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EROTOMANIA EM TEMPOS DIGITAIS

Emanuelle Garmes (CLIPP/Psicanalista/psiquiatra)

 

                   IMAGEM: ELMO HOOD

 

Em meio à solidão e isolamento impostos pela pandemia, S. recebeu uma sugestão de conexão em uma rede social. A um clique, um amor do passado poderia dar alguma graça a tempos tão difíceis. Sabemos que uma sugestão de conexão resulta de eficazes algoritmos que escrutinam nossos dados e os utilizam para maior engajamento digital. Mas para S. aquilo representou um sinal de amor ainda pulsante:

“ele deve ter me procurado no facebook e então a plataforma sugeriu a conexão”. S. então enviou “o pedido de amizade” e o aceite foi lido como prova de sua teoria: ele ainda a ama. Ao que se seguiram tentativas muitas de estabelecer um contato efetivo. Apesar das negativas de um encontro presencial, S. alimenta a esperança de encontrar uma melhor forma de se fazer notar por seu amado, estudando sua rede social, seguindo cada curtida, cada movimento digital para que a reciprocidade enfim se efetue. Ela sabe que ele a ama, mas por razões ainda não desvendadas, a recusa. Na condução do tratamento, uma pergunta se impõe. Qual o estatuTo desse fenômeno erotômano: psicose passional ou idealismo neurótico?

Em seus relevantes e reconhecidos estudos sobre a erotomania, Clérambault destacou e conceituou a importância de dois elementos: fenômeno gerador e postulado. O fenômeno gerador contaria das experiências de automatismo mental – em que fenômenos anideicos como intuições, sensações de estar sendo observado e desejado acometem o sujeito. O postulado viria como uma espécie de tradutor dessa vivências com a ideia de ser amado, num sistema delirante coeso em que “a estrela do amor é atribuída ao outro” 1. Segundo o autor, o erotômano elege como o responsável pelos avanços amorosos uma pessoa de status mais elevado (social ou intelectual), inclusive pessoas célebres, artistas e crê que esse pretendente pode odiá-lo, persegui-lo, mas no mais íntimo, o ama intensamente.

Diferente da evidente psicose descrita por Clérambault, para a S. a erotomania estabelceu-se de forma mais branda, integrada em modos ordinários de amar e ser amado. A historicidade do sujeito e a função da erotomania no caso particular se tornam necessárias na investigação desse fenômeno.

Na histeria, a posição é de interrogação. O sujeito questiona o sentido, os olhares, as mensagens, os sinais que vêm do Outro, numa experiência mista de insatisfação e gozo oriundos desse emaranhado de signos que o Outro emite. No caso de S. a fantasia erotômana aponta para as engrenagens lógicas da fantasia de sedução: sou amado/sou usado?. O objeto está no Outro e em algum momento será possível decifrá-lo e entrar em conjunção com ele. Aqui o objeto é causa de desejo e o Outro barrado. Para S., seu amor devotado a levará ao “felizes para sempre”.

Na posição psicótica, não há o recurso à fantasia para lidar com o objeto em sua extimidade. O objeto a se apresenta em sua vertente real, para além da angústia de castração, como signo de um gozo inassimilável e invasivo, causa de um sentimento de estranheza pertencente e derivado do mais íntimo do sujeito, Unheimliche segundo Freud; angústia para Lacan. A ausência da balisa fálica aproxima o sujeito do objeto: o sujeito é o objeto e o Outro se torna um duplo especular do sujeito, totalizador da experiência do sujeito no mundo, desencadeando a paranóia ao localizar o gozo no Outro.

Com o fim do isolamento, S. passou a frequentar festas para encontrar seu pretendente. O não explícito e encarnado demoveu suas esperanças e a leva agora a explorar sua identificação com a mãe, cujo amor enlouquecido ao pai revela facetas de devastação e deslumbramento.

Bibliografia:

Gillet T, Eminson SR, Hassanyeh F. Primary and secondary erotomania: clinical characteristics and follow-up. Acta Psychiatr Scand. 1990;82(1):65-9.