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RESSONÂNCIAS DE RECORDAR, REPETIR E ELABORAR

DÉBORA GARCIA (CLIPP)

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Tecer um texto “por um retorno a Freud” remeteu-me à questão: a obra de Freud seria um clássico?

No livro Por que ler os clássicos, Ítalo Calvino faz uma definição dos clássicos e argumenta sobre a importância de sua leitura: “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”1. Uma obra a meu ver é um clássico porque comportaria uma abertura e não um fechamento.

Um dos textos de Freud que mais admiro é Recordar, Repetir e Elaborar, por conter as raízes fundamentais de uma experiência analítica. Neste texto, Freud primeiramente aponta a passagem da hipnose para a associação livre, e em seguida apresenta o conceito de repetição no tratamento analítico. Afirma que alguns pacientes não se recordam do que esqueceram, e em vez de lembrar, repetem o passado esquecido com o analista e em todos os aspectos da sua vida. A repetição não é, portanto, uma rememoração, e sim um ato que se dá sob transferência. A transferência é considerada por Freud um fragmento da repetição, e esse ponto marca a convergência que Freud faz entre repetição e transferência.

No Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan condensa os dez primeiros anos de seu ensino ancorados nos enunciados freudianos e conduz a uma revalorização dos quatros conceitos fundamentais: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. Em uma instigante questão, Miller pergunta a Lacan se o estatuto do inconsciente seria ôntico. Lacan responde que o estatuto do inconsciente é ético e o toma como tropeço, rachadura, lapso e pulsação.

É com esse ponto de partida que Lacan aponta sua inovação: a disjunção entre repetição e transferência e a utilização de dois conceitos: autômaton e tiquê. O autômaton se caracteriza pelo automatismo inconsciente da cadeia de significantes, advindos da constituição do sujeito; é a face simbólica da repetição. A tiquê é a repetição no registro do Real, definida como um encontro faltoso e inassimilável por qualquer representação.

E o que a experiência analítica permite delinear sobre a repetição? A entrada em análise aponta uma direção: a passagem da queixa ao sintoma analítico abre a via para as repetições do sujeito em sua face simbólica da insistência dos significantes, e por outro lado, o sujeito se depara com o que escapa do simbólico, possibilitando assim não fazer de suas repetições e encontros com o real, uma sentença. Quando alguém procura um analista, não significa que a análise tenha começado. Freud usa o termo início do tratamento e Lacan chama de entrevistas preliminares para dizer que dos encontros preliminares algo vai se constituindo entre analista e analisante: a abertura ao inconsciente, que só encontra lugar a partir de um endereçamento transferencial que em presença do analista como função, possibilita a localização de um sujeito no dizer do analisante.

Miller, em Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan, faz uma interessante articulação sobre o início de uma análise, a verdade mentirosa e a repetição: “É preciso um dizer para que haja alguma coisa com a verdade. A ideia da verdade supõe haver uma superposição do simbólico com o real, supõe que o dito possa recobrir o fato”2. E mais adiante: “Esse é o milagre ocasionalmente realizado no começo de uma análise: o sujeito chega falando da maneira como se sente jogado de um lado para o outro pelas circunstâncias e já não aguenta mais. E eis, que pelas virtudes da narração, a coisa se ordena, toma forma, torna-se história com sentido e surgem repetições”3.

Finalizo este texto apoiada na ideia de que Freud é sim um clássico, por continuar a ressoar clínica e teoricamente. E ao inaugurar a Psicanálise no mundo, Freud lança as bases da qual Lacan se serve, trazendo ineditismos, os quais somente uma obra que comporta furos permite, proporcionando uma leitura sempre inovadora.

1 Calvino, I. (2007). Por que ler os clássicos (N. Moulin, trad.). São Paulo: Companhia das Letras, p. 11.

2 Miller, Jacques Alain. (2011). “Verdade Mentirosa”. In: Perspectivas dos Escritos e Outros de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 126.

3 Ibidem.