Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri – EBPSP
Eixo: Ódio
Inquietante pensar que “o mais perigoso escritor ocidental se tenha transformado num respeitável clássico (…) passagem do maldito para o divino?” [i] (Moraes, p. 8). Sade, perigoso em vida, clássico post mortem.
Sadismo, significante originado dos escritos do “divino marquês” como queriam os surrealistas [ii], aparece no “Dicionário Universal de Boiste” (1834) como “uma (…) aberração horrível do deboche: sistema monstruoso e antissocial que revolta a natureza”. No entanto, o que Sade defendia em seus escritos era o máximo de gozo que, segundo ele, estava de acordo com os ditames da natureza e não contrários a ela.
Sade era sádico? Há relatos de que ele se apaixonou e fugiu com a cunhada (o que despertou a ira desenfreada de sua sogra, mulher poderosa), mais o escândalo provocado pelo sequestro de uma prostituta, que o denunciou. Passando parte da vida na prisão, onde morreu aos 75 anos, levou Lacan a dizer que ele era masoquista. Seus escritos eram atuações de suas fantasias, sem suavizar “(…) o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarce (…)” [iii]. Sade, em sua obra, atua a fantasia, negativo da neurose, da forma mais crua, repetitiva, e, na tentativa de anular o ódio de si, desperta afetos de cólera e indignação no decorrer de sua existência. Mas o mundo atual ainda se escandaliza com ele?
No testamento, o marquês manifesta o desejo de que “os traços de minha cova desapareçam por debaixo da superfície da terra, assim como eu anseio que minha memória se apague do espírito dos homens (…)” [iv].
O fracasso do escritor em vida demonstra o pensamento que engendrou sua ruína ao veicular perigosas ideias contrárias à Família, à Igreja, ao Estado, isto é, aos poderes sociais constituídos, num desprezo absoluto pela sociedade e suas leis.
“Franceses, mais um esforço se quereis ser republicano” (SADE, p.143). O apelo em a “Filosofia na Alcova” arruinava as bases morais e políticas de um projeto social cujos ideais burgueses de igualdade, fraternidade e liberdade, identificavam o indivíduo ao cidadão. Este projeto só reconhece a crueldade (que transpira na obra sadeana) enquanto alteridade absoluta, e não como a lascívia superpondo-se à moral, e a natureza à lei.
A “Filosofia na Alcova” é dedicada aos “voluptuosos de todas as idades e de todos os sexos”, afirmando que as “paixões que horrorizam os frios e tolos moralistas são apenas os meios que a natureza emprega para submeter os homens aos fins a que se propõe”, pois “só alargando a esfera de seus gostos e fantasias, e, sacrificando tudo à volúpia, o infeliz indivíduo (…) atirado a contragosto neste triste universo, pode conseguir entremear de rosas os espinhos da vida” (SADE, p, 33).
O argumento usado por Sade é que a natureza de modo algum proíbe o gozo, ela aconselha “(…) tratemos de gozar, de nos deleitar mesmo a custo de quem quer que seja. Os outros nos podem fazer mesmo, é verdade, mas o mais forte vencerá. A natureza nos criou para o estado primitivo de guerra, de destruição perpétua, único estado em que devemos permanecer para realizar seus fins” (SADE, p.98).
Para ele, o egoísmo/narcisismo é o princípio fundamental, o isolamento define a situação original do ser humano, cruel por essência. Entregar-se aos vícios e esquecer qualquer virtude torna o humano feliz, o libertino volta às origens ao praticar ações contrárias aos interesses da sociedade. Isso lembra o estado de natureza propugnado por Hobbes, para quem o homem é o “lobo do homem”, só tendo refreada sua fúria assassina pela lei e pela entrada no estado civil, estado onde vigora a lei. Sade, para além de Hobbes, defende que se faça o mal e nunca o bem, uma vivência como se estivesse no estado de natureza, mesmo estando em sociedade.
Kant, quando considera a máxima que regula a ação humana também fala de lei da natureza e em a “Crítica da Razão Prática” expõe o imperativo categórico universal “(…) age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer como princípio de uma legislação que seja para todos” [v]. A este imperativo, Lacan faz corresponder a máxima que extrai da obra de Sade, “tomemos como máxima universal de nossa ação o direito de gozar de outrem, quem quer que o seja, como instrumento de nosso prazer”[vi], também universal, por sua vez. Tanto Kant quanto Sade eliminam o sentimento, o pathos.
Lacan coloca Sade e Kant numa posição dialética, compara os dois imperativos numa inspiração hegeliana, sem possibilidade de síntese final. Em Kant nenhum bem deve entrar na finalidade da ação moral, esta só é moral quando comandado pelo motivo que a máxima articula; em Sade o que comanda sua máxima é o mal. O mundo sadeano é concebível como avesso e caricatura, como uma das efetivações possíveis da ética kantiana.
O sujeito universal kantiano, limitado em seu conhecimento, não pode atingir o noumeno, a essência, o que o obriga ao imperativo categórico. Em Sade o imperativo é de gozo, e o apelo é à natureza.
Lacan em a “Ética da Psicanálise” diz que o conhecimento da lei acarreta o pecado: é a saída da inocência. A ética começa no momento em que o sujeito coloca a questão do bem buscado nas estruturas sociais, aonde ele descobriu a ligação entre a lei e o desejo.
A consciência moral se mostra tanto mais feroz, quanto mais afinada; mais cruel quanto menos ofendida. Esta crueldade faz dela um parasita no individuo, nutrido pelas satisfações que lhe concedem. A ética persegue o individuo menos em função de suas faltas do que de suas desgraças.
Em nosso mundo de metáfora paterna esgarçada, há uma busca desenfreada pelo gozo sem limites. Ao que parece, mundo sonhado por Sade, cujo paradoxo está na busca do gozo máximo num mítico estado de natureza, mas busca que se dá em sociedade, imbuída de consciência moral.
É possível se orientar na consciência moral vivendo em estado de natureza, quando se pensa que esta consciência faz conluio com a lei?
[ii] No “Manifesto Surrealista” Breton o coloca como um dos mais importantes surrealistas avant la lettre.
[iii] FREUD, S. Escritores Criativos e Devaneios. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
[iv] Citado por Gilbert Levey, in: Vie Du Marques de Sade.
[v] KANT, I. Crítica da Razão Prática. Rio de Janeiro: Edições e Publicações Brasil Ed., 1967.
[vi] LACAN, “Kant com Sade”. In: Escritos p. 100.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.