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Nem toda esta falta de ar é asma: a transferência de trabalho da equipe de saúde e o tratamento psicanalítico em pacientes com Disfunção de Pregas Vocais (DPV) mimetizando asma

 

Relatores: Niraldo de Oliveira Santos, Julieta Quayle

Autores: Sandra Arruda Grostein, Carmen Sílvia Cervelatti, Eliane Costa Dias, Rosângela Carboni Castro. Núcleo de Pesquisas em Psicanálise e Medicina da CLIPP – São Paulo/Brasil

 

A assistência aos pacientes que apresentam doenças envolvendo o sistema imunológico já era desenvolvida por nós há alguns anos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em um serviço de Imunologia Clínica e Alergia, até que o surgimento de um fenômeno clínico fez com que a interlocução do analista com a equipe de saúde fosse intensificada, promovendo debates vivos acerca da relação entre o trabalho psicanalítico e a eficácia do tratamento médico convencional, tendo como base um número considerável de pacientes que procuravam o serviço com um quadro clínico semelhante à asma, mas com características que provocavam um efeito devastador na equipe. Trata-se de pacientes que apresentam Disfunção de Pregas Vocais (DPV).

          A disfunção das pregas vocais é caracterizada por movimento paradoxal de fechamento das pregas vocais, ocorrendo de forma episódica e involuntária durante a inspiração, levando à obstrução das vias aéreas. Muitas das co-morbidades desta condição estão relacionadas a complicações iatrogênicas, os pacientes chegam ao setor de emergência com uma crise respiratória aguda que pode levar à intubação e admissão em unidades de terapia intensiva com administração desnecessária de medicamentos potencialmente perigosos. Em alguns casos, pacientes com DPV, nestas ocasiões, são traqueostomisados.

Do ponto de vista etiológico, várias são as tentativas dos pesquisadores em apresentar uma hipótese sustentável, o que acaba por gerar uma série de imprecisões que culminam com o termo “etiologia desconhecida”.

         No momento em que nos deparamos com pacientes que atualizam a descoberta freudiana acerca de um corpo atravessado pelo simbólico e, portanto, marcado por um sofrimento que questiona a eficácia e a credibilidade da medicina, logo pensamos que aí seria uma via possível de re-atualizar também as interlocuções entre a psicanálise e a ciência médica.

         O encaminhamento de pacientes para o nosso setor se dá, na maior parte das vezes, quando os profissionais da equipe se deparam com situações clínicas onde se observa que o surgimento dos sintomas – ou o agravamento destes, não leva a um diagnóstico de doença orgânica pelos instrumentos médicos convencionais. Este fator faz com que os encaminhamentos venham acompanhados por uma demanda de saber instalada na equipe e dirigida ao operador da psicanálise.

A princípio, podemos pensar que esta posição seja um indicador de que há uma transferência instalada e que esta se dirige ao saber suposto em nós. Porém, em alguns casos, a demanda é, em um momento inicial, um pedido que vai à direção de esperar do psicanalista um trabalho semelhante ao de um detetive, uma averiguação que seja capaz de esclarecer, por meio da lógica, o que faz com que aquele paciente apresente, por exemplo, uma urticária sem causa conhecida que segue seu curso por meses, à revelia da medicação utilizada.

Recusar esta demanda talvez resultasse numa impossibilidade de trabalhar neste setor. Por isso, ao termos acolhido a demanda e não respondido a ela sem questionamentos, é que tem sido possível manter uma interlocução freqüente, com a possibilidade de expor uma outra lógica – a do inconsciente.

Assim aconteceu com as pacientes diagnosticadas como possuindo disfunção de pregas vocais.

No momento inicial, eram encaminhadas pacientes que apresentavam sintomas respiratórios e que não melhoravam com o tratamento convencional. Estas pacientes costumavam ser encaminhadas, principalmente, devido ao incômodo que as mesmas causavam na equipe. As pacientes “poliqueixosas”, as que compareciam ao ambulatório fora do dia agendado para a consulta, as que se internavam com uma freqüência acima da média, as que procuravam as Unidades de Emergência com regularidade. Os pedidos de consulta destas pacientes costumavam vir acompanhados de uma descrição que inseria algo da história das mesmas que era visto pelo profissional da equipe como sendo algo “estranho” e que poderia ser responsável pelo surgimento das crises ou pelo agravamento das mesmas.

