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DA VERDADE AO SABER

Maria Cristina Merlin Felizola (CLIPP)

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Abordar a questão da “verdade ao saber” é percorrer a teoria de Lacan em dois momentos muito distintos. Para a Psicanálise, estes termos estão em articulação com o sujeito, o sintoma, o ser e o sinthoma.

A verdade se refere ao inconsciente estruturado como uma linguagem, momento em que Lacan esperava que a psicanálise pudesse ser reconhecida como ciência, assim como fora com a Antropologia e a Linguística, quando ambas tiveram sua inserção no saber científico. Este era o objetivo de Lacan à época.

Freud nos trouxe um novo sujeito – o sujeito do inconsciente, uma subjetividade que tirou o eu autossuficiente de sua hegemonia. Freud respeitou a fala de seus pacientes ao escutar e interpretar a verdade desconhecida do eu, mas não (desconhecida) do sujeito do inconsciente. Freud foi aquele que deixou, sob o nome de “inconsciente”, que a verdade falasse. Este é o inconsciente transferencial.

Lacan diz que rememoraçãoi é diferente de reminiscência; aquela se dá a partir do termo impressão: Freud supôs que algumas coisas se imprimiam no sistema nervoso. A rememoração consiste em fazer estas cadeias entrarem em alguma coisa que já estava lá e que se nomeia como saber e, para Freud, trata-se de um saber que supõe um saber falado, que pode ser interpretado – S2. Ela, a rememoração, está totalmente do lado do simbólico. A reminiscência “é a suposição de que já há alguma coisa ali, de uma ideia que já está ali e que não é inventada, que se sustente em um sujeito suposto saber e que quando aparece, surge em seu esplendor solitário como tendo sido aprendida ou adquirida em outra existência ou em um status eterno do sujeito… Mas, não há reminiscênciaii da cadeia borromeana”.

Lacan inventou o inconsciente que se escreve como realiii sob a forma de nó borromeano, uma cadeia de três elementos.

O sujeito é representado verdadeiramente, conforme a realidade, que não tem nada a ver com o real. A forma do inconsciente como Freud concebeu (energética – constante que manteria Simbólico e Imaginário produzindo sentido), não tem nada a ver com a da qual se serve Lacan, onde o real é o elemento que mantém o simbólico e o imaginário juntos; o real faz o nó. Este real é o sintoma de Lacan, ele reagiu a isso, é sua resposta sintomática.

Lacan vai afirmar no seminário XXIII que só é verdadeiro o que tem um sentido. Esta é a diferença entre o real marcado pela falácia e o real que concerne ao verdadeiro. Com a prevalência do real, o simbólico teve sua supremacia perdida, as palavras não necessariamente matam a coisa, sempre sobra um resto. O real tem opacidade, o que torna a apreensão do significado difusa.

Temos um deslocamento do inconsciente definido como verdade do sujeito para um inconsciente definido como saber. “Freud soube deixar, sob o nome de inconsciente, que a verdade falasse”iv. No ato falho era possível associar verdade e inconsciente, mas a verdade foi se enfraquecendo, tornou-se um efeito de verdade nada mais: “… o efeito de verdade passado deixa de sê-lo por sedução do efeito de verdade a advir. Portanto, a verdade apreendida por seu efeito é mutável e variável.”v

Lacan propõe uma nova escrita (uma metáfora) de um alcance simbólico e um novo tipo de ideia que não floresce apenas devido ao que faz sentido, isto é, o imaginário. Isto permite roçar o que chamamos reminiscência. O real traz o elemento que pode juntar simbólico e imaginário. Esta é a resposta sintomática de Lacan. A única energética que pode suprir a de Freud é a do real. O real é desprovido de sentido, o real tem a ver com a escrita/ escritura.

Há o campo do sentido, mas o real é distinto, tem e não tem sentido. O verdadeiro furo é que não existe Outro do Outro. Outro do Outro é o furinho – a hipótese do inconsciente tem seu suporte, na medida em que este furinho possa, por si só, fornecer uma ajudavi.

O real concebido como impossível é sem lei, já que o verdadeiro real implica ausência de lei. O real não tem ordem. Por isso, talvez só seja possível articular o que Lacan chamou de pedaço de real. Não há pontos em comum na cadeia borromeana, nenhuma conexão, o real não comporta este ponto. O real é fora do sentido porque o sentido se fabrica na junção do simbólico e do imaginário, o real é exterior ao sentido.

O que supus há pouco é que eu reduzia o sinthoma, que está aqui, a alguma coisa que corresponde não à elucubração do inconsciente, mas à realidade do inconsciente. É certo que, mesmo sob essa forma, isso implica um terceiro termo, que mantenha separado essas duas rodinhasvii”. Mas se o sinthoma é considerado equivalente do real, este terceiro termo só pode ser o imaginário. “Enfim, podemos fazer a teoria de Freud fazendo desse imaginário, a saber, o do corpo, tudo o que mantém separado os dois do conjunto que constituí aqui pelo nó do sintoma e do simbólicoviii”.

O inconsciente real nega o inconsciente transferencial – neste a verdade fala. Só se pode dizer que se está no inconsciente real quando o espaço de um lapso não produz sentido ou interpretação, mas tem um saber. O inconsciente real é exterior ao sujeito suposto saber, homólogo ao traumatismo e formulado como um limite.

i Lacan, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Cap. IX, p. 127. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.

ii Miller, J.A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. P. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2010.

iii Ibid. p.70.

ivLacan, J. “A ciência e a verdade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998, p. 882.

v Miller, J.A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. P. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2010.

vi Lacan, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Cap. IX, p. 131. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007

vii Ibid. P.134.

viii Ibid. P.135.