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O Mal-estar na Civilização e a Insustentável Leveza do Corpo Ausente

por Avi Rybnicki
Imagem: Instagram @shariq.nordin

Imagem: Instagram @shariq.nordin

Nas últimas semanas, na Escola, muito foi escrito, e por muitos, sobre o fenômeno misterioso desta epidemia, na tentativa de elaborar algo: os desafios que ela suscita para todos e cada um de nós, tanto em nossas vidas particulares quanto em nossa posição como analistas. Eu pensei que fosse especialmente incapaz de elaborar algo que pudesse conter algum pensamento, ideia ou enunciação coerentes. Por fim, deparei-me com um fenômeno que tocou meu corpo e me levou a agir. É sobre isso que gostaria de falar em poucas palavras.

Em algum momento da crise atual, transferi a maioria dos meus pacientes, embora não todos, que ainda estavam dispostos a comparecer fisicamente, das sessões presenciais para sessões por telefone. As razões para isso foram variadas, mas aqui não é o lugar para tratar disso. Eu escolhi o telefone, não o ZOOM, porque assim eu poderia estar mais perto do corpo e ouvir.

Como outros já escreveram, isso pressupõe algumas dificuldades que exigem que o analista envolva sua capacidade de invenção, o que às vezes também produz alguns efeitos analíticos surpreendentes e interessantes.

E então, alguns dias atrás, um analisando disse: “É mais fácil, para mim, falar na análise quando estamos ao telefone do que no consultório, na sua presença. Posso me atrever a dizer coisas e conteúdos que às vezes me abstenho de dizer presencialmente”. Naquele momento, entendi que havia um problema: é fácil demais! Permite contornar algo real, que Freud logo percebeu e, por isso, abandonou a hipnose.

J.-A. Miller responde à pergunta de Eric Favereau se o divã é importante: “Ele [o divã] incorpora o seguinte paradoxo: você precisa ir com seu corpo à sessão e, ao mesmo tempo, precisa retirá-lo. O divã é uma máquina, uma multiguilhotina, que amputa o corpo, retirando suas habilidades motoras, sua capacidade de agir, sua estatura ereta, sua visibilidade. O divã materializa o corpo abandonado, o corpo quebrado, o corpo abatido. Deitar no divã significa tornar-se puro falar, enquanto experimenta a si próprio como um corpo parasitado pela fala, um pobre corpo doente da doença daqueles que falam.”

Na verdade, não tenho dúvidas quanto à imprescindibilidade da presença do corpo do analisando, mas também do analista. O mediador eletrônico também pode ser conveniente para o analista; reduzir sua presença corporal ou ser poupado do esforço de viajar, como no meu caso, já que também trabalho uma vez por mês, durante vários dias, em Viena.

Embora, na maioria das vezes, a ausência do corpo claramente pese sobre mim, a fala do meu analisando, juntamente com vários outros sinais de outros analisandos, me levou a acordar e sugerir que aqueles que estavam preparados para retornar para sessões presenciais poderiam fazê-lo, sob o exigência de proteção à saúde, e sem dúvida, a maioria concordou de bom grado.

Ao mesmo tempo, o reconhecimento da necessidade da presença física dos dois parceiros no encontro analítico não é obtido através de uma conduta evidente e já conhecida em qualquer situação específica, se não quisermos cair no sufocante imaginário da Norma [Standard].

Florencia Shanahan escreve em um texto breve e corajoso de 12 de abril de 2020 e, em sua sensatez, intitulou-o “Modos de Presença”: “Eu poderia continuar vivendo se ele [o analista] não tivesse me acolhido por telefone todos os dias, quando minha mãe e meu irmão morreram de repente? Eu não sei. Eu poderia ter ido ao encontro do bom furo [good hole] se ele não tivesse me acolhido diariamente pelo Skype, mantendo o olhar na tela, por mais de um mês, enquanto eu atravessava a angústia mais radical na época da destituição subjetiva que abriu o caminho para o fim? Acho que não”.

Além disso, na entrevista citada anteriormente, Miller diz que não o divã, mas o analista, é o objeto da psicanálise. “Um objeto muito particular, que permite que outra pessoa experimente a si mesma, como sujeito, como falando sem saber o que quer, ou o que diz, ou mesmo a quem está dizendo.”

Na minha opinião, isso revela que não há uma única resposta para a presença do analista e sua corporalidade.

 

Traduzido por J. Wilson R. Braga Jr.

 


1 Miller J.-A., “Le divan, XXI siècle. Demain la mondialisation des divans? Vers le corps portable”, Libération, 3 July 1999.  https://www.liberation.fr/cahier-special/1999/07/03/le-divan-xx1-e-siecle-demain-la-mondialisation-des-divans-vers-le-corps-portable-par-jacques-alain-m_278498  Interview by Eric Favereau.
2 Florencia F.C. Shanahan: Modes of Presence. Lacanian Review online. COVID-19 / 2020 #50. April 12th, 2020. http://www.thelacanianreviews.com/modes-of-presence/

Tradução realizada do texto publicado na Lacanian Review Online em 14/05/2020 no link abaixo
http://www.thelacanianreviews.com/civilization-and-its-discontents-and-the-unbearable-lightness-of-the-absent-body/