Em um momento posterior, com a inclusão cada vez mais insistente dos significantes “disfunção das pregas vocais”, estas pacientes passaram a ser investigadas com recursos tecnológicos capazes de avaliar a problemática e circunscrevê-la neste diagnóstico. A assistência passou a ter um enfoque particular e o encaminhamento para o tratamento em nosso setor passou a ser ainda mais freqüente.

 

Pudemos constatar que o modo como os encaminhamentos eram feitos acarretavam em um diferencial no tratamento das pacientes. Se, ao encaminhar, o profissional dizia que a paciente não tinha asma e que o problema era “psicológico”, tínhamos aí já um fator importante para iniciar o tratamento, que começava com uma pré-interpretação de que o médico havia desqualificado o sofrimento daquele sujeito. Esta problemática foi fruto de uma série de discussões em equipe, pois, o fato de uma paciente apresentar falta de ar, tosse e disfonia sem preencher os critérios diagnósticos para asma pode ser “estranho”, mas não é o mesmo que dizer que “ela não tem nada” e que, portanto, não sofre.

 

Observamos que o trabalho psicanalítico destas pacientes se dá de maneira efetiva conquanto as pacientes sentem que seus sintomas continuam, pelo menos em um momento inicial, sob os cuidados também da equipe médica.

 

É somente quando se dá a formulação de um questionamento particular acerca dos sintomas e das crises, tendo anteriormente estabelecida uma relação de transferência com o operador da psicanálise, que estas pacientes suportam o fato de que há um outro corpo, um corpo atravessado pela história e pelo afeto, existindo um sofrimento que pode ser tratado em outro contexto. Em decorrência, estas pacientes diminuem, gradualmente, a oferta de um corpo sofrido e marcado à ordem médica.

No percurso desta investigação incorremos em equívocos, principalmente devido à posição de mestre ou de “higienista” que ocupamos em alguns momentos, exatamente pelo fato de o operador da psicanálise ter se identificado com o discurso das tecnociências. Neste sentido, tomamos a demanda terapêutica como a base também para o tratamento psicanalítico, desprezando a disjunção entre demanda e desejo tão bem ilustrada na teoria psicanalítica – ou seja, que é com a sustentação da demanda que o trabalho psicanalítico acontece, abrindo o acesso ao material inconsciente e facilitando o estabelecimento de uma construção entre a história de vida do paciente e a história sintomática atual. A supervisão dos casos clínicos fez com que percebêssemos este equívoco, o que favoreceu o direcionamento do trabalho posteriormente. Porém, não é o mesmo que dizer que o tratamento psicanalítico não pode deixar surgir ganhos terapêuticos – estes se dão e são observados quando o sujeito suporta fazer sua construção própria acerca do sofrimento.

Por outro lado, como se trata de clínica – no sentido mais clássico possível, o que está um pouco em desuso até mesmo na medicina, inevitavelmente este método nos leva a uma série de constatações. Observamos, portanto, que o que surgiu na série de casos clínicos apresentados foi o fato de as pacientes estarem às voltas com uma pulsão muito específica: a voz.

Para Assoun (1999), quando a laringe (e as pregas vocais) como órgão fonador, disfunciona, é para ouvirmos um “diz-funciona”, ou seja, é como órgão erótico que elasuper-funciona. O termo “erótico” aqui é utilizado no sentido do investimento pulsional, ou seja, estando relacionado a uma circunstância anterior que torna “erotizado” o órgão.

Desta forma, ao pensarmos no estatuto do sintoma relacionado à DPV, não devemos esperar que haja um fato traumático na realidade destes sujeitos levando ao surgimento das crises. Neste sentido, importa-nos tomar o “traumático” como umacontecimento psíquico que pode ter a mesma força (por vezes ainda maior) que um fato da realidade, uma vez que é pela forma como as vivências são significadas e re-significadas que aparecem as formações defensivas no inconsciente. Temos, nestes casos, portanto, um “não dito” como veto ao acesso ao simbólico, no que esta via traz de exposição do sujeito frente ao seu desejo.

