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NOVAS HISTERIAS, ANJOS DO CAPITALISMO (*)

Nieves Soria (EOL/AMP)

O paradigma paterno.

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A inexistência da relação sexual é consequência da perda do instinto, articulada à incidência da linguagem no parlêtre (falasser). Diferente das linguagens animais, feitas de signos, somos atravessados por uma linguagem de significantes. Significantes soltos (livres), que se encadeiam pelo efeito de uma operação de nomeação, de enodamento, que constitui o eu, o corpo e a realidade. Para que ocorra esta operação, torna-se necessária a função de um significante que se distinga do resto como um todo, fazendo um conjunto. Assim é que, na moldura de uma ordem simbólica, realiza-se a operação do espelho.

Na ordem simbólica que se instaura no Ocidente desde a cultura greco-romana até a judaico-cristã, destaca-se um significante que funciona em regime de exceção, localizando um furo, um vazio e possibilitando o encadeamento dos significantes. O Nome do Pai é o que opera, então, uma ordem que possibilita assumir simbolicamente o corpo recebido. É um paradigma que tem como referência a natureza, é uma simbolização da natureza, e nisso pode-se considerar uma suplência do instinto; Lacan refere-se a isso em múltiplas oportunidades, desde o começo de seu ensino 1.

A histérica e Mulher

A perda dos instintos de autoconservação e de conservação da espécie manifesta-se no parlêtre (falasser) como dois furos: a morte e o sexo. O sexo é um furo na linguagem, ligado ao impossível de escrever a relação sexual. Por isso a linguagem, em sua totalidade, encontra-se atravessada pelo sentido sexual, é um efeito do furo: o sexo está em toda parte, porque não se encontra ali onde deveria estar. O sexo é a falha estrutural da linguagem. Como suplência a esta falha, opera um uno, o um fálico. Apenas com este significante se escrevem os dois lados da sexuação, que são os dois modos de falhar a relação sexual que não existe.

A mulher não existe porque não se pode fechar um conjunto no qual estariam encerrados todos os elementos denominados mulheres, não é possível universalizá-las. A histeria vem no lugar da inexistência d’A Mulher. Uma mulher é real, encarna em seu corpo o real, o que escapa ao significante. Isto pode ser insuportável. Lacan coloca no Seminário 20 que “nenhuma aguenta ser não-toda” 2.

A mulher é um furo no simbólico, e por isso seu ser de real não pode ser abordado na dimensão do saber. Não há saber sobre a mulher. A histeria surge no ponto preciso desta impossibilidade, desde a Antiga Grécia. Esse inapreensível, impossível de localizar do feminino, ficava então ligado às migrações do útero, vivo no corpo da mulher. Esse real que encarna uma mulher torna-se inquietante, tanto para homens quanto para mulheres, materializando-se no corpo feminino, com manifestações que desafiam o campo do saber estabelecido, desde as pitonisas, passando pelas bruxas, até às pacientes de Charcot.

A histérica e o pai/mestre.

O pai, como agente do discurso do mestre, é o agente da castração. Opera no encadeamento significante no nível superior do discurso, estabelecendo a lógica da fantasia como père-version 3 no nível inferior do mesmo:

Responde ao discurso do mestre, o discurso histérico, histórico, sustentado na armadura do amor ao pai, na montagem da cadeia de gerações 4.

A histérica é parceira do mestre, a quem se dirige para castrá-lo. Assim, a pitonisa, a bruxa, a paciente de Charcot, põem o mestre a trabalhar, a produzir um saber:

O sujeito histérico se localiza no ponto preciso da inexistência d´A Mulher, encarna com seu corpo a impossibilidade de saber sobre aquilo que não é da ordem simbólica, pondo o mestre a trabalhar.

