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Uma conversa sobre o traumatismo

Carlos Augusto Nicéas

Uma conversa sobre o traumatismo poderia se dar a partir de como a linguagem corriqueira o considera: para o senso comum, acidentes diversos, catástrofes naturais, atos de violência, entre vários outros acontecimentos, podem chocar um sujeito. Mas conversar sobre o traumatismo na psicanálise exige que a gente o faça a partir de nossa prática, onde o sujeito pode vir falar de sua marca em outras experiências que viveu: um luto, para um, uma ruptura amorosa, para outro, uma doença grave que ameaçou a vida, por exemplo.

Vamos começar, então, pelo ordinário do praticante: acolher a demanda de alívio para o sofrimento de um que sofre do seu pensamento ou do seu corpo, como nos lembra Lacan em “Televisão”, quando nos ensina que toda demanda é demanda de psicoterapia. Começo, então, não por um caso clínico, nem mesmo por um momento de entrada em análise, simplesmente por uma entrevista preliminar.

Quando ele veio me falar pela primeira vez, João já atravessara quase um ano sob efeito de antidepressivos recomendados por um colega seu, médico como ele e melhor amigo desde a faculdade: “eu me entupi de remédio, eu só queria evitar o pior”. João é ortopedista e se utiliza dos termos de seu saber particular para me dizer porque, finalmente,  decidiu vir falar a um analista: “eu já cansei meu amigo repetindo o que me aconteceu. Foi bom contar com seu ombro  para não morrer, mas não fez “calo”, a fratura continua exposta”. E continua: “Toda minha vida  eu cuidei de traumatizados, agora eu preciso cuidar do que se quebrou dentro de mim”. Um abandono, o da mulher, ele localiza no lugar de causa do seu “traumatismo” e esse acontecimento, em sua contingência, o encontrou “totalmente despreparado”: Mais adiante, na mesma entrevista, refere-se a isso de modo mais detalhado: “Ela me pegou de surpresa,  comunicou brutamente que estava apaixonada por um colega de escritório, um arquiteto,  com quem já estava me traindo há quase um ano, e que iria morar com ele a partir daquela semana.  Tudo numa enxurrada só. O casamento acabou assim, ela saiu da minha vida, e eu fiquei vários dias sem entender o que se passou, andando como um zumbi, completamente “siderado”. Depois, diz ele, “começaram os sintomas: depressão,  insônia, muitas  dores no corpo todo. O que me mantém de pé é o antidepressivo que eu já estou reduzindo desde que decidi me tratar aqui”.

Assim, João, ortopedista de “acidentados do trabalho” num hospital público, decidiu buscar um analista para tratar o que está “quebrado”, e que ainda dói. Uma análise, ele supõe, poderia lhe deixar “melhor preparado se a vida me der outras rasteiras”. A psicanálise não lhe é um saber muito conhecido, mas do nome de Freud ele diz se lembrar: “Como eu sou um médico que só se interessa por osso, essas coisas da alma fogem da minha cultura, mas minha primeira namorada era psicóloga e um dia leu pra mim um texto de Freud onde ele dizia que o psicanalista é como um cirurgião. Foi dela que me lembrei quando o amigo psiquiatra que me receitou os anti-depressivos me sugeriu procurar você, porque não estava vendo muita mudança em mim”. Nesse momento em que vir falar a um analista parecia já abrir um lugar diferente para João, um lugar não somente para “desabafar” com um amigo nem se “entupir” com medicamentos, como fizera até agora pensando assim combater o real, antes que ele se presentificasse, eu suspendo essa primeira entrevista, e antes de marcar uma segunda, eu lhe digo sobre sua lembrança: “Dela, mas também de Freud”.
Assim João chegou, reconhecendo o seu fracasso em tentar fugir da “desgraça”  que  aconteceu em sua vida amorosa,  consentindo agora em buscar a psicanálise para corrigir  “cirurgicamente” a fratura que lhe causou o anúncio do abandono que o encontrou despreparado e, por isso, teve  efeitos traumáticos em sua vida:  surpreendido  pela crueza do acontecimento, João não soube encontrar imediatamente uma resposta para lutar contra o  desamparo no qual a vida o jogou.

