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Marie-Hélène Brousse (*)
Imagem: instagram @samuelowen (Samuel Owen Gallery Nantucket)

Imagem: instagram @samuelowen ( Samuel Owen Gallery Nantucket)

“Fique em casa” ressoou como uma interpretação em ato. O confinamento pretendia reduzir o laço social ao essencial e à necessidade vital. Ele colocou mais em evidência como os objetos de consumo, para os quais Lacan inventou um nome, as latusas, se apossaram de nossos desejos (en-vies)[1]. Estes objetos, descartáveis, alimentam o desperdício que nos invade. Pela prevalência do capitalismo, a abundância desses objetos, na melhor das hipóteses, esconde os objetos a causa do desejo que circulam entre eles, despercebidos. A diminuição da loucura consumista fez do confinamento um período através do qual cada um, na falta das latusas, pôde vislumbrar como eles nos orientam.

Saímos deste período, a cada passo, à espreita de uma possível ameaça para as liberdades fundamentais. Em Stuttgart, protesta-se contra as medidas “liberticidas” implementadas pelo governo para combater o vírus (1). O desconfinamento e o prolongamento do tal “estado de urgência sanitária” toca efetivamente um ponto muito sensível, a liberdade de ir e vir e, por consequência, a noção de fronteira. Em 1968, Lacan previa “uma segregação ramificada, reforçada, abrangendo todos os níveis, que só multiplicam as barreiras” (2). A história lhe deu razão, testemunhando os dramas daqueles que nomeamos hoje os “migrantes”. Ironicamente, o coronavírus e a urgência sanitária obrigam a que sejamos todos submetidos àquilo que os migrantes que escolhem, arriscando suas vidas, não “ficar em casa”, sofrem há anos: multiplicação das fronteiras nos territórios unidos e abolição da liberdade de se deslocar. Contrariamente, a questão da liberdade de deslocamento pode também historicamente ser abordada pelo termo ghetto, palavra italiana que designa as práticas ancestrais de segregação impostas às populações judias, e depois, por extensão, pode-se dizer, todo espaço fechado.

Além disso, os cientistas, solicitados na posição de experts, deixando seu domínio de competência, se colocam na partida e, ignorando ainda parcialmente as características do vírus, levantam suas opiniões à dignidade de um discurso do mestre “esclarecido”.

Enfim, a viver à sua maneira, a partir da conjugação de seu sintoma com a propaganda de um novo mestre?

Dois reais a distinguir.

Eu proporei, para começar, que estamos lidando com duas ordens distintas de real. De um lado, há o real do vírus, sua transmissão e seus efeitos. De outro, há o real no sentido que Lacan deu na psicanálise. O primeiro é um fato universal, ainda que as manifestações difiram de acordo com os organismos que o vírus ataca. Ele é identificável e rastreável, e, por consequência, objetivável. O segundo é uma das três dimensões, conjuntamente com o imaginário e o simbólico, compondo o enodamento singular no qual o corpo falante se sustenta.

A dimensão do simbólico é fortemente prejudicada durante esta epidemia. Prova disso é que duas de suas invariáveis, a cerimônia dos funerais e a sepultura dos mortos, rituais universais do simbólico nas sociedades humanas, foram atingidas. Então, aí está a fragilização da dimensão do simbólico. O imaginário, ao contrário, infla e coloca o eu (moi) em transe. Lacan, no seminário 10, A Angústia (3), sublinha a diferença entre a angústia, que tem valor de sinal, e o medo, que funciona como signo. O coronavírus desencadeia o medo que Lacan demonstra provocar respostas particularmente inadaptadas: ele “…paralisa,  manifesta-se em ações inibidoras ou plenamente desorganizadoras, ou lança o sujeito num desarvoramento menos adaptado à resposta” (4). O medo do vírus funciona como signo do perigo; ele nutre o imaginário e cada eu, certo de si, dá sua resposta. A angústia, ao contrário, funciona como sinal e aponta um real, não o real biológico do vírus, mas o real em que os objetos a, construídos a partir da caducidade dos pedaços de corpos fragmentados do falasser, são os sinais.

