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Ódio, segregação e psicologia de massa sob a égide do Outro algorítmico.

Julio Cesar Lemes de Castro – São Paulo/Brasil
Eixo: Ódio

Proponho adotar como ponto de partida uma intervenção de Lacan feita em 1968, em Estrasburgo: “Acredito que em nosso tempo o traço, a cicatriz da evaporação do pai é o que poderíamos situar sob a rubrica e o título geral da segregação” (LACAN, 1969).

O que Lacan chama de evaporação é uma mudança na operação da função paterna por conta de transformações na ordem simbólica em nossa civilização, às quais ele se mantinha bastante atento desde os anos 1930. Podemos dizer que essas transformações assumem hoje a forma do Outro algorítmico (CASTRO, 2018).

Algoritmo tem o sentido geral de receita, de conjunto de passos para fazer alguma coisa; o Outro algorítmico representa a customização da lei em norma, negociada entre pais e filhos e em outras circunstâncias. Mas há também um sentido mais específico de algoritmo, a ser ressaltado aqui, que indica o modus operandi das
plataformas nas quais se desenrola uma parcela cada vez maior de nossas vidas: mecanismos de busca como o Google, redes sociais como o Facebook, lojas online como a Amazon, provedores de streaming como Netflix e Spotify, serviços de economia de compartilhamento como Uber e AirBnb, dispositivos acoplados à Internet das Coisas como tecnologias vestíveis. Tais plataformas rastreiam as preferências dos usuários, captando suas maneiras prediletas de gozar, e agrupam esses usuários de acordo com afinidades em termos de gozo, levando às últimas consequências um procedimento próprio da sociedade de consumo. Nelas, o Outro algorítmico (S1 → S2, na primeira linha transversal do discurso do capitalismo) instrumentaliza a elevação do objeto a ao zênite social, presidindo à constituição das instâncias tecnocientíficas do mais-de-gozar que determinam o sujeito (a → $, na segunda linha transversal do discurso do capitalismo). Enquanto cicatriz resultante da evaporação do pai, o Outro algorítmico envolve, pois, uma segregação ancorada no gozo.

Essa segregação, por sua vez, corresponde a uma variação vis-à-vis a psicologia de massa caracterizada por Freud. A massa já não é exatamente massa, mas assume o formato de rede, na qual o líder central cede lugar a uma multiplicação de lideranças. Temos, por conseguinte, uma fragmentação do papel do líder, que acompanha a fragmentação dos modos de gozo. Lembremos que, para Freud, o líder pode ser abstrato (uma ideia) ou concreto (uma pessoa). Nos fenômenos conflitantes de massa em plataformas algorítmicas, ideias na posição de liderança são tipicamente os memes, condensações libidinais de palavras e imagens
que constituem a versão contemporânea dos chistes. Pessoas que ocupam essa posição, por sua vez, remetem à descrição feita por Adorno (1972, p. 427) dos agitadores fascistas, que se destacam por sua desinibição em expressar aquilo que o homem comum teria vergonha de dizer.

A segregação via gozo está na base do ódio, posto que este, como argumenta Miller (2010, p. 53), “é o ódio do gozo do Outro. Essa é inclusive a forma mais geral que pode ser dada a esse racismo moderno, conforme o verificamos. É o ódio da maneira particular pela qual o Outro goza”. Diferentemente do simbólico, o gozo não é passível de universalização; há algo de excessivo, de intolerável no gozo discrepante do nosso. Visando a destruição da alteridade, o ódio tende a camuflarse por trás de pretextos em virtude da moralidade ocidental (LACAN, 1975, p. 305-306), mas em plataformas organizadas pelo gozo o peso dessa moralidade declina e o ódio pode manifestar-se a céu aberto, ainda mais se considerarmos que nelas o sujeito atua dentro de um grupo e não tem contato presencial com seus alvos. Por outro lado, o ódio mira também a alteridade em nós mesmos, em condição de extimidade: a parte rejeitada e perdida de cada um de nós (através da Ausstossung aus dem Ich, a expulsão para fora do eu que constitui o real como aquilo que escapa à simbolização), cujo espectro divisado nos outros patenteia o que nos falta. Tratase, assim, de uma espécie de movimento permanente de defesa contra uma ameaça que aparenta ser ao mesmo tempo externa e interna. Ou seja, há no ódio algo de estrutural, que não cessa de não se escrever.

Por conta dessa dimensão fundante, primordial, do ódio, num contexto de fragmentação associado à segregação generalizada ele torna-se crucial para fazer laço social. Isso significa que grupos disparatados, funcionando como bolhas de filtro ou câmaras de eco, são capazes de alinhar-se ao redor do ódio a um mesmo alvo, ainda que não contem com mais do que isso em comum. Em sua psicologia de massa, Freud já reconhecera esse poder unificador do ódio, junto com o do amor. O que aparece como distintivo em nossa época, porém, é a prevalência do laço pelo ódio em relação ao laço pelo amor. Chama a atenção, em particular, a quase exclusividade da agenda destrutiva no populismo de extrema-direita que sobressai
no período recente e encontra terreno fértil nas plataformas algorítmicas. Desse modo, a contrapartida da ascensão do Outro algorítmico é a mobilização crescente em torno da pulsão de morte.

Referências
ADORNO, Theodor W. Freudian theory and the pattern of fascist propaganda. In: Gesammelte Schriften, Band 8: Soziologische Schriften I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, p. 408-433.
CASTRO, Julio Cesar Lemes de. Père-version: a função paterna na era do Outro algorítmico. Carta de São Paulo (impressa), São Paulo, a. 25, n. 1, p. 112-116, junho de 2018.
LACAN, Jacques. Intervention sur l’exposé de M. de Certeau “Ce que Freud fait de l’histoire. Note à propos de ‘Une névrose démoniaque au XVIIe siècle’”, Congrès de Strasbourg, le 12 octobre 1968. Lettres de L’École Freudienne, Paris, n. 7, p. 84, 1969.
LACAN, Jacques. Le séminaire, livre I: les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1975.
MILLER, Jacques-Alain. Extimidad. Traducción de Nora González. Buenos Aires, Barcelona y Ciudad de México: Paidós, 20