Scroll to top
  • Tel.: (11) 3864.7023

A PSICANÁLISE EM TEMPOS DE GUERRA

 

 

Enigma of Castilla by Jesus Moratiel

Ariel Bogochvol (Psiquiatra/ EBP-SP/CLIPP)

Usamos a palavra guerra não apenas no sentido estrito conflito militar entre dois ou mais países, grupos, facções – mas latu sensu, aplicando-a a situações que envolvam violência, destruição, morte e também a combates no plano político, ideológico, cultural, jurídico, isto é, a palavras, ideias, narrativas, discursos que expressem, preparem ou desencadeiem, no real, violência, destruição e morte.

Não faltam notícias sobre guerras, no front externo e interno. No front externo, há a consolidação da ocupação russa no sul e leste da Ucrânia, a paralisia nas gestões de paz, as consequências mundiais da guerra em termos humanitários, econômicos, sociais, geopolíticos, ideológicos, midiáticos.

No front interno, a morte de 25 pessoas na V. Cruzeiro, RJ, numa operação conjunta da policia civil, militar e rodoviária e a morte de uma pessoa num “camburão de gás” em blitz de policiais rodoviários em Umbauba, SE. Notícias também de assassinatos, desparecimentos e estupros de indígenas no Território Yanomani invadido e ocupado ilegalmente por garimpeiros em busca de ouro. Notícias da guerra cultural, com a recusa do governo em conceder à psiquiatra Nise da Silveira o lugar de reconhecimento no panteão dos heróis e heroínas nacionais. Notícias da guerra ideológica, o lançamento do Projeto de Nação, o Brasil em 2035 que traça o cenário do domínio atual no Brasil até 35.

Vivemos em aparente normalidade, mas, no país, travam-se múltiplas guerras. Vivemos sob a égide do estado de direito, num regime constitucional, democrático, republicano, baseado em certas normas, regras e princípios relativos ao funcionamento da esfera pública e privada, mas a Lei que nos rege – a Constituição de 1988 – é confrontada e transgredida diuturnamente nos combates e guerras nacionais colocando em risco o regime que nela se sustenta. É o regime instaurado após a derrocada da ditadura militar depois de muitas lutas pela redemocratização do país. Nunca se viveu um período democrático tão longo no Brasil, com seus conflitos, contradições, realizações, fracassos e nunca a democracia esteve tão ameaçada. Em seus 34 anos de existência conturbada, marcada por dois impeachments, o regime em si jamais fora colocado em questão.

O regime é ameaçado frontalmente pela forma como se exerce atualmente o poder. A presidência deveria zelar pela preservação da ordem que possibilitou sua eleição, a ocupação do seu cargo e o exercício de sua função, mas sistematicamente contesta esta ordem. Agente subversivo assumido, bem diferente dos subversivos de extrema esquerda que pulularam no Brasil e no mundo nas décadas de 70/90 e que viviam na clandestinidade, disfarçados, armando a revolução comunista e sonhando com o fim do capitalismo. Um subversivo de extrema direita que se engaja no combate pela reação às mudanças da civilização, sonhando com a restauração de uma ordem anterior, arcaica, mítica, pré-revolução inglesa/francesa/russa, isto é, pré-moderna. Quase como um oximoro, o presidente é um subversivo reacionário. Com a particularidade de que, na cena política, não está em oposição ao poder, como os subversivos tradicionais, mas no exercício do poder.

No exercício do poder, o presidente tenciona as “4 linhas da constituição” em limites extremos, realiza repetidos atos de transgressão e ameaça insistentemente com a execução de um golpe de estado. É acusado no Brasil e fora do Brasil, em tribunais internacionais, pela prática de numerosos crimes e é objeto de mais de uma centena de pedidos de impeachment por crimes comuns e “de responsabilidade’’. No governo dedica-se a práticas “esportivas”, à participação em eventos civis (feira de agronegócios, reuniões com empresários, comerciantes, inaugurações de obras, cultos religiosos) e militares (datas comemorativas, formaturas, desfiles, quartéis) onde discursa de “improviso” o mesmo mantra que justapõe a exaltação à família, pátria, Deus, liberdade, armamento da população e a condenação do aborto, do comunismo, dos Nove Dedos, do STF e STE e de ministros selecionados, personagens/instâncias vinculadas a garantias da ordem e do processo eleitoral. Em sua ação subversiva, conta com a cooptação do Congresso dirigido pelo centrão, a cumplicidade da PGR e do ministério público, o aparelhamento despudorado do estado, sua identificação ao segmento armado (militar, policial, fazendeiros, clubes de tiro), o apoio de grupos religiosos, com o apelo e a mobilização das massas e com ampla rede social e midiática.

