por Cláudia Aldigueri Rodriguez
Há muitos e muitos anos, um gigante colossal encontrava-se placidamente adormecido, embalado pelo som do mar e acolhido pela luz do céu profundo da terra em que vivia. Tamanho adormecimento sintomático teria sido fruto de uma inibição via significante do além-mar, deixando-o na inércia, à espera da profecia de gigante do futuro. Como assim, gigantesco, e dominado pela libido negativa e decorrente pulsão de morte geradas pelos embates vividos, tudo isso refletido naquele entregar-se depressivo? Suposições!
Quem poderia resgatá-lo de seu berço esplêndido? Conta a lenda que o brado retumbante de um povo longínquo, pacífico, porém valente, possuía a varinha mágica com poderes para desfazer tal encantamento do sono perene – a única forma de trazê-lo de volta à vida. Muitas luas testemunharam esse sono gigantesco. Muitas primaveras floresceram os campos ao seu redor.
E veio o dia D. Na calada da noite, o povo longínquo, reunido na ágora – nas ruas -, encontrou forças para dar o grito retumbante em uníssono, sem medo do despertar do gigante, sem medo de suas retaliações. Uma grande manifestação no âmbito do real, uma explosão inexplicável, inenarrável, de algo contido, há muito recalcado.
Manifestações conjuntas do olhar, da voz, do corpo. Manifestações marcadas pelas palpitações e ritmo acelerado dos corações; pela respiração ofegante descontrolada; por suores e calafrios; por segundos de apreensão, medo e ansiedade; por passagens ao ato pontuais; pelo rosário de demandas histéricas e obsessivas em profusão; pela presença paranoica do Outro; pelo delírio de entusiasmo generalizado. Uma irrupção sintomática coletiva avassaladora! A ordem do simbólico fora chacoalhada!
E assim foi que o despertar do gigante o impulsionou a caminhar, pesada e lentamente. Um caminhar ainda desbussolado. Um sintoma desvelado, agora escancarado! Um percurso a ser desbravado, um desafio. Entretanto, com a possibilidade de passar do sintoma à descoberta do savoir y faire – do saber-fazer com o sintoma -, visando à construção de um sinthoma.
Fingers crossed por essa parceria gigantesca!
Minha metáfora delirante surgiu ao ver, circulando no Facebook, a junção da propaganda para Johnnie Walker, planejada e executada sob o comando da agência de publicidade Neogama/BBH, com clips das últimas manifestações de rua no Brasil. A ideia inicial é uma lenda fenícia e, compartilhando a lenda, a crença dos cariocas de que o conjunto de montanhas, ao longo da costa da cidade do Rio de Janeiro, seria um gigante adormecido. C’est ça!
Um momento brasileiro delicado. “Somos fruto do pecado original, aquele que criou o Estado brasileiro, em 1822, sem que houvesse de fato, uma nação que o reivindicasse” disse Jaime Pinsky, historiador e professor da Universidade de São Paulo, em 26 de julho passado, no Jornal Folha de São Paulo, em sua crônica “O pecado original”. Não nascemos pelo viés do desejo, mas tínhamos que nos constituir política e singularmente, mesmo sem possuir uma imagem especular de consciência e identidade política democrática – uma empreitada difícil!
Um momento delicado: o povo não se reconhece representado por suas lideranças, mas começa a despontar em meio ao desejo coletivo de desejo de reconhecimento – mais saúde, mais educação, mais respeito e transparência. Tempo de investir a libido social na construção de uma nova subjetividade política voltada à coletividade. Será mesmo que o povo brasileiro quer o que deseja?