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Durval Mazzei Filho (Psiquiatra/ EBP-SP/CLIPP)

Escrevi um texto com o mesmo título, acrescido de quatro pontos de exclamação, em 2017. Volto a escrever sobre o mesmo tema. Não coloco os pontos de exclamação pois, se conotavam surpresa há cinco anos, seria hipocrisia fingir surpresa cinco anos após. Se repetição tem algum sentido e uma passagem ao ato comunitário, social, a história da Cracolândia é exemplar. Poderia tão simplesmente copiar e colar o escrito anterior. Literalmente todos os paradoxos e ambiguidades permanecem rigorosamente os mesmos. Inclusive o mote que resultou no escrito anterior: uma ação policial da qual não é possível vislumbrar alguma estratégia, além da tentativa de espalhar o fluxo. Segundo o governador de turno de São Paulo, “espalhar facilitaria a abordagem”.

Cria-se uma situação cômica se não fosse um horror: o fluxo de adictos sem destino e a marcha policial também sem destino. Seria eu maldoso ao equiparar o não-senso de policiais e fluxonários, se é que existe essa palavra? Seriam dois grupos de descabeçados que apenas obedecem ordens de alhures e estão proibidos, por razões diversas, de encarar os próprios dilemas? Dois grupos de títeres disciplinados, sendo um deles a seguir ordens superiores e o outro ordens de um empuxo que não passa pelo corpo do Outro?

A última pergunta faz a diferença entre os dois grupos. Pois os policiais apostam que obedecem a um senso de ordem e disciplina que garante a identificação entre eles, no melhor estilo psicologia das massas e sustentados na razão: nada contra os usuários e a busca é dirigida a traficantes. No entanto, a identificação a um líder não garante a ação em linha com o desejo para cada singularidade ali presente. Sabe-se lá quem pergunta sobre a razão do ato que levam adiante. E hesitam no bom sentido que a obediência cega ao grupo não permite. Muito difícil supor que movimentar o fluxo – fluxo quer dizer movimento incessante – da Helvétia para a Cleveland com um pit stop na praça da libertadora produziria algum tipo de torção, alguma iluminação interior, na repetição dos moços e moças e mais velhos que caminham de lá para cá. Difícil acompanhar a afirmação do governador que afastá-los favorece a abordagem. Minoração de um efeito de grupo como aposta na abertura de um sujeito ao Outro, talvez seja uma esperança distante.

Digo uma esperança distante, pois se há um obstáculo a qualquer um que se dedique à clínica do abuso e da dependência de drogas sabe que, se não há um mínimo de cumplicidade do falasser com o trabalho a propósito do que o move, o trabalho é infrutífero. Mesmo em condições diametralmente opostas à miséria social, econômica, familiar, cultural e simbólica que é patente nos que fluxam. O gozo cínico que ocupa a cena libidinal dos adictos permite um olhar muito embaçado ao Outro, dificultando o imaginar que outra cena é possível. Mesmo que outra cena exista.

Então, escritor, não se faz nada?

Não! Há o que ser feito, mas não pela via da ação coletiva. A presença de profissionais isentos, abordando um a um, pode levar década, mas abre a perspectiva, mesmo distante, de constituir um caminho para o sujeito que, por todas as evidências, habita aquele que pipa, cheira, injeta, fuma e encontra-se obnubilado pela repetição descabeçada. E cada um deles vive uma história particular e privada. Um(a) foi expulso pela família. Outra(o) abandonou a família. Aquele(a) lá encontrava-se na rua, após o orfanato. O(A) ali na esquina chegou no fluxo há uma semana. O ali deitado vivia uma situação miserável.

Ora: por mais que pareçam sob os andrajos e poucos pertences, iguais, não o são.