Não é incomum, hoje em dia, que os indivíduos cheguem ao consultório de um analista nomeando-se a partir dos acontecimentos que viveram ou segundo os seus sintomas. Ou seja, eles costumam se agrupar sob os significantes que o discurso do mestre contemporâneo lhes propõe e aos quais eles se identificam. Um, nos dirá: “Eu sou num deprimido; outro se anunciará como João o fez: “Eu sou um traumatizado”. Mas vir falar a um analista já traz embutida na demanda de alívio uma mudança de posição subjetiva: João já parece querer saber a parte que lhe cabe nisso que lhe aconteceu à sua revelia: “No começo eu me perguntava porque a vida fez isso comigo mas agora eu também desconfio que não era pra ficar  assim, tanto tempo vagando feito um zumbi”. Em outras palavras, João já parece, pelo ato de vir falar a um analista, ter começado a desfazer  uma identificação ao significante “vítima”, ao qual ele se colou para se proteger do efeito traumático do abandono que sofreu do Outro. Agora  já não basta somente responsabilizar o Outro para justificar seu sofrimento, para fazer disso a causa de seus sintomas, ele quer ir além do trauma, o sujeito da queixa já esboça uma  implicação, mesmo que isso ainda lhe seja opaco, enigmático.

Freud começou a responder à questão do traumatismo na psicanálise familiarizando-nos com alguns dos termos que eu recolhi na entrevista com João, procurando saber o que dava condição a que um traumatismo deixasse sua marca  na vida de um sujeito. Ele falou de um sujeito não-preparado, surpreendido, acolhendo passivamente o que lhe acontecia. Um sujeito próximo do desamparo no qual se viu mergulhado em sua entrada no mundo, sob dependência e submissão radicais ao Outro.

Vou caminhar sobre algumas pegadas deixadas por Freud num caminho que vai de seus primeiros passos em 1905, seus ensaios sobre a sexualidade, até os últimos, na teoria psicanalítica, em 1938, quando ele já pôde resumir o que encontrou em seu percurso, confrontado à questão do traumatismo, num “Esboço de psicanálise”.

I – Traumatismo: pegadas freudianas

A leitura de “Para além do princípio do prazer”, de 1920, mantém o leitor de Freud na direção certa para aprender que o traumatismo vai nos ensinar sobre o encontro do sujeito com o impossível.

Muito antes, porém, nos anos 1985-87, em parceria com Breuer, ele já extraíra da clínica da histeria e da neurose obsessiva um primeiro ensinamento: é sempre traumática a situação que se apresenta ao sujeito contra a sua vontade, sem que ele esteja preparado para sofrê-la.  Ou seja, ele começou tratando a questão do traumatismo na Psicanálise sublinhando a passividade como posição subjetiva favorecedora de que se dê a paralisação da vida psíquica e impeça a ab-reação do trauma, como Breuer e ele se expressavam naquele tempo, uma passividade que parecia em sua aparência ter subtraído do prejuízo sofrido pelo sujeito, a implicação de sua subjetividade.
Em 1920, Freud estava às voltas com problemas cruciais para a prática psicanalítica. O jogo do carretel, classicamente conhecido como o “Fort-Da” de uma criança que tentava repetidamente simbolizar o desaparecimento do “objeto”, a mãe, no exemplo freudiano, idéias e atos compulsivos que tinham afinidade com o sofrimento, pesadelos e outras respostas sintomáticas do sujeito nas neuroses traumáticas, o confrontaram à força da repetição, e Freud anota que acontecimentos violentos faziam o sujeito revivê-los incessantemente. Essa fixação ao traumatismo era fixação a uma lembrança dolorosa que, retornando, se acompanhava de uma intensa angústia.

O traumatismo, ele o vê, então, sob o signo da repetição, repetição de sofrimento, de dor, marcas de situações vividas pelo sujeito, que as lembranças traziam sempre de volta. Repetir, às vezes, ganhava as cores de uma compulsão.

Nesse ano em que Freud introduziu em sua teoria a hipótese de uma pulsão de morte para orientá-lo clinicamente, ele aprendeu uma coisa importante: o sintoma nas neuroses traumáticas era a tentativa repetida do sujeito, de “ligar” o trauma. Indicação clínica de Freud que diz respeito, então, ao tratamento possível do traumatismo: “de excluído  do sentido, o acontecimento passará então ao sentido, mesmo se esse sentido é apenas mistério, questão, e logo mais sintoma. É dessa maneira que ele se faz tratável pela psicanálise” (Sonia Chiriaco, “Le désir foudroyé”, p. 23).

