Scroll to top
  • Tel.: (11) 3864.7023

A Guerra e a Ética… da Psicanálise

 

A double shot of coffee, black served in a tea pot by Dennis Shields

José Wilson Ramos Braga Júnior (CLIPP)

No dia 24 de fevereiro de 2022 deu-se início a operação militar de invasão à Ucrânia, liderada pelo presidente da Rússia, Vladmir Putin, e que vem sendo considerada um dos maiores conflitos europeus desde a 2ª Guerra Mundial. Sem previsão para acabar, traz consigo a temida possibilidade de uma 3ª Guerra Mundial – consequentemente, a maior crise de segurança desde a Guerra Fria, e é em nome da segurança que Putin justifica o fortalecimento do controle militar ao redor da Ucrânia iniciado desde 2021 i. O conflito seria uma resposta às ações por parte da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) contra os interesses russos, o que quebraria uma promessa feita à União Soviética desde a Guerra Fria e configuraria uma ameaça à Rússia. Putin considera a Otan como “um instrumento da política externa dos Estados Unidos” – país com o maior poderio militar do mundo ii. Estaremos nós diante dos “terríveis discursos do poder”, como diz Lacan? iii.

A psicanalista Natalie Wüfing destaca em seu texto Não os perversos, mas os burocratas vão desencadear as coisas iv, seu sentimento de estranheza com a leitura das primeiras páginas da lição 18 do Seminário 7, a ética da psicanálise, intitulada A função do belo. Ela se questiona se estaria no túnel do tempo, se o que Lacan fala seria exatamente sobre os tempos atuais, sobre hoje. É com base no texto de nossa colega alemã que irei tentar desenvolver algumas articulações nos próximos parágrafos.

Lacan faz a abertura de sua fala com a seguinte questão: (…) transpusemos a linha? Não se trata do que fazemos aqui, mas do que ocorre no mundo em que vivemos. (…) No momento em que lhes falo do paradoxo do desejo, no que os bens mascaram, vocês podem ouvir lá fora os terríveis discursos do poder” v.

Importante destacar o contexto histórico na época dessa conferência em 18 de maio de 1960: a Guerra Fria (1947-1991), um conflito político-ideológico. Abro aqui um parêntese para descrever rapidamente o que foi a Guerra Fria. Após a 2ª Guerra Mundial os Estados Unidos (capitalista) e a antiga União Soviética (comunista) eram consideradas as duas grandes potências mundiais. A tensão entre elas aumentou após o discurso do presidente americano Harry Truman ao Congresso, em 1947, quando solicitou verbas para combater o avanço do comunismo na Europa. Desencadearam-se, a partir daí, a polarização, a corrida armamentista e espacial, inclusive a interferência externa como no caso do Golpe Militar de 1964 no Brasil. Mas a diplomacia preponderou até que foi descoberta a espionagem dos EUA no território soviético com o escândalo do avião espião U-2 em 1 de maio de 1960, duas semanas antes da abertura do encontro da Cúpula Leste-Oeste que acontecera em Paris. Eisenhower, então presidente dos EUA, recusou-se a pedir desculpas e o camarada Kruschev abandonou o encontro em 16 de maio de 1960 vi, dois dias antes da conferência de Lacan. Contexto interessante, e talvez não tenha sido por acaso que Lacan tenha decidido, naqueles tempos, falar sobre a ética da psicanálise.

No seminário da ética, Lacan parte da ética aristotélica (ética do ideal) cuja finalidade é o Bem identificado à felicidade – atividade da alma racional, passa pela ética kantiana onde o Bem é a própria Lei – vontade que ordena uma ação como dever, e chega a uma ética da psicanálise fundada no real onde o Bem é identificado a das Ding – desejo puro, sem interesse benéfico onde a lei e o desejo coincidem.

Das Ding, ou a Coisa freudiana, aproxima-se do conceito de real em Lacan, é o vazio, ponto lógico inicial – para além da linguagem – da organização do mundo no psiquismo, em torno do qual gira o mundo das representações governado pelo prazer. O campo de das Ding está para além do princípio do prazer e é inacessível ao sujeito, “nem se chega perto e pelas melhores razões”, diz Lacanvii. O índice desse ponto que Lacan designa como intransponível ou o campo da Coisa é a pulsão de morte. A pulsão de morte comporta uma dimensão histórica de algo que insiste e que se torna memorizado, e lá está não somente a vontade de destruição, mas também a vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar.

O que delimita o acesso a esse desejo puro são duas barreiras – a do bem e a do belo. A função do bem se relaciona com a conservação da vida, do princípio do prazer, bens que poderiam imaginariamente servir como objetos de desejo viii. “O âmbito do bem é o nascimento do poder. (…) dispor de seus bens é ter o direito de privar os outros de seus bens” ix. Já a função do belo está ligada à fantasia que protege o sujeito do ser para a morte e da castração x.

Lacan responde ao seu questionamento e diz que o pior é possível “porque o possível é o que pode responder à demanda do homem, e que o homem não sabe o que ele põe em movimento com sua demanda. O temível desconhecido para além da linha é o que, no homem, chamamos de inconsciente, isto é, a memória do que ele esquece” xi . E o que o homem esquece, segundo Lacan, é que a vida é podridão. E complementa: “A possibilidade da destruição segunda tornou-se tangível para nós (…) É por isso que, quando nos perguntamos aqui o que há para além da barreira resguardada pela estrutura do mundo do bem, onde se situa o ponto que faz girar em si mesmo esse mundo do bem para esperar que ele nos arraste todos para a nossa perdição – nossa questão tem um sentido, sobre o qual não é vão lembrar-lhes seu caráter terrivelmente atual”xii.

Lacan toma ainda os textos extravagantes de Sade que levam à incredulidade e ao nojo que podem conduzir a algo estranho, que se chama o desejo perverso. “O fato é que essa formidável elucubração de horrores (…) não é estritamente nada em relação ao que se verá efetivamente em escala coletiva se explodir o grande, o real desencadeamento que nos ameaça. (…) Não são os perversos que a desencadearão mas os burocratas (…) será desencadeada por uma ordem…”. É aí que podemos nos perguntar, assim como Natalie Wüfing, se a antiga Guerra Fria, a memória esquecida, acabou de ser colocada no microondas. E responde: é possível.

i https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-a-guerra-da-ucrania-em-10-pontos/
ii https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60580704
iii Lacan, J. (1959-1960) Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar (2008), p. 275
iv https://www.thelacanianreviews.com/not-perverts-but-bureaucrats-will-set-things-off/
v Idem Lacan, J. (1959-1960), p. 275
vi https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Fria#Crise_e_escalada_(1953-1962)
vii Ibdem, p.259
viii Hollck, ALLR. Bem, Lei e Desejo. Pressupostos para uma leitura do Seminário 7: Aética da psicanálise. Belo Horizonte – 1999. https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-9RQH53
ix Idem Lacan, J. (1959-1960), p. 274
x Idem Hollck, ALLR.
xi Idem Lacan, J. (1959-1960), p. 276
xii Ibdem