O “fator letal”.

“Com risco das próprias vidas”, esta expressão, que me veio sob a pena, conduz à aposta de Pascal, a qual sabemos que Lacan trabalhou longamente, demostrando que não é possível jogar e ganhar, sem consentir com uma perda inaugural. Mas, que se trate aqui do risco vital, nos conduz em direção à dialética alienação-separação, que Lacan desenvolve ao mesmo tempo na “Posição do inconsciente” e no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. São “…as duas operações fundamentais em que convém formular a causação do sujeito. Operações que se ordenam por uma relação circular, mas, no entanto, não-recíproca” (5). É complicado. Então, sigamos.

A alienação, diz Lacan “é própria do sujeito” (6) – o “sujeito”, notem bem, e não o falasser. O sujeito não surge do real, nenhum sujeito aparece no real; ele é estritamente dependente dos significantes dos quais ele só é efeito porque “Um sujeito só se impõe nela por haver no mundo significantes que não querem [sublinho este termo] dizer  nada e que têm que ser decifrados”(7). Eles não constituem os signos do sujeito, os signos excluem toda a metáfora e toda a metonímia. A alienação, como Lacan a define, surge do fato de que o significante se produz “no lugar do Outro” e fixa o sujeito em um “vel”. O sujeito não é, então, jamais causa de si. No entanto, os exemplos de alienação tomados por Lacan são a bolsa ou a vida ou ainda a liberdade ou a morte. Uma versão da atualidade é a migração ou a morte, ou ainda, para retomar o exemplo do gueto (que, sob forma metafórica, é da atualidade), o gueto ou a morte. Coloquemos então o período no qual vivemos à prova da escolha forçada.

A operação de alienação se apresenta sob a forma de uma escolha. Mas este “vel”, ao contrário do sentido exclusivo que o discurso corrente dá ao termo escolha, responde à estrutura lógica da reunião. Nós podemos então falar de “escolha forçada”.

Em Hegel, é assim que o homem torna-se escravo. Na escolha entre a liberdade ou a morte, escolher a liberdade implica morrer imediatamente e, se é a vida, é sem a liberdade. De toda a maneira, cedo ou tarde o real do tempo se convida, e nós terminamos por morrer. No Seminário 11, Lacan, a propósito de suas duas fórmulas, enuncia: “Deve haver lá dentro algo de particular. Este algo de particular nós o chamaremos de fator letal” (8). Porque Lacan, se apoiando na lógica, ao contrário de Hegel que a apresenta como dialética, mostra que a alienação repousa sobre a estrutura chamada de reunião. Pouco importa escolher a vida sem a bolsa, o gueto ao invés da morte, vocês morrerão no final de toda maneira. A única coisa certa é então o surgimento de uma perda: pagar um a mais de vida pela ausência de liberdade ou pelo sacrifício da bolsa. Aqui está o objeto dinheiro que introduz aqui o objeto a no Outro da alienação e, então, a separação.

Esta operação, que não é recíproca da primeira, “Ela termina a circularidade da relação do sujeito ao Outro, mas aí se demonstra uma torção essencial” (9). Ela é fundada sobre a estrutura lógica, não da reunião, mas da intersecção. “A intersecção de dois conjuntos é constituída pelos elementos que pertencem aos dois conjuntos” (10). Lacan introduz o termo separação pelos equívocos resultantes da palavra separare: se parare, se paramentar, e se parere, abrangendo vestimenta, defesa, alerta, ou ainda engendramento, colocar no mundo, ou mesmo a operação jurídica “procurar um filho para o marido” (11). O ponto comum desses equívocos é la pars, a parte “que não tem nada a ver com o todo”. É quase impossível de imaginar uma parte sem um todo. A separação remete então ao que falta no Outro da cadeia significante da qual o sujeito é o simples efeito. Ela remete a um Outro barrado uma vez que sua intenção é impenetrável. Ela implica o lugar vazio entre dois significantes. Esse lugar vazio não pode ser ocupado a não ser por um objeto. É enquanto objeto que o sujeito é então requisitado. Isso não é sem evocar o face a face com a manta religiosa, enquanto o sujeito ignora aquilo que ele é para o Outro. A separação consiste então em colocar a falta-a-ser como objeto possível do Outro.