A “fixação ao trauma” permitiu a Freud anunciar a novidade que fez corte na teoria e na prática da psicanálise: é para um além do princípio do prazer que todo analista deve manter a direção dos tratamentos, pois alguma coisa, sob transferência, excede a regência desse princípio. Quer dizer: se antes, a ação da interpretação conseguia levar os pacientes até à dissolução dos seus sintomas, agora Freud os vê, apesar da eficácia da interpretação, defendendo uma posição difícil de ceder pela ação da palavra, posição de fixação ao sofrimento que o traumatismo deixava ler. Intrigado, ele passou a se perguntar, a partir dos anos 1920: o que explicaria essa fixação do sujeito à dor?

No início de sua prática, quando era à demanda de alívio para o sofrimento histérico que Freud emprestava a sua escuta, o sujeito que lhe falava se dizia seduzido por um Outro  em cenas afetadas de horror à rememoração.

Nos anos 1895-97 Freud e Breuer já tinham elaborado uma teoria do traumatismo, estabelecendo uma estreita relação entre sedução e recalque. Afirmaram uma sedução agida por um Outro sobre o corpo do sujeito, como um fato real que faz disparar o recalque e designaram, assim, uma função etiológica para a sexualidade e por onde ela chegava ao corpo do sujeito: ela irrompia nele trazida por uma palavra, por um gesto,  pela  agressão de um   sobre o corpo do outro,   passivamente submetido à violência  sexual do querer do Outro.

A sedução desse Outro que abusava e gozava do corpo do sujeito, tornou-se objeto da investigação freudiana e Freud não parou de querer datá-la como traumatismo, na história do sujeito. Recuando no tempo da infância ele desdobrou deduções para alcançar uma realidade para o Outro da sedução.

Uma “fobia de lojas” (Emma) permitiu demonstrar os dois tempos de uma experiência traumática. O acontecimento de sedução sexual, “vindo do exterior ao sujeito que ainda é incapaz de emoção sexual”, isto é, uma impossibilidade de integrar em sua história a experiência, constituiria o primeiro tempo do traumatismo. Não seria, entretanto, essa primeira cena que sofreria o recalque. Os “Estudos sobre a histeria” confirmaram a Freud, caso a caso, que somente se um outro acontecimento, não  necessariamente   sexual, num tempo segundo, viesse evocar, associativamente,  a lembrança do primeiro, somente assim   entenderíamos que uma lembrança pode produzir um efeito bem mais nefasto do que o fato propriamente sexual. Era sobre a lembrança, então, que agiria o recalque. O segundo tempo dá nome de traumatismo ao primeiro. “Luto e Melancolia”, de 1917, reafirma a temporalidade “a-posteriori”, como aquela que interessa ao trabalho de decifração do inconsciente no dispositivo das associações livres.

Quando o “acaso” não sustentou mais uma explicação para a repetição das cenas rememoradas por suas histéricas, Freud duvidou de sua veracidade e abandonou sua teoria da sedução. Ele que começara com a causa sexual do traumatismo como um fato real, em 21.9.1897 escreveu a Fliess  dizendo-lhe: “Eu já não acredito mais em minha neurótica“. As cenas da intrusão da sexualidade no corpo do sujeito por um Outro sedutor, foram interpretadas, a partir daí, como produtos de uma reconstrução fantasiosa.

Mas Freud não estava determinado a dar à fantasia um lugar inequívoco de causa do traumatismo. Assim, ainda que os sintomas remetessem a traumatismos inventados para esconder o gozo auto-erótico do sujeito, a fantasia da qual eles provinham, ganhavam sua função precisa: blindar o sujeito, servir-lhe de anteparo contra algo de real no trauma.  Por essa razão, Freud não renunciou  a continuar  procurando uma “realidade” para as   cenas de sedução, não desistiu jamais de chegar a pisar “o solo de realidade” da fantasia, no qual o sujeito ancorava suas respostas sintomáticas.  Da análise do “Homem dos lobos” (1918), por exemplo, ele recolheu índices de uma “cena primária”, ou  reencontrou na  mão da mãe que cuida e toca o corpo da criança, o Outro da sedução-matriz de todas as fantasias: “Aqui a fantasia reencontra o solo da realidade porque foi necessariamente a mãe quem provocou  e até, quem sabe, despertou nos órgãos genitais as primeiras sensações de prazer”, dirá ele nas “Novas conferências sobre a Psicanálise”, de 1932.   Indo bem mais longe, em sua “Introdução à psicanálise”, de 1915-17, ele nos ensina que “tudo que nos é contado hoje na análise sob a forma de fantasia, foi outrora, nos tempos originários da família humana, realidade”.

