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Artista delirante – Delirante artista

Maria Bonomi*

 

Diferem muito, porém estão identificados ao mesmo gozo, pelo prazer de desenhar, pelo prazer de lidar com cores pastosas ou líquidas que escorrem, pela alegria de interferir na matéria, criando sulcos, levantando farpas, nivelando e polindo superfícies, definindo formas ou invadindo o branco da tela virgem para escrever ou fazer linhas, retas, curvas ou pelo puro prazer infinito da pincelada, da lentidão na mistura das tintas em pasta, pela descoberta da reprodução, pela visão do nu ao ser transportado para o plano em outra superfície, para acumular num quadro objetos possíveis, achados, ou imagens. Prazer de ampliar com as mãos, com os olhos, para algum tipo de transformação, ou ignorar o tempo do fazer.

 

A respiração é a mesma. Mas a gênese do produto que surgirá difere amplamente. O processo ético e inspiratório também varia, assim como o desejo referente ao que pretendem alcançar. Mas a linha ainda é tênue.

 

A arte é expressão de significados emocionais dentro de cânones organizados para se desenvolver num certo veículo artístico. Sabemos que um artista delirante enfatizará mais a emoção e o outro enfatizará mais a idéia… Quanto da emoção (não existe uma sem a outra), quanto do pensamento nos dois artistas acompanham-se de uma reação física visceral? Impossível elaborar qualquer teoria a respeito dessa diferença, a não ser pela gênese que impulsiona o artista, caso pretenda um significado transcendental para sua obra. Pretende vesti-la de insubstituíveis funções transformadoras em relação ao entorno?  Necessita e pretende revelar alguma coisa de qualquer maneira? A arte é uma forma de conhecimento compatível com o grau de informação, de aprendizagem, de estudos e, conforme  seu entendimento intelectual, ele se comunicará tanto através da idéia, como do sentimento, da emoção, armazenando símbolos e comunicando suas experiências humanas, poéticas e subjetivas como algo definitivo e transformador. O artista delirante sempre fará seu trabalho pelo viático do delírio, empregará várias premissas e suposições. Estabelecerá sempre um ponto de vista e visará determinados objetivos. O delírio para ele é um método. O delírio para ele é uma estrutura que sistematiza ordenadamente.

Thomas Ess, esse controvertido crítico, nos dá uma definição brilhante do que pretende a arte, do que pretende o artista profissional, ou seja, poder fazer qualquer coisa, significar qualquer coisa, simular qualquer coisa, contanto que esta qualquer coisa corresponda e seja controlada pela experiência mais intensa do artista. A arte coloca os seus padrões acima daqueles da comodidade da sociedade e da história. Esta intencionalidade do artista delirante, que trabalha o delírio como seu método, deixa muito claro que há um compromisso com a realidade, mesmo que ele pratique um ato de pura imaginação. As formas artísticas dos artistas delirantes se

baseiam em idéias, em sentimentos, em acontecimentos de determinados períodos culturais que emergem, vivem, lutam para sobreviver e cumprir trajetórias, enveredando em direções existenciais, propondo significados que são examinados e  desenvolvem-se.

 

Nosso processo:

·         conhecimento latente presente e preservado.

·         infiltrações da memória e de experiências técnicas anteriores. Situações similares através de elaboração solitária. Geralmente entre sonos…

·         associações livres, acompanhando experiências pessoais íntimas ou recorrentes, afetos, paixões, dores e descobertas.

·         associações em zigzag; o acaso.

·         deixar tudo em aberto.

·         mediúnico.

·         automático.

·         mecanismos de abandono = reação.

·         tempo desacelerado.

·         existência formatada na obra (como sedução).

·         sem limites: interferir no real. No entorno (Arte Pública).

·         transborde, inspiração Apolônica (Platão).

·         reconhecer a ação coletiva para transformar e modificar.

·         tudo é incorporado: de qualquer maneira

·         a morte:total. A obra está feita.Orgasmo:pequena morte.

