Desafios para a Psicanálise em Tempos de Pandemia e Distanciamento
Por Marta Goldenberg
Entrevista feita por Luz Saint Phat
Como a psicanálise pode contribuir para compreender e lançar luz a algumas das situações enfrentadas pelos sujeitos no surto de Covid-19 e as disposições legais para isolamento e distanciamento social?
Ao discutir o assunto com o Comercio e Justicia, a psicanalista Marta Goldenberg, analista membro da EOL (Escuela de Orientación Lacaniana) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), se aprofundou sobre o assunto.
Numa longa conversa, Goldenberg, a propósito da prática clínica, indicou que “considerando esta contingência, que é absolutamente nova, não só pela dimensão local mas também global, surgem inovações, muito embora o uso de novas tecnologias, como as vídeo chamadas – que podem ser engenhosas no momento –, não é adequado para todos os pacientes”.
A entrevistada indicou que se trata de um momento, uma circunstância, até que o encontro com os analisandos possa acontecer. “E é esse encontro que tem que acontecer, pois a psicanálise pura tem que ser entre dois corpos, e a presença é a presença real do analista que ali está corporificado. Isso é fundamental porque existe o gesto, a tosse, o grunhido, o aperto de mão, que é muito diferente quando metabolizado ou captado por uma câmera”.
No entanto, verifica-se que hoje, mais do que nunca, “o analista deve ser flexível”, especificou.
Nessa linha, Goldenberg afirmou, “o psicanalista deve estar à altura do seu tempo, do que está sendo vivido. E o que isto significa? Significa fazer uma interpretação. Uma interpretação diz aquilo que não se quer ouvir; o que o próprio sujeito não percebe. “Assim, neste cenário, a psicanálise deve ir à comunidade a posteriori, com algum tempo, sem pressa. Ainda estamos imersos em todos esses significantes, tais como lockdown e distanciamento social, que acabam nos afetando”.
“O que se espera da psicanálise por meio de seu instrumento – o psicanalista – é que ele possa contribuir para interpretar o que hoje é indizível e desconhecido”, afirmou.
Significantes
Por outro lado, em relação a como a pandemia e o distanciamento social podem afetar os sujeitos e o laço social, Goldenberg destacou que não é possível avançar nisso, mas disse que algumas questões importantes devem ser levadas em consideração.
“Por exemplo, a solidão”. “Apesar de que a solidão sempre esteve presente em um sujeito, diante de um momento tão agudo pode-se sentir a maior solidão”.
Depois, há também o caso de outro sujeito que, pelo fato de não trabalhar e depender do parceiro financeiramente, pode se sentir desvalorizado até que o analista intervenha e trabalhe naquilo que se tornou desvanecido, ofuscado pela situação”, acrescentou.
“Outros manifestam que tiveram que fechar seus negócios, e tal sentimento está sempre no corpo. ‘Eu sinto que estou desmoronando’, eles dizem. Em outro caso, o sujeito expressava ‘Não sei como me proteger’, enquanto outra pessoa afirmava: ‘este é um sofrimento a juro fixo’. Além desses casos, outra analisanda pensou em como remover o isolamento de si mesma.”
Por outro lado, também devem ser considerados aqueles que são mais afetados pela propagação do vírus, tais como profissionais de saúde e pessoas infectadas até o momento. O medo, o estigma e a discriminação são questões emergentes.
“Ouvi um argentino residente na Itália, que disse que quando se infectou não reconheceu seu corpo. Para a psicanálise, o corpo é crucial. Se não há corpo, não há gozo; e isso está localizado exatamente no corpo. O corpo não foi reconhecido pelo sujeito. “É um corpo que não é um corpo”, disse ele ao ser infectado, e a dor que sentiu foi extremamente insuportável.
No entanto, Goldenberg observou, “o que está acontecendo agora não é uma ‘situação de horror’ para todos no pior sentido, pois para muitos depende de como esse real ‘tem um impacto’ sobre eles”.
Subversão
No entanto, neste real que irrompe, Goldenberg vislumbra uma oportunidade para a subversão.
“Acho interessante a condição de subversão das coisas, a fim de interpretar o que irrompeu na vida de cada um”, afirmou a psicanalista.
“Existem certas lógicas que prosperaram por séculos em uma direção e agora estão mudando”, ela explicou.
“Por exemplo, ouvi um profissional falando sobre como é, em um lugar muito pequeno, onde pessoas muito conservadoras vivem em uma comunidade autossuficiente, onde não é permitido deixar entrar ninguém de fora. No entanto, esses sujeitos agora aceitaram que pessoas de ‘fora’ possam ser ‘amigas’. Eles aceitaram que o ‘inimigo’ viesse, trazendo-lhes máscaras e coisas do gênero.”
“É isso que me impressiona e interpreto como uma subversão do real”, afirmou.
“Portanto – advertia o psicanalista –, hoje temos essa oportunidade, não tanto no sentido de aproveitar de forma egoísta, mas no sentido de interpretar os excessos. A chamada sociedade capitalista está mostrando seus limites”.
Da mesma forma, Goldenberg identificou que “é preciso haver uma forma de escrever, não apenas de subverter, para que o que é feito tenha a força de uma inscrição”.