Qual o projeto desse governo? Qual “nova ordem” implantar no lugar da “velha ordem”? Estado de exceção? AI-5 para garantir a liberdade? Fechar o STF? Derrubar os ministros inimigos? Conservar os indicados e indicar fantoches? Dissolver o congresso? Extinguir partidos? Proibir eleições? Instalar uma ditadura militar-policial-miliciana? Em nome de Deus? Do povo? Contra o comunismo? A despeito de seu projeto confuso, tosco, mal articulado, delirante e dos trágicos resultados de seu governo em termos sociais, econômicos, sanitários, ambientais, o presidente é um combatente incansável, imbroxável e bem competente na execução de seu projeto.

Em três anos no poder, mudou a forma de funcionamento de todos os órgãos do estado pela via do aparelhamento, interferência direta, esvaziamento, dissolução, desvirtuamento e escracho, introduziu novo estilo político baseado no litígio e confronto permanentes e trouxe à cena personagens, grupos, segmentos, forças e tendências que, até o seu surgimento, não tinham expressão e representação à luz do dia. Líder popular, populista e grande engenheiro de demolição que se empenha em destruir com afinco, esmero e rigor as fundações e o edifício do regime republicano (res pública) e democrático. Antes do golpe de estado que anuncia e brada aos quatro ventos, desfere obstinada e reiteradamente tipos variados de golpes no estado.

O governo executa com precisão a cartilha dos movimentos de extrema direita contemporâneos e de seus modelos dos anos 20-40 do século XX – o fascismo e o nazismo. Um dos expoentes destes movimentos ao lado de Trump, Orban, Salvini, M. le Pen e, independente de seu destino eleitoral, um case de sucesso. Seus objetivos, ideais, modo de funcionamento, engrenagens, narrativas, propaganda, concentram altíssimos teores da pulsão de morte e de potência destrutiva e, não por acaso, o fetiche das armas é um dos seus símbolos preferenciais. A vigorosa necropolítica, consegue levar ao paroxismo o mal-estar na civilização brasileira e, no limite, pode levar o país à guerra.

A ascensão, expansão e consolidação de movimentos de extrema direita é um ponto em comum entre nosso tempo e o tempo em que ocorreu a troca de correspondência entre Einstein e Freud que resultou no texto Por que a guerra? i Cronologicamente, 1932 situa-se dez anos depois da instalação do regime fascista na Itália, um ano antes da ascensão do nazismo na Alemanha, seis anos antes da Anschluss e do exílio de Freud. Curiosamente, nem as perguntas de Einstein “como a psicanálise e o psicanalista explicam a guerra? O que a psicanálise e o psicanalista podem fazer para impedir a guerra?”, nem as respostas de Freud, faziam menção às guerras internas em curso ou em gestação nos países europeus que, como a guerra mundial, afetaram profundamente a humanidade, a civilização, a vida dos cidadãos, dos psicanalistas e o exercício da psicanálise.

Em tempos de guerra ocorrem comoções na clínica, técnica, condições, campo de ação, teoria e política da psicanálise. Nas guerras, os analistas tiveram de combater em fronts, integraram movimentos de resistência, ajudaram na organização de exércitos, cuidaram de centros de atendimentos militares, se defrontaram com novos quadrosii e com o recrudescimento de quadros conhecidosiii, tiveram de adaptar sua prática a condições não standardsiv, foram impedidos de exercer a psicanálise, perseguidos, mortos, forçados ao exílio. Nos tempos de guerra, as políticas da psicanálise se modificam e, historicamente, as instituições se engajaram em lutas pacifistas e antifascistasv, em tentativas de acomodação e subserviência ao regime,vi em políticas de neutralidadevii, em políticas de resistência. viii

No tempos de guerra em 2022, diante do atual governo que ameaça o pacto civilizatório, as conquistas da civilização, a democracia, a república, os direitos humanos, as mulheres, os negros, lbgts, os povos indígenas, as minorias, o meio ambiente, a saúde, a ciência, a pesquisa, a educação, a cultura, a arte, a memória, a história, a verdade, a razão, os psicanalistas e as instituições psicanalíticas deveriam adotar uma política de oposição e se aliar às forças antifascistas nacionais. Difícil supor que haja, nestes tempos sombrios, outra alternativa política.

i S. Freud – Por que a guerra? – volume XXII – Ediçao Standard

ii Neuroses de guerra, por ex

iii Neurose de angústia, neurastenia que se multiplicaram na pandemia

iv Como os atendimentos on line na pandemia

v Por ex, Miller contra a eleição de M. Le Pen

vi Por ex, E. Jones na Alemanha nazista

vii Como as sociedades psicanalíticas ligadas à IPA durante o regime militar

viii Por ex, M Bonaparte durante a ocupação nazista da França