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Resenha – No avesso da tela: a psiquiatria pelo cinema

Maria Noemi de Araújo

 

No avesso da tela: a psiquiatria pelo cinema.

Andrés Santos Junior e José Paulo Fiks.

Ed. Lemos, São Paulo, 2006

 

Quem será o herói?

 

Ancorados nas telas do cinema, Andrés Santos Jr. e J. Paulo Fiks, autores de No avesso da tela: a psiquiatria pelo cinema, atravessam os muros das suas práticas, nos consultórios particulares e no sistema público de saúde mental, para nos sugerirem uma reflexão sobre o cinema e a psiquiatria em relação à cultura.

 

Os autores foram felizes na escolha de uma metodologia de trabalho que contempla o diálogo entre dois campos diferentes. Desse modo, tanto o cinema como a psiquiatria, cada um a seu modo, puderam encontrar alguma forma de comunicação e de reciprocidade no estabelecimento importante de código, conceito e linguagem. Para tanto, recorreu-se a uma organização cronológica de filmes, considerados pelos autores, significativos dentro dos parâmetros da indústria cinematográfica. Não por acaso, escolheu-se o brasileiro Bicho de Sete Cabeças como exemplo de um equívoco entre a realidade psiquiátrica brasileira e a sua representação no cinema.

 

No decorrer do livro, ao procurar contextualizar historicamente o cinema em relação à psiquiatria, Andrés e José Paulo demonstram como a indústria cinematográfica hollyoodyana apropriou-se de conceitos e propostas da medicina a partir dos anos 20 e, em contrapartida, como a medicina e a instituição psiquiátrica, ou mesmo o portador da doença mental e seus familiares, se utilizaram dessa publicidade (positiva ou negativa, não importa). Em que medida teria o cinema exercido um papel de formador de opinião e, em alguns casos, de responsável pela popularização e padronização de conceitos e noções próprios da medicina psiquiátrica? Uma questão que norteia o livro.

 

A medicina e o cinema não são, isoladamente, vilões ou heróis da história, mas é o mercado que faz uso desses artifícios em favor do capital. Nesse livro medicina e cinema são representados, ao mesmo tempo, como heróis e vítimas da sua própria história, sobrevivendo numa relação dialética em que um sustenta o outro.

 

Andrés e José Paulo abrem uma janela dando uma pista para compreendermos algo sobre o também equivocado modo como a figura do psicanalista (e da psicanálise) foi representada no contexto histórico do cinema: uma noção religiosa, algo que salva. Assim, questões ligadas à psicanálise surgem nas telas (como inconsciente, trauma e a figura do psicanalista)  associadas à catarse e à relação afetiva entre profissional e paciente – uma vulgarização do amor de transferência? Talvez!

 

Logo no primeiro capítulo, o tema psicanálise timidamente aparece como figurante (p.14), para em seguida nos informar que por volta dos anos 80, as figuras do psicanalista e do terapeuta, são mostradas nas telas do cinema de forma confusa. Há “a entrega afetiva do terapeuta ao seu paciente” (pg. 18.). Surge a idéia de que através da palavra a cura é possível. Porém, a cura é mostrada de maneira estereotipada, caricata, como o que se vê hoje nas telenovelas e já há algum tempo nas charges e nas piadas.

 

Cada capítulo, cuidadosamente ilustrado, é um convite a reflexões sobre filmes que retratam os “loucos”, a loucura, as instituições psiquiátricas e as responsabilidades de cada um no contexto histórico em que o medicamento aparece nas telas como um sintoma atual.

 

Os autores,  destacam, em forma de catálogo, 176 (pg. 64-96) filmes da indústria cultural que retratam algum tipo de doença mental. A classificação segue a ordem dos temas: diagnóstico, o terapeuta como foco, a instituição em discussão, impacto na família e nas relações sociais. Um recorte que não deixa de ser a construção de suas personagens – o cinema e a psiquiatria – de acordo com a ética e os valores estéticos do seu tempo e espaço.

 

Esse paralelo, entre o modo como o cinema industrial tem mostrado as coisas que envolvem a medicina e o portador de doença mental, se fez necessário para pensarmos no modo como a psicanálise pode trazer à cena o que há de singular no cidadão e não somente naquilo que ele tem de generalizável – a doença. A discussão, ocorrida na CLIPP (1º.03.007), entre os psiquiatras autores de No avesso da tela: a psiquiatria pelo cinema e a psicanalista documentarista Miriam Chnaiderman, abriu um debate que inclui um cinema para além da industria cinematográfica. Há, por exemplo, aquele que produz uma escuta que faz diferença na vida daquele que produz  subjetividade na sua relação com o mundo, através do cinema (e é por ela produzido).

 

Em que medida, essa linguagem do cinema pode nos oferecer elementos para focar o sujeito naquilo que ele tem de singular, independentemente da representação das suas doenças ou  da prática da medicina, da descoberta da  ciência e da indústria farmacêutica?