/separação?

Independentemente do resultado, parece claro que esta questão de quem, como e o que se ama (por exemplo, no parceiro) irá, para muitos, aparecer de forma mais clara e, então, para além do casal, a questão do lugar que o amor ocupa, ou poderia ocupar, de maneira geral, na vida. De fato, é estranho, mas é verdade, que nesta época de uma tragédia global, em que muitos morreram e muitos continuarão a morrer, e onde as dificuldades econômicas extremas se seguirão, o amor, à medida que o mar de bens e satisfações de consumo se esvaem, assume, mais uma vez, um novo significado.

Nesse contexto, gostaria de começar com duas citações: a primeira de Hannah Arendt; a segunda do verso final do magnífico poema de W.H. Auden “1º de setembro de 1939”:

“Essa simples existência, isto é, tudo o que nos é misteriosamente dado por nascimento, e que inclui a forma do nosso corpo e os talentos da nossa mente, só́ pode ser aceita pelo acaso imprevisível da amizade e da simpatia, ou pela grande e incalculável graça do amor que diz, como santo Agostinho, Volu ut sis (quero que sejas), sem poder oferecer qualquer motivo particular para essa suprema e insuperável afirmação.”  (Arendt 2013, p. 337)

“Na noite, desprotegido

E em estupor vive o mundo;

No entanto irônicas luzes

Aqui e ali mostram seu brilho,

Onde quer que troquem os

Justos as suas mensagens:

Possa eu, como eles composto

De Eros e pó e assediado

Por negação e desespero,

Ser também iluminado.”  (Auden, 1940)

Ambas as peças, em contextos bastante diferentes, apontam para o amor como uma forma misteriosa de afirmação, algo que surge como uma demanda não baseada na necessidade, e pode-se acrescentar, como essencialmente ligada à fala, ou seja, não há amor fora do discurso, ou, em outras palavras, o amor é sua expressão.

Lacan em seu seminário A Transferência (1960-1961) nos dá uma bela descrição do que ele chama de “o milagre do amor” por meio da seguinte metáfora, ou mito, que descreve um tentando alcançar o objeto, apresentando-nos uma imagem pela qual esse alcançar do amante em direção ao amado é correspondido, o amado revelado – como amante:

“Esta mão que se estende para o fruto, para a rosa, para a acha que se inflama de repente, seu gesto de pegar, de atrair, de atiçar é estreitamente solidário à maturação do fruto, à beleza da flor, ao flamejar da acha. Mas quando, nesse movimento de pegar, de atrair, de atiçar, a mão foi longe o bastante em direção ao objeto, se do fruto, da flor, da acha, sai uma mão que se estende ao encontro da mão que é a de vocês, e neste momento é a sua mão que se detém fixa na plenitude fechada do fruto, aberta da flor, na explosão de uma mão em chamas – então, o que aí se produz é o amor.” (pp. 72-73)

 

Nesse caso, pode-se dizer que o amor não é uma coisa, mas sim um movimento, um processo ou fusão entre dois sujeitos, quase indecente, um ser-com o outro que existe como força existencial e vital conhecida, e ainda, por tudo isso, permanece fora do saber, apreensível apenas por meio das imagens de amor infinitas que criamos (por exemplo, na literatura, poesia, arte etc.). Portanto, o amor é originário, no sentido de não estabelecido, um ato criativo (pode-se dizer) que cria simultaneamente a possibilidade de sua própria perda, uma presença assombrada por sua possível ausência, uma forma que surge na agonia profunda e desesperadora de amor não correspondido.

Se o que foi dito acima tenta descrever o âmago do que se poderia chamar de amor “puro” (amor mútuo), é verdade que o amor também tem suas variações. Por exemplo, existe o amor à família, aos amigos, ao outro a quem se oferece cuidados excepcionais e, é claro, o amor em suas formas degradadas. Neste último caso, pode-se apontar o tipo de amor que busca possuir os outros, tornando-os objetos por meio de demandas que obrigam que eles restrinjam seu ser às imagens que o pretenso “proprietário” insiste, ou seja, aquelas que servem à sua autossatisfação. Aqui, aceitando que o narcisismo está sempre presente no amor (ama-se a si mesmo no amor), encontra-se apenas isso: o outro deve ser útil/servir aos seus ideais e, na medida em que se trata de uma ânsia pela  posse fixa ou permanente, aspira-se uma ilusão. Invariavelmente nessa forma de amor, nunca se está longe da dialética “senhor/escravo”, do desdobramento do poder, do “se-então” do ato que demonstra sua falta de liberdade na rejeição da essencial autonomia e da diferença do outro. Claro, tais relações existem, e até perduram, amparadas pelas rotinas da vida, nos prazeres consumidos (partilhados ou não), nas curtas separações que “fazem funcionar” que atualmente, no nosso “tempo de isolamento”, estão cada vez mais indisponíveis.

Deve-se também mencionar aqui uma forma de amor que acontece quando ninguém está presente por inteiro, onde existe uma espécie de acomodação ao outro, em que o “ao deus-dará” resume a relação e sua capacidade de ignorar o vazio ou a dureza da lacuna entre os dois – situação que o isolamento promete tornar muito óbvia.

Por fim, vale a pena considerar as dimensões mais amplas do amor, ou seja, o amor tal como se manifesta comumente no laço social, nas formas de relacionamento com o outro que reconhece nossa falta de autossuficiência, a única forma, podemos dizer, que cada um de nós deve descobrir que é isso que “nos conecta” ao laço social.

Indiscutivelmente, a tragédia da pandemia contra a qual estamos lutando, nos mostra muito claramente que esse “conectar” tem uma dimensão sem fronteiras, que acentua nossa humanidade compartilhada. Isso leva a uma pergunta, cuja resposta está longe de ser clara. Leia-se, essa árdua experiência de vulnerabilidade e de perda, em escala global, poderia se tornar uma base para um novo tipo de identificação com o outro? Não podemos ser ingênuos e pensar no amor como “a solução”, mas talvez podemos considerar o “respeito” como algo muito próximo do amor, pelo menos como a Arendt o define, como segue:

… Uma consideração pela pessoa a partir da distância que o espaço do mundo coloca entre nós, e essa consideração independe de qualidades que possamos admirar ou de realizações que possamos estimar muito ” (p. 243)

Isso nos leva de volta ao “quero que sejas” da citação anterior de Arendt e ao fato de que, em certo sentido, não é o isolamento que nos separa, mas sim, algo que tem a ver com nossa capacidade de falar bem do amor …

 

Tradução: José Wilson Ramos Braga Jr.
Revisão: Leny M. Mrech
Arendt, Hannah (2013). Origens do totalitarismo. Companhia das Letras.
Auden WH (1940). Another Time. Random House Publishing. Tradução em português encontrada no link Blog do Castorp
Lacan, J. (1960-61). O Seminário, Livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Texto republicado com permissão do autor. Publicado em inglês na Lacanian Review Online em 27/03/2020 no link
 https://www.thelacanianreviews.com/love-in-a-time-of-isolation/