O Outro que me confina ou que me desconfina, o que ele quer de mim? Meu bem, sem dúvida, o bem de todos certamente, a saída da crise, a retomada da economia, uma gestão providencial da epidemia, ou ainda fazer o que esperamos dele enquanto autoridade… mas a separação implica que, daí, ele não pode ter a menor ideia, uma vez que esperamos dele tanto nada, quanto tudo. Dito de outra maneira, esperamos que ele não seja barrado, tanto no sentido lacaniano como no sentido, senão comum, pelo menos popular: que ele seja e/ou que ele não seja louco. Nos dois sentidos, é um impossível.

É claro, então, que não há outra escolha pelos seres falantes que não a forçada, e que toda a separação coloca em jogo os objetos caducos do corpo falante, esta parte (pars) mais preciosa do que a vida. Uma análise instiga. Nisso ela é uma experiência crucial. Ela permite a cada analisante vislumbrar a relação entre sua falta-a-ser e seus objetos, dentre os quais ele mesmo, a partir da relação entre alienação e separação. Fazendo isso, ela torna produtivas, funcionais, as perdas em benefício do desejo. A separação permite aceder ao objeto que causa o desejo vital para os falasseres. O traço de não reciprocidade essencial à transformação da alienação pela separação, Lacan o reutiliza no Seminário 20, Encore (12), fazendo sempre uso da lógica modelando-a à disciplina do discurso analítico. Ele produz uma outra diferença completamente despida de reciprocidade: não mais entre alienação e separação, mas entre masculino e feminino.

Conclusão em forma de jogo.

 Retornemos à formulação da alienação tal como foi modificada pelo lugar feito aos objetos causa do desejo e não aos objetos desejados. Inventemos novas fórmulas da escolha forçada no modelo de a bolsa ou a vida, ou de a liberdade ou a morte. A minha será: o laço ou o vírus. Ou dito de outra maneira: o fútil ou o útil. E a sua?

(*) O texto Choix foncé foi publicado, originalmente, na Lacan Quotidien 890 e traduzido para este boletim com a gentil autorização de Marie-Hélène Brousse.

Tradução: Paula Christina Verlangieri Caio de Carvalho

Revisão: Daniela de Camargo Barros Affonso

 


Bibliografia
  1. “La démocratie, pas la virologie: des milliers de manifestants attendus em Allemagne contre les restrictions dues coronavirus”, Le Monde, 17 mai 2020.
  2. Lacan, J., “Note sur le père”, La Cause du désir, nº 89, mars 2015, p. 8.
  3. Lacan, J., O Seminário, livro 10, texto estabelecido por J.-A. Miller, Rio de Janeiro – Jorge Zahar Ed., 2005.
  4. Ibid, p. 177
  5. Lacan, J., ”Posição do Inconsciente”, Escritos, Rio de Janeiro – Jorge Zahar Ed.,1998 p. 854
  6. Ibid
  7. Ibid
  8. Lacan J., O Seminário, livro 11, texto estabelecido por J.-A. Miller, Rio de Janeiro – Jorge Zahar Ed., 1998, p. 201
  9. Ibid, p. 202
  10. Ibid
  11. Ibid, p. 203
  12. Lacan, J., O Seminário, livro 20, texto estabelecido por J.-A. Miller, Rio de Janeiro – Jorge Zahar Ed., 1985.