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SONHO E REAL

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri

“… O Inconsciente, é que, de uma certa maneira, falamos – se é que existe falasser – sozinhos. Falamos sozinhos, porque dizemos sempre uma só e única coisa – exceto se nos abrimos ao diálogo com um psicanalista. Não há como fazer de outra forma a não ser recebendo de um psicanalista, aquilo que perturba nossa defesa”. (Lacan, L´insu-que-sait de l´Une-bévues´aile à mourre.)

A carência de saber no que respeita à sexualidade se escancara com o rebaixamento do Nome-do-Pai earranca de Lacan que “Todo mundo é louco, isto é, delirante” (LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Correio – EBP n. 65, São Paulo, 31-32), o queestende a loucura a todos os seres falantes. O tema do IX Congresso da AMP em 2014 (Um Real para o Século XXI)encara as consequências geradas pelo conceito “loucura generalizada”.

Miller, ao apresentar o tema do Congresso (http://www.congresamp2014.com),diz não haver na psicanálise“… saber no real. O saber é uma elucubração sobre o real desprovido de todo suposto saber”. Se o real é “desprovido de todo suposto saber”, o que interpreta o inconsciente?

Na transferência, o sujeito suposto saber se introduz para interpretar o real, o queconstitui um saber não no real, mas sobre o real“desprovido de sentido”(Lacan,O Seminário Livro 23 – OSinthoma, p. 131). O sentido escapa,o real nada quer dizer, mas “há doação de sentido através da elucubração da fantasia”(Miller http://www.congresamp2014.com),o que sugere a possibilidade dechegar a um pedaço de real, fragmento do encontro de lalíngua e do corpo, o que é contingente,sem lei.
A psicanálise foi criada e se desenvolveu no nível do recalcado e da interpretação do recalcado,via sujeito suposto saber. O Inconsciente tornou-se conhecido por suas formações: sonho, lapso, chiste, ato falho e sintoma, e este acrescenta um elemento clínico (Miller,Todo mundo é louco. Curso da Orientação Lacaniana, 2007/2008). As quatro primeiras formações são emergências surpresivas,enquanto o sintoma se repete, insiste. Nos tempos áureos da Psicanálise, a decifração era elemento surpresivo, solucionava o sintoma, mas a decifração freudiana foi apropriada pela civilização – é lugar comum ouvir o idiotismo no Brasil “Freud explica”. Para além da decifração o sintoma insiste, persiste e só parece abalado, na surpresa.

Nascido no século anterior, o analista não pode ignorar as mudanças na civilização e o novo séculoexige que se explore a dimensão do real escancarado com a queda da metáfora paterna e generalização da loucura, o que já havia sido apontado por Nietzsche no aforisma 125 da Gaia Ciência, ao falar da “Morte de Deus”.

No século XXI,a clínica psicanalítica vê-se às voltas com a desmontagemda defesa contra o real.Numa análise, o inconsciente transferencial é esta defesa, pois há uma intenção, um querer dizer, um querer explicar ao Outro, ao passo que o inconsciente real não é intencional, ele “é”.

Caso Clínico
A clínica está frente a esse real que “é”; um Caso Clínico reflete as questões trazidas por este impossível. A dificuldade na apresentação desteencontra-se em captar “… algo do mais singular de um sujeito”, que demonstra na repetição a solução que encontrou“para tratar o real como impossível de suportar“(Graciela Brodsky http://www.congresamp2014.com), impossível que se apresenta ao sujeito como… uma urgência, como um transbordamento do corpo ou do pensamento”.Impossível que também se apresenta ao analista,“… como uma tentativa de ordenar o real, de encontrar-lhe uma lei e de simbolizá-lo.”(idem)

Cito um fragmento de sessão onde o sintoma,como acontecimento de corpo que se repete e a surpresa de um sonho se enlaçam, dando lugar à interpretação do analista, que se revela, a posteriori,como ato. Se para Freud “nada é senão um sonho” e para Lacan sonhamos sempre e só despertamos para continuar a sonhar, numa análise sonha-se um pouco menos, pela possibilidade de sair da repetição.

Fragmento
M. relata um sonho perturbador, do qual só lembra que, ao acordar, pensa que era preciso esquecê-lo para não contá-lo à analista.
“Conte”, diz a analista.

“Lembro só de uma imagem: um homem vestindo um jaleco verde, empurrando um carrinho de mão … cheio de frutas. Adoro frutas. Evoca sensualidade, sexualidade. Acho que ele trabalhava num mercado, como na novela (novela da época, resto diurno, personagem que trabalhava num mercado, apaixonado por uma mulher e outra apaixonada por ele.). Não lembro mais nada.”

“Jaleco verde” observa a analista.

“É. Mas quem usa jaleco verde é médico, não dono de mercado”. E com muita angústia: “Agora sei por que não podia lembrar do sonho: eu o contaria a você. Tenho vergonha, nojo de mim e você também vai ficar. … médico lembra injeção, tenho pavor, faço escândalo, desmaio. Nunca falei disso? E agora tenho que tomar regularmente injeções, adquiri uma DST grave. …Transei sem proteção. Faço isso sempre. Estou com sífilis. Dei azar.”

“Você deu sorte” diz a analista e encerra a sessão.

Considerações finais
Nas sessões anteriores, após o final da sessão, o sujeito tentava prolongar a conversa com o analista, ironizando o corte, o que não ocorreunesta. Ao que parece, a intervenção neste momento, desarticulou a defesa do sujeito, que aparecia na denegação da suposição de saber ao analista, na depreciação da experiência, na palavra vazia.

A queixa inicial do sujeito girava em torno de sintomas dermatológicos: perda de cabelo em tufos, queda de sobrancelhas e cílios, aparência edemaciada. Na primeira entrevista avisou: “estou aqui por que a dermatologista mandou: não acredito em psicanálise”. Mesmo queixando-se de não saber o que fazia ali e de que nada adiantava, não faltava às sessões e reconhecia o fato (bastante minimizado pelo sujeito) de haver ligeira remissão dos sintomas. Falava muito das questões com o mestrado, com a escrita da dissertação.

Depois do relato do sonho, a remissão dos sintomas tornou-se importante. Numa sessão posterior, o sujeito relata que os sintomas apresentados eram os que acreditava serem os de sífilis em segundo grau, a DSTno entanto, havia sido detectada em seu início.

A questão que se coloca é: como isso que é heterogêneo ao significante, que é esse resto por estrutura desordenado, como fazer com que esse real responda à ação do significante?

No caso apresentado houve uma resposta: a palavra do analista, na direção da bifidez significante (“você deu sorte” em oposição ao “dei azar”) tocou o real do corpo do sujeito.

Miller no curso “Todo mundo é louco” diz que a posição do analista não é apenas lidar com o significante e interpretar, mas, como diria Pascal, com o “esprit de finesse”,ou seja, visar de uma só vez e verificar que o sujeito está ligado ao gozo, pois nos sintomas ele fabrica os meios parasustentar seu gozo, para tratar o real, esse impossível de suportar.

Maria Bernadette Soares de Sant´AnaPitteri
/Membro da EBP/AMP
(Apresentado no IX Congresso da AMP – 14 a 18 de abril de 2014 – Paris , França.)