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CORPOS TRANS, ÓDIO E SEGREGAÇÃO

 

Les Liaisons Dangereuses by René Magritte

 

Elaine Costa Dias * (EBP/AMP/CLIPP) 

 

 

A problematização do conceito de Gênero é uma marca de nossa época. “Gênero” e “Trans” tornaram-se significantes mestres na contemporaneidade.

A multiplicidade e a diversidade com que proliferam novas propostas de identidades e de modos de vivenciar o corpo e a sexualidade, desafiam os psicanalistas a saberem abordar essas trans-formações e seus efeitos: na clínica, na relação com a teoria, no debate com outros discursos, no exercício da ética e da política da psicanálise.

O debate sobre gênero remete, também, à questão da segregação que atravessa historicamente a população LGBT+ na América Latina e, particularmente no Brasil, país onde a violência contra essa população é um fenômeno social complexo e preocupante. Segundo pesquisas de ONGs nacionais e internacionais, o Brasil segue sendo a nação que mais mata travestis e transexuais no mundo.

É importante destacar alguns aspectos dessa realidade de violência:

– Esses números são absolutamente subestimados, na medida em que prevalece a subnotificação e a ausência de dados governamentais. Nas políticas e estatísticas oficiais esses corpos não contam e não têm visibilidade.

– A maior parte desses crimes (assassinatos, tentativas de assassinatos, agressões físicas) envolve extrema crueldade e são cometidos, muitas vezes, publicamente.

– A grande maioria das vítimas são travestis e mulheres trans. E jovens: 56% das vítimas está entre os 15 e os 29 anos de idade.

– Tais dados não incluem outras formas de violência como exclusões do meio familiar, falta de acessibilidade a serviços públicos e assédio moral nos mais diversos contextos públicos.

Sintetizando, a maior parte da população LGBT+ no Brasil vive em condições de pobreza e exclusão social, dificuldade de acesso à educação, saúde, qualificação profissional, oportunidades de inclusão no mercado de trabalho formal e políticas públicas que considerem suas demandas específicas. Uma realidade de desigualdade e segregação que se intensificou com a pandemia de Covid-19.

Em 2019, durante o IX Encontro Americano do Campo Freudiano, organizado pela FAPOL com o tema Ódio, Cólera e Indignação: desafios para a psicanálise, o Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade (EBP) apresentou um trabalho em que em buscávamos refletir sobre as razões para essa violenta forma de segregação. Por que esses corpos que subvertem as regras heteronormativas e os semblantes de normalidade mobilizam tamanho ódio?

Considerando a realidade brasileira, cabe destacar que o avanço de discursos políticos e religiosos conservadores tem contribuído para fomentar estas formas de violência. Com a ascensão do novo governo, enfrentamos um discurso político que ataca diretamente as teorias de gênero e as políticas públicas que garantem os direitos da população LGBT+. O resultado imediato deste discurso de rechaço à diferença é o aumento da homo/transfobia, da violência contra esta população e do feminicídio.

À luz do último ensino de Lacan, esta paixão primordial de ser, o ódio, passa a ser pensada em termos das relações com o gozo. Se o troumatisme do encontro entre o vivo e a linguagem inscreve na carne um acontecimento que não cessa de não se escrever, se odeia no outro o gozo que, por estrutura, é impossível de qualquer saber. Há, portanto, na raiz da segregação, um ódio ao que é o mais íntimo e, ao mesmo tempo, o mais estranho ao sujeito – o gozo.

Como nos diz Lacan, o kakon (o ódio do “inimigo interior”) infiltra-se no laço social. Numa era de “evaporação do pai”, de queda das referências fálicas, os sujeitos encontram-se ainda mais desprovidos de recursos que lhes permitam fazer frente ao desafio de forjar soluções para a alteridade radical do gozo que lhes habita os corpos.

Na atualidade, num contexto de império das imagens e de discursos totalizantes e totalitários, os corpos trans, ao encarnarem um “suplemento real que constitui uma objeção à inteireza do imaginário”, desvelam o insuportável da inexistência da relação sexual e o caráter de semblante de toda tentativa de normatização do sexual.

O significante “trans”, presente no caso a caso da clínica e nos fenômenos e discursos que proliferam no laço social, nos convoca, como psicanalistas, a interrogarmos nossos conceitos e pré-conceitos, nossa prática, nossa ética e nossa política.

Apostamos em uma presença do discurso do analista na cidade que possa sustentar uma política do sintoma, como uma política que faça valer a singularidade do falasser e a dignidade de uma diferença.

 

* Coordena pela EBP o Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade da FAPOL