“Orientar-se num momento de crise”, de Isabelle Capdeville (O Folhetim nº 11), trata do ato da escrita como um recurso usado pelo garoto Albert para dar conta da separação de algum objeto (preso) na sua história. O destaque do texto é para a pertinência de um ato analítico que exigiu habilidade para reverter uma provável ‘passagem ao ato’ em uma ‘passagem à escrita’ pelo processo de transcrição de uma história oral até a sua publicação. Outra riqueza, pouco explorada pela autora, seria como o “conjunto da obra” deste garoto: criar, ditar, escrever, ler, se reconhecer na sua própria escrita, tomar distancia do produto escrito pela via publicação lhe rendeu um laço social singular – a visibilidade. Segundo a autora, este processo lhe possibilitou refazer seus laços sociais como um sujeito reconhecido não mais pelas bagunças que provocava, mas pela sua própria produção cultural. Em “Urgência da Poesia” (O Folhetim nº 15), inspirado em Rimbaud, Lacadée comenta a “atmosfera de ‘poesia objetiva'” captada pela instituição descrita no texto de Capdeville. (Maria Noemi de Araujo, Cien-CLIPP)
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O Folhetim
n° 11
Orientar-se em um momento de crise
Isabelle Capdeville – Podensa
O Folhetim preparatório das Jornadas de 23-24 de janeiro aguarda seu texto nos endereços:
danielroy@wanadoo.fr; herve.damase@orange.fr
Albert (12 anos) acolhido há dois anos no Hospital Dia de Podensac (França), nos foi encaminhado por ocasião de uma “entrevista clínica”, numa atividade de formação intitulada “Se orientar nos momentos de crise”, com Gil Caroz, no “Pólo Infanto-Juvenil” do Serviço da Drª Maryse Roy.
Albert se recusava terminantemente a freqüentar a escola, o tocava muito a exclusão dos demais laços sociais. Esta sua recusa, considerada por nós como “momentos decisivos”, era acolhida como um momento de crise. Toda relação sua com qualquer outra pessoa o deixava potencialmente perigoso, ameaçado e suscetível a provocar explosões violentas. Havíamos lhe perguntado como nós devíamos nos portar nesses momentos particulares de crise, de modo que ele pudesse encontrar uma saída que não fosse catastrófica.
Evocarei aqui uma situação em que pudemos, com Albert, encontrar uma solução. O jovem encontrava-se no jardim, agitado, perturbando os outros, pronto para bagunçar. Como costumava fazer após lhe ocorrer algo que lhe parecia uma injustiça na qual ele seria vitimado: apropriou repentinamente da vassoura do colega Sylvette e, com o objeto nas mãos, gesticulava ameaçando seus camaradas. Tentamos em vão recuperar o objeto. Neste instante, Albert faz um trabalho que nos ajuda. Ele diz não poder nos entregá-la, porque esta vassoura pertence à sua família há muitas gerações. Agarrei por impulso esta proposição, sugerindo-lhe escrever esta história maravilhosa, fazendo um artigo para Mad News, o Jornal do Hospital Dia. Ele aceitou. Pusemo-nos, a escrever enquanto ele ditava a «História da vassoura e do fuzil e muitas outras coisas que pertencem à família B” (transcrição oral do que ele dizia).
Trata-se de uma história de um guerreiro cujo antepassado tornou-se um herói. Albert escolheu uma “apólice de escritura”, um modo de apresentá-la e nós a imprimimos. Com isto, ele adquiriu certa confiança, nada falsa.
A « vassoura » apareceu pela primeira vez com Roger B, em 1856. E em 1860, ela serviu para matar o Herr General (…). Os soldados do Herr General atacaram Roger, porém com um fuzil. Ele conseguiu fazer o fuzil automático e hoje ninguém mais conseguiu refazê-lo. E quando ele retornou herói, foi aclamado por todas as pessoas e disse: “eu vou deixar seu país”. Assinado. Albert.
