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Atualidades Psicanalíticas #28

A Formação do Analista

Por Peggy Papada

O desejo de Lacan por uma escola de psicanálise foi além de Freud, além do Édipo, além da estrutura do “todo” e de seu elemento antinômico. Essa era a lógica de “todos os homens” nascidos de um pai que é a exceção, zelando pelo gozo e gozando de todas as mulheres. A impossibilidade e a proibição de gozo são inerentes a essa estrutura, o que leva a classificações rígidas. Ainda assim, na Escola Lacaniana “não há exceção, mas sim um conjunto, ou melhor, uma série de exceções, de solidões incomparáveis ​​entre si” e como tal, a escola é “não toda, no sentido de que é logicamente inconsistente, e se apresenta sob a forma de uma série na qual falta uma lei da formação”. [1]

No “Ato de Fundação” da Escola de Lacan, em 1964, o que mais chama a atenção é a ausência de uma definição do que um psicanalista é. Em vez disso, a palavra “trabalho” [work] permeia o texto e o que se especifica é o órgão básico da Escola, o cartel. O mecanismo antissegregativo e antididático do cartel proporciona um laço social pelo qual todos trabalham juntos e no mesmo nível em torno de um projeto chamado psicanálise. É a transferência com a psicanálise e com o discurso analítico, ao invés de um ideal, que “permite que as singularidades se mantenham juntas”. [2] A transferência de trabalho estimula cada membro a participar ativamente da psicanálise, a pensar teoria e prática, e não simplesmente permanecer em uma posição de consumir textos e ensinamentos diversos sem implicar a si mesmo, sua própria pergunta e seu próprio corpo.

A Escola é “o organismo em que deve realizar-se um trabalho”. É “inseparável do treinamento a ser dispensado”. [3] A contribuição de Lacan para a formação de analistas é afirmar que analistas não são ensinados e treinados por outros analistas. Não há nada universal sobre o discurso analítico. O discurso analítico não pode ser ensinado. Em vez disso, os analistas são formados por suas próprias análises, como Lacan deixou claro na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola”. [4] A pessoa se torna psicanalista pela experiência de encontrar o real por meio do sintoma.

No entanto, como ensinar o que não pode ser ensinado é uma questão em todo o ensino de Lacan: como se pode ensinar a psicanálise, como se pode ensinar um saber a todos, quando esse saber emerge da intimidade da situação analítica onde, por exemplo, a interpretação visa um ato momentâneo de dizer e o saber só se adquire por meio da passagem por uma experiência singular e incomparável. Como transmitir algo sem cair nas armadilhas da mestria, pensando-se unívoco, ou nas do discurso universitário, onde prevalece o Eu ideal ?

A resposta de Lacan à questão de como demonstrar uma formação baseada no princípio da autoautorização é o passe. “O acontecimento do passe é o dizer por de um sozinho, o Analista da Escola, quando ele ordena sua experiência”, [5] quando ele ou ela testemunha diante de uma plateia seu percurso analítico.

Temos o privilégio de publicar neste número dos Psychoanalytical Notebooks uma série de textos de psicanalistas da Associação Mundial de Psicanálise que passaram pelo procedimento do passe e foram nomeados e que, um a um, nos contam algo sobre a formação do analista e seus três pilares: a análise, a supervisão e o cartel (isto é, o estudo da psicanálise). Neste momento, na New Lacanian School, há um interesse dinâmico pelo fim da análise, pela produção de analistas e pela própria transmissão da psicanálise, e isso foi atestado no evento inaugural sobre O Passe em Nossa Escola, o Ensino do AE, realizada em Ghent, em setembro de 2019. Esta foi uma resposta à nomeação de Florencia FC Shanahan – a primeira Analista da Escola a ter passado pelo procedimento de passe dentro da NLS.

Os quatro primeiros artigos da edição atual (Laurent Dupont, “Formação do analista, o fim da análise”; Bruno de Halleux, “O rinoceronte e o desejo do analista”; e Patricia Tassara, “Supervisão” e “Dos sonhos ao acontecimento de corpo”) foram todos retirados de apresentações recentemente feitas em Londres durante uma série de eventos sobre a Formação do Analista organizado pela London Society of the NLS. Os dois últimos artigos (Florencia FC Shanahan, “Presente”; Véronique Voruz, “Corpos capturados pelo discurso”) foram apresentados em eventos online organizados por nossos colegas da NLS em Berlim (Lacanian Orientation in Berlin) e Dublin (Irish Circle of the Lacanian Orientation), respectivamente. Isso testemunha um contínuo interesse e desejo pela questão da formação nos membros de nossa comunidade em geral.

A formação do analista está na base da Escola de Lacan. “O discurso analítico existe porque é o analisando que o sustenta.” [6] Não pode haver analista sem ser analisando, assim como não pode haver Analista da Escola sem Escola. A permanência da formação do “analista-analisando”, como afirma Laurent Dupont no primeiro artigo desta edição, como princípio subjacente à orientação lacaniana significa uma ascese contínua do trabalho para se tornar um analista.

Dezembro de 2020

 

Tradução: José Wilson Ramos Braga Jr.
Revisão: Leny M. Mrech
Editorial da Edição nº 36 dos Psychoanalytical Notebooks, dezembro de 2020.

[1] Miller, J.-A., “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola” (2000), Opção Lacaniana online, No. 21, 2016. Acesso online no seguinte endereço eletrônico: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/Teoria_de_Turim.pdf
[2] Laurent, E., “The Pass and the Guarantee in the School” (1992), trans. P. Dravers and V. Dachy, available online: https://londonsociety-nls.org.uk/index.php?file=The-School/The-Pass-and-the-Guarantee-in-the-School-Eric-Laurent.html
[3] Lacan, J., “Ato de Fundação” (1964), pp. 235-247; Televisão (1974), pp. 508-543. In: Outros escritos – Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
[4] Lacan, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola” In: Outros escritos – Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 248-264.
[5] Miller, J.-A., “O Inconsciente e o Corpo Falante” (2014), acesso online pelo endereço eletrônico: https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9
[6] Lacan, J., “Columbia University: Lecture on the Symptom” (1975), trans. A.R. Price and R. Grigg, Culture/Clinic, No. 1, 2013, p. 8.

Texto republicado com permissão do autor. Publicado em inglês na Lacanian Review Online em 03/03/2021 no endereço eletrônico
https://www.thelacanianreviews.com/2988-2/