Uma virada fundamental opera-se quando um analista, Freud, passa a ocupar este lugar (lugar do mestre): descobre o inconsciente, inventa a psicanálise. Freud põe-se a elaborar um saber edípico, aquele que lhe vem de sua estrutura, a partir da escuta das histéricas. Isto produz tropeços, como ocorre no caso de Dora, e como ele mesmo vai reconhecer depois: identifica-se demasiado com o lugar do pai, (Freud) desconhece a corrente ginecófila 5.

Freud responde deste lugar para o qual foi convocado na transferência, possibilitando o desdobramento da fantasia como versão do pai, que vai operar como resposta antecipada à pergunta, sem resposta, sobre o feminino. Como assinala Lacan em “Intervenção sobre a transferência”, para Dora uma mulher é um objeto a ser sugado 6.

Freud vem exatamente no lugar para o qual a histérica o convoca, produz um saber e fica castrado, sem conseguir perturbar a defesa da histérica. Dora, com seu sorriso enigmático se vai, deixando-o surpreendido: o que quer uma mulher? Ela não sabe.

Dissipação do teatro.

Lacan colocou no Seminário 18 que, a partir da entrada em cena do discurso analítico, operou-se uma transformação no teatro histérico – o que se estende ao teatro em geral a partir da aparição de Bertold Brecht, que introduz certa distância, certo resfriamento. Lacan situa, como consequência, uma renúncia “à clínica luxuriante com a que ela (a histérica) ocupava o hiato da relação sexual” 7.

E adiciona: “O discurso analítico instaura-se com esta restituição de sua verdade à histérica. Bastou para dissipar o teatro na histeria. Por isso digo que vai de mãos dadas com algo que muda a cara das coisas em nossa época” 8.

Lacan afirmava, então, uma dissipação do teatro na histeria, assim como uma desaparição da clínica luxuriante que preenchia o furo da relação sexual. Anunciava assim um novo estatuto da histeria, dessexualizada, por fora do teatro. Indicava que este movimento a deixaria mais às expensas do imaginário e seus espelhismos: “Pode ocorrer que, aos representantes significantes do sujeito, resulte para eles, cada vez mais fácil, serem tomados pela representação imaginária. Temos signos disto em nossa época” 9.

A histeria rígida.

Desde seu Seminário 17, Lacan se dedica a estudar os efeitos da mutação capitalista do discurso do mestre, como resultado do avanço do discurso da ciência em sua aliança com o mercado. A evaporação do pai 10 deixa a histérica sem parceiro.

Seguindo a via do teatro, desta vez em relação à peça de Helene Cixous, Retrato de Dora – em seu Seminário 23, Lacan faz referência à histeria rígida como uma histeria incompleta, reduzida a seu estado material, pelo que deixa de ser dois, perdendo o elemento segundo que possibilita compreendê-la 11.

A leitura de Laurent é que se trata da histeria sem o sentido, sem seu parceiro interpretante, sem o Nome do Pai. Uma histeria que se sustenta sozinha, indicando que nesta estrutura se trata de “uma cadeia tal, que haja captação do gozo, e do sem sentido sem necessidade de passar pelo Nome do Pai, pelo amor ao pai, pela identificação com o pai” 12.

É interessante a estrutura dessa peça 13 na qual não encontramos diálogos, mas sim, monólogos sucessivos ou simultâneos, visto que a dramaturga opera uma decomposição da cena. A histérica sem teatro e sem pai, esse é o estatuto atual da mesma.

A evaporação do pai.

A mutação capitalista do discurso do mestre opera uma substituição do paradigma edípico, pelo paradigma cibernético. Com este modelo instala-se a eucrasia, o ideal de liberdade absoluta do eu. É o reino do espelho, que carrega uma recusa do corpo real, quer dizer, daquela dimensão do corpo que não é especularizável, que excede à imagem. Daí ocorre que o real do corpo retorna dos modos mais atrozes e ferozes na clínica da histeria hoje. São anjos perplexos diante da existência do corpo.

Trata-se aqui da lógica da inexistência da exceção.  Dessa recusa da função de exceção, seguem-se a evaporação do pai e o estatuto desencarnado do supereu, puro mandato ao gozo, mais feroz e inatacável, como assinalou Lacan no Seminário 17 14.

