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ÓDIO AOS CORPOS FORA DA HETERONORMATIVIDADE (ou “Como abordar a questão do ódio aos corpos que se apresentam fora da heteronormatividade via psicanálise”

E’wao Kagoshima, the surreal fantasies

 

Sonia Perazzolo (CLIPP)

Introdução

Participar de um cartel é uma experiência estimulante, pois requer reflexão e obriga de certa forma, a colocarmos algo de nós para a contribuição da causa analítica.

De todas as leituras feitas, foi a constatação do ódio e da violência desferidos contra os corpos que se apresentam fora da heteronormatividade, que me causou questão.

O ódio à diversidade de gênero no laço social

Em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade do código internacional de doenças e, nesse mesmo ano, o dia 17 de junho foi considerado o Dia internacional Contra a Homofobia. No Brasil, em 2019 foi instituída a lei que criminaliza a homofobia.

Pesquisa recente publicada pelo Jornal UNESP 1 realizou um levantamento quantitativo pioneiro na América Latina e mapeou as condições de vida da comunidade LGBTQIA+ no Brasil. O principal objetivo desse estudo está em proporcionar maior visibilidade aos grupos LGBTQIA+ para elaboração de políticas públicas específicas.

Foram 6.000 entrevistados em 129 cidades com os resultados abaixo.

12% da população, ou seja, 19 milhões de pessoas, se declararam assexuais 6,76%; lésbicas 0,93%; gays 1,37%; bissexuais 2,12%; trans 0,68% e 1,18% não binárias. Um dado relevante foi a constatação de que os episódios de violência sexual desferidos contra pessoas trans são 25 vezes maiores do que os praticados contra homens hétero cis.

Ao mesmo tempo, o relatório (2022)2 do Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade da FAPOL, destaca importantes avanços em termos de conquistas de Direitos à população LGBTQIA+ através de decretos, resoluções e portarias, embora essas não tenham ainda a mesma estabilidade das leis.

No entanto, em decorrência de um discurso político ultraconservador e religioso que vem se impondo na sociedade brasileira nos últimos anos e que ataca as políticas públicas que garantem os direitos da população LGBTQIA+ houve, como resultado imediato, um aumento do homo/transfobia, da violência contra essa população e um aumento do feminicídio.

“A maior parte da população LGBTQIA+ no Brasil, vive em condições de pobreza e exclusão social, com dificuldade de acesso à educação, saúde, qualificação profissional, oportunidades de inclusão no mercado de trabalho formal e políticas públicas que considerem demandas específicas”. (…) “uma realidade de desigualdade e segregação que se intensificou com a pandemia de Covid-19” (2022, FAPOL).

O ódio à diversidade de gênero para a psicanálise

Freud discorre sobre a questão do ódio à psicanálise, nos textos Totem e Tabu (1912-1913), O mal-estar na cultura (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939).

No primeiro texto (1912), Freud investiga a constante hostilidade entre pai e filho, na experiência clínica. Pesquisando povos primitivos, ele percebe um permanente culto ao sagrado (totemismo) que posteriormente será profanado.

A partir desse estudo, ele observa que nas relações humanas também acontece isso: ambivalência amor/ódio. Na visão freudiana, tanto o ódio como o amor participam do processo de identificação e da constituição do sujeito e do psiquismo, como base para as relações socioculturais.

Em o Mal-Estar na Cultura (1930), Freud propôs uma reflexão sobre situações de impasse que levariam o ser humano a sofrer e descreveu três fontes principais de sofrimento que estariam em jogo: o declínio natural do corpo, as imperfeições das leis que nos regem e as exigências internas de satisfação.

Já em Moisés e o Monoteísmo (1939), Freud aponta a função do estranho e do ódio na constituição do sujeito e nas identificações feitas por ele, uma vez que o profeta foi morto pelo próprio povo que o elegeu, similar à morte do pai primevo em Totem e Tabu.

Esses três textos transmitem a ideia de que “o ódio se encontra no âmago da constituição subjetiva, atrelado à expulsão primordial pelo sujeito daquilo que lhe resulta insuportável em si mesmo e que, doravante, passa a ser localizado no Outro, com horror”3.

Se o ódio se encontra no âmago da constituição subjetiva e o sujeito expulsa aquilo que se torna insuportável em si mesmo, podemos falar de puro gozo. Assim, o sujeito que ataca com ódio um outro sujeito, por ser diferente da heteronormatividade, traz a ideia de que, o que se odeia na realidade, é o modo de gozar do outro. Um gozo insuportável em si mesmo. Para embasar essa fala, cito Cunha que diz: “O gozo do Um-sozinho está na raiz da segregação, o ódio que prolifera está intimamente ligado a ele” 4

Em seu último ensino, no Seminário XXIII (1975), Lacan diz:

“o falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante”5

E ainda pontua que o corpo é um acontecimento do discurso e, portanto, é a fonte das pulsões por onde o gozo se manifesta.

O que pode a psicanálise frente ao ódio e à violência?

Vimos, então, que as causas subjetivas do ódio e da violência dizem respeito ao singular de cada um. E assim, orientados pela psicanálise, podemos pensar o ódio nos fenômenos da cultura e da época e embora não haja soluções em massa para um possível enfrentamento dessa questão, acredito que os psicanalistas, para além do consultório particular, podem e poderão contribuir com o desvelar desse mal-estar na sociedade, o ódio a um corpo diferente, assim como no singular da clínica.

Cartel: Gênero e Sexuação

1 Jornal UNESP – Outubro de 2022. https://jornal.unesp.br
2Observatório de Gênero, Biopolítica y Transexualidade, FAPOL – Tercer Informe Gestión 2020-2022. https://fapol.org/blog/observatorio-de-genero-biopolitica-y-transexualidad-tercer-informe-gestion-2020-2021-2022/
3 Musashi ,B. e Dias. E. Soluções ao ódio? Libertad de pluma, n. 09, 2019.

http://lalibertaddepluma.org/blanca-musachi-e-eliane-costa-dias-solucoes-ao-odio/
4 Cunha, L.F C.  Argumento do IX ENAPOL. Disponível em: https://ix.enapol.org/argumento
5 Lacan, J. Seminário 23, o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, p. 64.