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ATIVIDADE DE ABERTURA DO SEMESTRE NA CLIPP – Tema: Voz e Psicose

ATIVIDADE DE ABERTURA DO SEMESTRE NA CLIPP

Tema: Voz e Psicose Convidada: Ruth Gorenberg

Por: J. Wilson R. Braga Jr.

No dia 5 de março último, por ocasião da atividade de abertura do semestre da CLIPP, convidamos a psicanalista argentina Ruth Gorenberg para falar sobre o tema “Voz e Psicose”.

O título, escolhido por ela, tem tudo a ver com seu próprio percurso analítico e é também objeto de seu livro “La musica de lalengua” publicado em 2016 pela editora grama.

Neste artigo tentaremos transmitir o que nos foi compartilhado pela Ruth naquela noite.

Na primeira parte de sua fala, a título de introdução sobre o objeto voz, Ruth trabalha algumas referências de Freud, Lacan e Jacques-Alain Miller que a inspiraram na construção do material para essa conferência.

Inicia por Lacan em seu Seminário de 9/4/1974 (Sem. 21) que relata a fala de um paciente que diz: “O que me fazia falta era a sua voz”. Lacan enfatiza que não é somente uma questão de timbre, se trata do objeto a. Diz ainda que “a fonética não é o fonema”, chamando a atenção da diferença entre os dois termos.

Miller em seu texto “Jacques Lacan e a voz” (1994) propõe, assim como Lacan (Sem. 11) diferenciou a visão (órgão da vista) do olhar (seu objeto), que falta algo a escrever e investigar sobre a voz. E nos diz: “Não poderíamos pensar que também existe uma diferença entre o ouvido e a voz?”. Acrescenta que aquilo que fez com que Lacan incluísse o olhar e a voz na lista de objetos a foi a experiência clínica com a psicose, fundamental na obra de Lacan.

 

OS OBJETOS LACANIANOS

Os objetos freudianos – oralanal e fálico – estão separados do corpo e estão destinados a ser objetos que ligam ou separam o sujeito do Outro materno. Estão relacionados a uma zona erógena, delimitada como borda, e são imaginarizáveis, especularizáveis. Dessa forma, há os objetos da realidade com os quais se pode coincidir. Lacan, com a introdução dos objetos olhar e voz, provoca uma ruptura na teoria dos estádios do desenvolvimento e de toda a noção degênese. Entretanto, o ponto máximo de desprendimento de Lacan são as operações de causalidade do sujeito – alienação e separação (Sem. 11).

A voz áfona

Nesse mesmo seminário (Sem. 11), Lacan discute o texto de Freud “A pulsão e seus destinos” e se refere ao objeto da pulsão como “um eco em torno do qual a pulsão traça seu trajeto”. A partir desse conceito, os objetos não coincidem mais com a realidade do organismo. Por isso, a voz como objeto é áfona. Isso não nos impede de falarmos sobre os sons e diferenciá-los de sentido, ou também falar de entonação, mas sempre sob a perspectiva da voz áfona.

 

A ANGÚSTIA LACANIANA

Quando falamos desses objetos, olhar e voz, dizemos que eles têm uma especial relação com o Desejo do Outro, o que leva à noção de angústia. A angústia lacaniana (Sem. 10) é aquela a partir da qual se desloca a castração que deixa de se situar segundo as coordenadas edípicas. A angústia lacaniana está mais além do Outro. A partir da introdução de objeto a, dá-se um passoque vai da biologia a uma lógica, “uma lógica encarnada” (Miller, objetos a e a experiência analítica). Lacan, no Seminário inexistente (1963), nos diz que “A angústia não é sem objeto”. A angústia sinaliza o objeto, indica o objeto, mas não se pode dizer de que objeto se trata, nem sequer podemos dizê-lo pois se articula com a função da falta.

 

O OBJETO VOZ

O shofar

O objeto voz remete ao shofar, um instrumento do ritual judeu.

No Seminário 10 (Capítulo 18 – A voz de Javé), Lacan trabalha o texto “O rito religioso. Um estudo psicanalítico” de Theodor Reik (1919), fazendo um questionamento do pai, e fala sobre o objeto voz. A respeito do shofar nos diz Lacan: “Ele vai servir para substantificar algo da função do objeto a que permite revelar o vínculo do desejo com a angústia e seu engodamento último”.

Lacan fala sobre o objeto voz como um eco, vazio sem substância, uma voz sem som. Como trabalhar isso?

A partir da fala do paciente “o que me faltava era sua voz”, Lacan (Sem. 21) diz que há que diferenciar a fonética e o fonema. Não é uma questão de timbre. O objeto voz não é o que escutamos numa fita cassete, mas aquilo que está nas escansões, nos espaços, nos silêncios. Aí está o objeto voz. Por que Lacan introduz o shofar? Porque o shofar indica a passagem do Nome-do-Pai aos Nomes-do-Pai (pluralização do Nome-do-Pai).

Lacan utiliza uma cena do Êxodo – O sacrifício de Isaac (quadro de Caravaggio, 1601), pois considerou que este quadro consegue mostrar bem a angústia do pai e também do filho.