 

 

Dubuffet polemiza quando diz, em 1967, que a criação da arte ou aquilo que ela parece é sempre, em todos os casos, algo patológico. Dentro da desesperada busca do artista pela ação transformadora, ele investe no limite do método para obter mais abrangência, e desemboca na perversão, num discurso altamente turvo e polêmico. É o caso do naturalismo exacerbado do plastinador Gunther Von Haggens, de certas performances de Vito Acconci  e de Marina Abramovic, do canadense Richard Gibson onde, com esperma, urina, atividades masturbatórias e exibicionistas, detém-se numa exasperada busca narcísica, na qual a perversão torna-se elemento dominante, o estético passa a ser secundário, eventualmente ausente. Não conseguimos mais detectar aquela função transformadora inicial. Não é apenas uma ruptura que leva ao caos mas, sobretudo, quer garantir que o caminho mais curto para o sucesso reside na provocação emocional, visual, criando obras totalmente inusitadas e absurdas para chocar o outro e o público.Quando a obra de arte se constitui somente em espetáculo é sinal que o delírio escapou das mãos do artistaDeixou de ser método, virou objetivo. A obra morte perdeu-se. Implanta-se a estereotipia, manifestação do desequilíbrio, rompe-se a elaboração de idéias = esquizofrenias.

 

A obra do delirante artista não busca o diálogo, não se propõe a nenhum tipo de missão, nem pretende um resultado. Ela é apenas uma manifestação do sujeito para se expor, para criar laços sociais, para tentar, às vezes, comunicação. É um desnudamento centralizado nas representações clássicas do self. É muito o corpo, o olhar, a figura humana, a boca, o globo ocular, órbitas exageradas, sexos anulados ou repetitivos. Há uma certa predileção por representar o ser que a pessoa é, ou se torna, ou se tornou, através do processo patológico. Mas, de maneira alguma, nos cabe detectar a doença, o desequilíbrio – isso cabe aos médicos -, através da mensagem visual. Na pintura e outras manifestações plásticas, apenas conseguimos detectar que a obra não se sustenta plasticamente. Não corresponde aos códigos. Ela não existe plasticamente com plenitude, apesar de ter um estilo, às vezes estilos muito fortes, pertinentes, completos. Exibem características que não alcançam a razão da linguagem escolhida, têm claramente origem em outro tipo de fonte, ou seja, o desejo do delirante artista não é o mesmo do artista delirante, nem a gênese de sua manifestação, nem  sua preocupação pré-estabelecida. O delirante artista não faz afirmações. Suas obras são a antítese do estabelecido. São mensagens inalteráveis e sublimes, não redutíveis pela lógica e pelo consciente. Estão livres da lógica. Ele não exerce escolha, nem responsabilidade. Geralmente, as obras são testemunho do próprio viver, das obsessões, de traumas, buscas para espantar visões, exteriorizá-las. Libertação de um repertório interior alucinatório, a ser transferido urgentemente para fora. A ser comunicado, sim, mas sem finalidades objetivas. Por isso genuíno, expressão autêntica do tumulto individual, de pulsões e de angústias. Liberatório. Não deixa de alcançar o belo e o harmonioso: mas isto não tem importância para o delirante artista. Porém, toca o essencial: o signo.

 

No delirante há uma procura desesperada para trabalhar a matéria, para se expressar e se expressar como finalidade em si, urgentemente, para fora, transferindo-se para fora. Preenchimento de vazios através de uma narrativa alucinatória e não a perseguição de uma proposta. A anterioridade não prepara o surgimento, é apenas auto-escuta. Não acolhe, nem escolhe, vive. O momento preocupante é quando se nota na obra destes artistas uma regressão da imagem. Não da idéia que fazem da imagem, mas da própria imagem em si: uma cena muito chocante foi quando no final dos anos 1960 visitei Nise da Silveira, acompanhando Jean Lemarie, que era o editor dos cadernos Skira. Nos mostraram muitas obras e uma das pessoas que entrou em contato conosco quis me mostrar seus desenhos. Havia neles sempre a representação de uma casa, montanhas, a linha do horizonte, havia sempre a casa com sua janela, sua porta, sua chaminé e me foi dito que ele havia sido lobotomizado recentemente. Desapareceu lá dentro e voltou com os desenhos mais recentes, feitos depois da lobotomia. Ele continuou me mostrando, com muito entusiasmo, as casas que ele estava fazendo agora, só que essas casas eram uma linha reta cortando a folha da esquerda para a direita, era só uma linha na folha de papel branca, com pouquíssima espessura.

 

A evolução de um delirante artista se dá quando ele monta a história de seu universo silencioso. Essa vontade é a melhor qualidade da obra.

 

Texto apresentado na I Ciranda de Arte e Psicanálise, Museu Nacional de Belas Artes,  Rio de Janeiro, em 28.8.2004. 

 

* Artista plástica e membro do Conselho da CLIPP – Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise – Instituto do Campo freudiano – São Paulo.