Daqui para frente, a histeria perde sua condição neurótica. Junto com o pai, evapora-se a neurose histérica, com o sintoma clássico articulado à armadura do amor ao pai e ao corte da fantasia como père-version. Permanecem o asco ou espanto com o sexo (sob novas bandeiras, tais como o abuso, as microviolências, etc.), a recusa da feminilidade corporal 15, da posição de objeto causa do desejo.

Do primado desta lógica, solidária da forclusão capitalista da sexuação, seguem-se duas grandes consequências no plano da clínica da histeria:

a) Perde-se todo o laço com o falo. É o reino da destruição, do vazio, das dificuldades na localização da função de corte. É a clínica das novas histerias líquidas, naquelas em que prevalecem o polimorfismo sintomático, o acting como recurso a uma cena que se decompõe – como em Retrato de Dora –, que se desarma, que se desvanece, enquanto apelo a um pai, não apenas falido, mas sim inexistente. A histeria errática, desbussolada, desorientada, dessexualizada, que tenta múltiplas identificações simultâneas ou sucessivas, que se desfazem como bolhas de sabão. Aqui encontramos casos nos quais prevalecem os ataques de pânico, os actings que não se sustentam, precipitando-se as passagens ao ato e as auto-mutilações, entre outros fenómenos clínicos.

b) O falo permanece como imaginário, puro simulacro, desarticulado da castração, dando lugar a eventuais nomeações rígidas. Pode ser jogado na vertente de ser ou ter:

– Na vertente do ser: prevalece uma imagem ideal que tiraniza, como se verifica na anorexia-bulimia, ou em certos casos da chamada transexualidade masculina, nos quais prevalece a busca de uma imagem sem curvas, como um falo ereto. Busca-se o ser em um espelho sem falta. A identificação feminista pode funcionar aqui como uma todamulher que outorga um pseudo-ser que sabe e diz o que é uma mulher. Nesta perspectiva também podemos encontrar a reivindicação contra um pai-espectro (“o patriarcado”), que pode funcionar como um vetor de identificação em um revés com a massa freudiana: é a massa hiperconectada de mulheres contra o homem, confundido com o pai que já se evaporou.

– Na vertente do ter: trata-se de um ter fálico, puramente imaginário. Põe-se em jogo, no plano da maternidade, quando o desejo de filho se joga exclusivamente no plano do gadget, trazendo efeitos depressivos no puerpério, assim como a busca de um saber de manual, que viria junto com o produto, em relação à criança. No plano da sexualidade, pode ser jogado em certos casos da chamada transexualidade masculina, nos quais prevalece o desejo da possessão do órgão, e de mulheres como objetos sexuais.

Qual o lugar para o analista?

Aqui vale a pena distinguir aqueles casos nos quais o sujeito histérico se vê impedido de servir-se do pai por um esmagamento da nomeação paterna, fruto do declínio da função paterna, distintos daqueles outros nos quais a função não se encontra esmagada, mas ao contrario, evaporada. Nos primeiros, existe a possibilidade de restabelecer a função paterna com a intervenção analítica. Nos segundos, o desafio consiste em encontrar um espaço para tornar viável e operativa uma função de exceção, de amor e autoridade, que possibilite uma orientação pelos significantes, que possam recortar-se como fundamentais, no dizer do sujeito.

Se o discurso capitalista é o discurso mestre da época, obrigando ao consumo, sob as bandeiras da liberdade e da autonomia do eu, a histeria se mostrará como uma fissura dessa lógica férrea, manifestando-se em sofrimentos a respeito dos quais será função do analista lê-los como divisão subjetiva, convocando ao sujeito ali presente.