O quadro demonstra a cena de Abraão, o patriarca hebreu, com Isaac, seu filho predileto. Deus Javé convoca Abraão e ordena que sacrifique seu filho Isaac. No momento do sacrifício, Deus retrocede e o sacrifício não ocorre. No lugar do filho, sacrifica-se um carneiro, e o shofar é o resto do chifre do carneiro. Além disso, esse resto define algo como a aliança entre o Deus pai e seu filho Abraão.

 


Quando Lacan fala da pluralidade dos nomes-do-pai diz que esses têm uma função. O Deus hebreu e o pai da angústia é um pai com um desejo. Seu nome é impronunciável. Há outra passagem bíblica quando Moisés encontra Deus na sarça ardente e pergunta qual é o seu nome. Deus responde: “Ehyeh Asher Ehyeh”. Lacan fala que se trata de “Sou o quesou. Sem nome. Meu nome é impronunciável”.

A fonemização

shofar tem a função de substantificar e fonemizar. Lacan (Sem. 10) diz: “No som do shofar se põe em manifesto a voz de Javé, a do próprio Deus”. Essa voz é aquilo que completa a relação do sujeito com o significante, o que poderíamos chamar de sua passagem ao ato. Também podemos dizer que os significantes primordiais não podem ser separados do ato, trata-se do que ocorre quando os significantes não são articulados com sentido e se encadeiam com outros, sendo emitidos e vocalizados. Quando o significante é emitido e vocalizado estamos em outra dimensão.

 

A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO DE REALIDADE E A EXTRAÇÃO DO OBJETO A fonetização do Outro

Lacan teoriza confrontando-se com a teoria da comunicação. Diz que há uma complexidade na relação do sujeito com o outro; portanto, a linguagem existe no real com suas próprias regras.  uma certa passividade do sujeito frente a fonetização do Outro. Poderíamos assim nos referir a uma certa castração da linguagem sobre a lalíngua que sempre deixa um resto. Um indizível que o objeto voz localiza.

Aproximação com a psicose

Lacan (Sem. 10) diz: “o ouvido é como um ressonador que ressoa no vazio do Outro”. Trata-se de uma metáfora e o importante é que o que corresponde à estrutura do Outro constitui um certo vazio. A experiência da clínica da psicose através das alucinações auditivas nos permite verificar uma faixa nessa operação.

Em Uma questão preliminar (1958) Lacan fala da voz como uma função da cadeia significante enquanto tal; ele se refere à cadeia significante falada, escutada, escrita e lida. A cadeia significante sempre tem relação com o indizível (objeto voz).

Interessante então observar esse movimento de Lacan, partindo do indizível, de uma questão preliminar (1958) até o Seminário da angústia (1962-1963), em que fala do ouvido como um ressonador que ressoa num vazio que o Outro deve constituir. Nesse vazio, Lacan afirma a existência de uma voz imperativa que indica obediência (superego). Pode-se fazer uma relação da função da voz com o shofar. Na neurose, esse “bramido” da castração que é significante transforma-se numa ordem do superego. Na psicose, a voz retorna no real como fenômeno alucinatório.

 

Constituição do campo de realidade

A ideia de constituição de um campo da realidade é um achado posterior de Lacan (1966) no artigo “Suplemento tipológico a uma questão preliminar” e comentado por Miller em “Mostrado em Prémontré” (Matemas I).

A partir da extração do objeto a há a constituição da janela do fantasma. O campo
de realidade se constitui apenas pela extração do objeto a (olhar). Diz Miller: “É precisamente porque o objeto a é extraído do campo da realidade que lhe dá seu enquadramento. Se destaco da superfície desse quadro (acima) esse pedaço que represento como hachurado, obtenho o que podemos chamar de enquadramento: enquadramento do furo, mas igualmente enquadramento do resto da superfície”.

Resumindo, não há construção do fantasma sem a extração do objeto a. Se não há extração do objeto, não se forma o fantasma e não se constitui o campo de realidade, e isso é o que possibilita na psicose que se escute as vozes que são imateriais quanto ao som mas são audíveis pelos pacientes.

 

A alucinação como feito de linguagem

No Seminário 3, Lacan destaca a alucinação como um evento foraclusivo. Poucos anos depois, no texto “Uma questão preliminar” Lacan fala da alucinação de acordo com o estatuto de divisão

do sujeito – o sujeito está dividido – confrontando-se assim com a ideia de um sujeito unitário da percepção.

A questão da alucinação não passa por alteração na percepção (como defendia M. Ponty), senão como a expressão mesma da estrutura e o modo como o sujeito é atravessado pela castração. “O sujeito não pode ouvir-se sem dividir-se”. Lacan reforça que a “alucinação é um feito de linguagem e tem a ver com a cadeia significante”.

 

REFERÊNCIAS

LACAN, J (1973-1974) – Seminário 21 “Les Non-Dupes Errent” (inédito)

MILLER, JA (2013[1994]) – Jacques Lacan e a voz – Opção Lacaniana online, ano 4, número 11. http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_11/voz.pdf

LACAN, J (1964) – Seminário 11 “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

LACAN, J (1962-1963) – Seminário 10 “A Angústia”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

LACAN, J (1998[1966]) – “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, In:

Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. pp. 537-589

MILLER, JA (1996) – “Mostrado em Prémontré”, In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. pp. 150-154

LACAN, J (1955-1956) – “As psicoses”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.