É por meio destas formulações que acreditamos ser adequada a utilização do termo “mimetismo”, uma vez que este ocorre quando se impõe (ou é imposta) uma adaptação ou uma fuga.

Apesar de os avanços tecnológicos serem freqüentemente descritos como algo que favorece a exclusão da subjetividade do paciente na cena médica, constatamos que nos casos de DPV a nasofibroscopia aparece como um co-adjuvante do tratamento, favorecendo a interconsulta e a discussão dos casos. Neste momento, vemos esta tecnologia como algo que evidencia o obsceno (o que vai além da cena) da subjetividade do paciente. Acreditamos que os progressos tecnológicos da medicina vêm reformulando a relação do sujeito com o próprio corpo. Também para as pacientes avaliadas por meio da nasofibroscobia há a instalação de uma pergunta acerca daquele sintoma e, portanto daquele corpo, que tem relação com uma função-disfunção que faz um convite a um posicionamento particular. É certo que, para alguns pacientes, este exame é apenas mais um, numa série de investigações a que o corpo sofrido pode se submeter num hospital escola, cabendo ao profissional que o faz, instalar de maneira cuidadosa a “nova informação” de que há algo do paciente naquele fechamento muscular.

É marcante observar que durante as sessões tem sido comum observar o surgimento e o desaparecimento dos sintomas de tosse, falta de ar e disfonia nas pacientes com DPV. Os sintomas costumavam entrar na “partida analítica” – para usarmos os termos de Miller (2000), quando algo era abordado em sua estrutura, ou seja, nos pontos onde o desejo se fazia surgir com o “disfarce” sintomático, expondo assim sua vertente de satisfação.

Se do lado do operador da psicanálise fica o intenso trabalho de fazer com que estas pacientes encontrem um ponto em que tenham condições de “se virar” com suas parcerias na vida, ou seja, “saber haver-se aí” com o corpo em sua dimensão com o desejo, do lado da equipe, fica o desafio de acolher estas pacientes com um tratamento que vá além da queixa. Para isto, é necessário também “saber haver-se aí” com a possibilidade de se deparar na clínica com sintomas que estão para além de serem remitidos com o tratamento padrão, apesar da impotência que isto possa gerar.

Fazer com que o operador da psicanálise e a equipe se comprometam com um projeto terapêutico que inclua a maneira particular que cada paciente possui para lidar com a contingência e com o que há de inominável na condição humana é uma possibilidade de fazer da instituição de saúde um lugar que, além de promover a saúde do organismo, seja capaz de promover a saúde mental dos pacientes ali assistidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Assoun P-L. O olhar e a voz: lições psicanalíticas sobre o olhar e a voz. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

Laurent E. O relato de caso, crise e solução. In: O caso clínico em psicanálise: construção, apresentação, publicação et cetera. Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise. Ano 6 nº 9, 2003.

Miller J-A. A teoria do parceiro. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo: Contra Capa, 2000.

Viganó C. A construção do caso. In: O caso clínico em psicanálise: construção, apresentação, publicação et cetera. Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise. Ano 6 nº 9, 2003.

Abstract

 

      A disfunção das pregas vocais (DPV) é caracterizada por movimento paradoxal de fechamento das pregas vocais, ocorrendo de forma episódica e involuntária durante a inspiração, levando à obstrução das vias aéreas. Os pacientes que apresentam DPV costumam não responder ao tratamento indicado para asma, levando ao uso inapropriado de corticóides sistêmicos com efeitos colaterais, freqüentes passagens em setores de emergência, hospitalizações desnecessárias e, com menos freqüência, intubação e traqueostomia. A princípio, abordar a paciente como se esta não possuísse asma pode levar a uma reação de agressividade, interpretada por elas como um fingimento ou uma estratégia consciente. A interlocução entre o psicanalista e os demais profissionais da equipe de saúde mostra-se de significativa importância.