A anoréxica, quando é uma histérica, erige-se como mestre, na rigidez de um mundo que pretende dominar, enamorada dessa imagem-falo com a qual logra desterrar as curvas-falhas na retidão da linha, mas também o a-peritivo (a-pére-itif), diz Lacan no Seminário 22, essa função do objeto causa do desejo de comer, que abre o apetite 16 conseguindo afastar a luxúria do erotismo. Mas resulta que a pulsão de morte se emancipa e a surpreende.

O homem trans, quando é uma histérica, com o seu eu se decide homem, se nomeia homem, pode ser mais e melhor homem que o homem, pode pretender comportar um gozo fálico no sujeito, no limite corporal que coloca a castração no homem.

A sexualidade feminina surge como o esforço de um gozo envolto em sua própria contiguidade para se realizar conforme desejado pelo desejo que a castração libera no homem” 17.

Mas ao imitá-lo, cai no engano e se faz recusar por essas mulheres que tanto intrigam, ou ocorre que, ao recusar suas marcas e suas raízes, sente que desaparece, se esfuma, se desvanece, cai na depressão. Ou há um saber que lhe escapa e angustia, chegando ao ataque de pânico.

A histérica pós-moderna vive o furo da feminilidade sem Outro, sem pai, sem parceiro, que lhe possibilite desdobrar-se, para tornar vivível esse Outro gozo que a habita. Sua feminilidade corporal torna-se, então, sede de uma angústia massiva, sem nome, que a invade até o ponto do ataque de pânico. O corte no real do corpo torna-se geralmente um recurso extremo para aliviar, localizar, instalar um corte que falta em Outro lugar.

O analista é aí convocado em seu ofício de artesão, para buscar a volta, a cada vez, desse nó, para buscar a ponta de um novelo de lã, para poder começar a tecer uma lógica do sinthoma.

(*) Atividade de abertura das atividades CLIPP em 02 de agosto de 2021.

Tradução: M. Bernadette S. de S. Pitteri (CLIPP/EBP/AMP)

1 Seguem como exemplo as seguintes citações: “Para que o ser humano possa estabelecer a relação mais natural, aquela do macho com a fêmea, é necessário que intervenha um terceiro…” (Lacan, J.. O seminário. Livro 3: As psicoses (1955-56). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 114). “Sabemos que o complexo de castração inconsciente tem uma função de nó:… (Lacan, J. “A significação do falo” (1958). In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 692.)

2 Lacan, J. O seminário. Livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 99. Nota da Tradução: feita diretamente do texto da autora. Na versão em português a tradução difere.

3 Nota da Tradução: Jogo homofônico com perversión. ”perversão quer dizer apenas versão em direção ao pai – em suma, o pai é um sintoma, ou um sinthome, se quiserem” (Lacan, J. O seminário. Livro 23: O Sinthome (1975-76). Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 21.)

4 Lacan, J. Seminario 24. Inédito (1976-77). Lição de 14 de dezembro de 1976.

5 Nota da tradução: Atração por mulheres. Do grego: guiné = mulher; filia = participante de uma associação, de uma comunidade.

6 Lacan, J. “Intervenção sobre a transferência” (1951). In: Escritos , op. cit., p. 214/225.

7 Lacan, J. O seminário. Livro 18: De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 143.

8 Idem, p. 146.

9 Idem, Ibid.

10 Lacan, J. “Nota sobre o pai” (1968). In: Lacaniana n°20. Junho de 2016.

11 Lacan, J. O seminário. Livro 23: O Sinthome (1975-76). Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p .101.

12 Laurent, E “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo” – argumento do VI ENAPOL.

13 Cixous, H. Retrato de Dora (1976). Buenos Aires: Las Furias, 2020.

14 Lacan, J. O seminário. Livro 17: O Avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992 p. 192.

15 Lacan, J. O seminário. Livro 17: O Avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992 p. 192.

16 Lacan, J. Seminário 22. RSI. (1974-75) Inédito. Lição de 8 de abril de 1975.

17 Lacan, J. “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina” (1960). In: ). In: Escritos, op. cit., p. 734 – 745.