Naquele dia de tensão, a passagem da sua história para a escrita lhe possibilitou a se desembaraçar daquilo que o aprisionava. Tomando esta pequena invenção, apoiando-se sobre a rede que nós temos tentado criar em torno dele, não lhe permitimos encontrar pequenas soluções, do tipo da « clemência de Roger ». Do nosso ponto de vista, o fato de Albert ter escrito sobre seu Caso, além das outras reflexões, ainda hoje percebemos inúmeros efeitos fundamentais sobre ele que anda mais apaziguado, mais humanizado e começa a retornar à escola, com a nova educadora…
(Tradução: Maria Noemi de Araujo)
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O Folhetim
n° 15
Urgência da Poesia
II- O gesto de ruptura
Philippe Lacadée – La Demi-Lune
O Folhetim preparatório das Jornadas de 23-24 de janeiro aguarda seu texto nos endereços:
danielroy@wanadoo.fr; herve.damase@orange.fr
Faremos um convite às nossas instituições, orientadas por diversas práticas, a estar à altura do inconsciente de seus membros diante do “desregulamento de todos os sentidos” perante o qual nossos jovens estão submetidos. Vamos nos valer daquilo que, na prática de avaliação regulamentadora dos nossos sentidos, um ato da palavra que venha surgir, do não-sentido do real que nos orienta, seja “a poesia objetiva” e faremos a escuta (entendimento).
Estas duas expressões são de Rimbaud. A última, usada por ele somente uma vez, pode ser lida numa de suas cartas a seu mestre de retórica, Georges Izambard, “O coração suplicado”, de maio de 1871. Nela, o poeta nos diz também que brevemente será um trabalhador “apressado para encontrar o lugar e a fórmula”… “ “serei um trabalhador desta idéia que tomo”.
Permitam-me ver aí, neste gesto de ruptura a criação da “poesia objetiva” que Rimbaud nos mostra em “Ume saison en infer.”
« Un soir, j’ai assis la Beauté sur mes genoux.
– Et je l’ai trouvée amère.
– Et je l’ai injuriée. ».
Remeto ao dizer de Lacan sobre o insulto no “L’étourdit”: no diálogo, tomar “a primeira palavra como a última (conféromère)” (…).
Nas nossas instituições, o trabalho pode muito bem ser feito sem amargura no entender dessa « poesia objetiva » surgida na urgência da ação de alguém, se soubermos convidá-las a ser trabalhadoras da « poesia objetiva » que está embutida na sua ação desregrada.
Este gesto de ruptura introduzido na nossa modalidade de trabalho faz surgir tais enunciações na nossa dança da instituição. No Folhetim n° 11, Isabelle Capdeville, com Albert, testemunhou fortemente esse gesto de ruptura capaz de introduzir nas nossas instituições uma atmosfera de « poesia objetiva ».
Albert está num jardim onde se encontra atrapalhando os outros, num « desregulamento de todos os sentidos » pronto a dilacerar. Se sentindo como um objeto, injustiçado, vitimado, se apropriou repentinamente da vassoura do colega Sylvette. Com o objeto nas mãos, se pôs a gesticular ameaçando seus colegas. Pode-se fazer aí o jogo da evocação do regulamento de sentido. A vassoura é um objeto pertencente à Sylvette e isso permite Albert fazer uma descoberta. Esta vassoura não pode ser restituída ou devolvida, pois pertence à sua família desde muitas gerações. Naquele instante, Isabelle introduz seu gesto de ruptura, agarrando a esta proposição, numa espécie de urgência primeira, elevando-a a um ato de « poesia objetiva »:
« “Eu serei aquele que escreve esta bela história”.
Como Rimbaud, Albert se tornou um trabalhador capaz de fazer um artigo para o Mad News: «a história da vassoura e do fuzil e cheio de outras coisas que pertencem à família B ». Assim, ele se ocupa da Beleza do real ali onde, como disse Rimbaud à Izambard:
“Os sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, ter nascido poeta, e eu me reconheço poeta. Não é mesmo minha culpa. É falso dizer: Eu penso: deveriam dizer me pensam. – Perdão pelo jogo de palavras. Je est un Autre”. (Eu é (estou?) outro).
Poderíamos arriscar uma instituição onde cada um pudesse dizer: como Rimbaud: « eu é outro » [ou, “estou outro”?]. De todo modo, nesta curta vinheta, Albert e Isabelle se revelaram serem parceiros à altura do ato passador da poesia objetiva, surgido na urgência?
(Tradução: Maria Noemi de Araujo)