Freud perseverou, portanto, acreditando que a cena sexual propriamente dita, redescoberta “só-depois” como traumática, na análise, fincava seus alicerces “sobre alguma coisa de mais real”. Um real talvez não de um fato na infância, mas, quem sabe, o real de uma fantasia no início da humanidade, que se transmitiria de geração a geração. O mito lhe dava assim uma tradução  histórica possível  para um mau-encontro que se fez trauma na origem do sujeito. Fantasia entendida como o território onde se aloja o gozo traumático.

Em 1925, num ensaio autobiográfico, Freud reconheceu que as fantasias de sedução o fizeram encontrar o Édipo: a sexualidade da criança ele continuava a pensá-la estruturada por algo que lhe vinha de fora, mas um exterior ao sujeito que ele nomeia agora desejo, “desejo dos pais”, que preexiste ao nascimento da criança. Assim, a cena, real ou fantasiada, quase no final do percurso freudiano, reenviava para esta anterioridade fundamental do desejo do Outro.

Uma derradeira pegada no caminho do traumatismo deixada por Freud em 1926 diz respeito à angústia. “Inibição, sintoma e angústia” introduziu uma diferença fundamental quanto a esse afeto, estabelecendo a relação estreita que ele mantem com o traumatismo. Freud nomeia “automática” a angústia na situação traumática, mas nos ensina tambem que ela pode se fazer “sinal”: “A angústia, reação originária ao desamparo no traumatismo é reproduzida depois, numa situação de perigo, como sinal de alarme”.

Uma publicação recente, “Le désir foudroyé”, de Sonia Chiriaco, em cujas páginas eu aprendi muito sobre o tratamento do traumatismo pela psicanálise, é um livro apoiado em casos clínicos. Percorrendo os relatos que a autora faz das análises de seus pacientes, eu reencontrei neles uma afirmação fundamental, que nós aprendêramos desde as primeiras anotações freudianas, de que no inventário que podemos estabelecer das situações traumáticas as mais diversas,  a morte e o sexo  se apresentam sempre como os dois grandes enigmas a exigirem respostas do sujeito: em  face do sexo e da morte, ele se encontraria diante daquilo que não se representa ou, melhor dizendo, daquilo que só se representa,   como nos lembra a autora,  “pela castração simbólica que se inscreve como representação única da falta à qual somos confrontados quando acedemos à linguagem”. O traumatismo re-atualizaria, então, um confronto com uma falta original, com um real impossível de lhe dar nome ou representá-lo: a castração como perda de gozo.

O traumatizado traz, já, ao seu primeiro encontro com o analista, uma pequena narrativa  para tentar dizer como a contingência tornou presente  o real que o  afetou de uma angústia intrusiva. Freud nos ensinou sobre isso, habituando-nos à invenção das “teorias sexuais infantis” que ele lia nos ditos de seus pacientes adultos, fantasias para lidar com o mistério do sexo e da morte.

Hans, criança ainda, já ensinara a Freud o que um sujeito pode fazer com isso. O que o traumatizou, muito cedo, foram as manifestações de um corpo que se gozava, o seu:  Hans se perguntava o que era aquilo que acontecia  à sua revelia, surpreso diante de um “órgão macho”  se exibindo, autonomamente, em “pequenas ereções”, sem  que ele pudesse  dar um nome ao que   tomava corpo em seu corpo. Nele, alguma coisa parecia ter escapado à subtração de gozo operada pela linguagem, um resto dessa operação se fazia repetidamente presente, parecia não cessar de não se escrever.

Hans não sabia o que fazer com esse Outro que lhe era estrangeiro em seu corpo, e a quem Freud dera o nome de pulsão e que no mais íntimo dele bebia na fonte das excitações do seu corpo e cuja modalidade de satisfação se enlaçava particularmente  ao funcionamento de suas zonas erógenas.  A pulsão o traumatizava, era-lhe um Outro que  não descansava de semear a   desordem. Enfim, como Emma, Hans não dispunha de nenhum saber sobre a sexualidade, nenhum Outro lhe ensinara como ser capaz de responder ao enigma do sexo.

Sacudido pelo gozo de seu corpo próprio, Hans só teve uma escolha: inventar um sintoma para fixar o real traumático. Porque, contra sua angústia de castração, não lhe bastavam o olhar e a imagem para garantir que seu pequeno pênis permanecia lá, agarrado a seu corpo. Foi-lhe preciso, então, inscrever o que lhe acontecia numa outra ordem, o simbólico, onde o pequeno sujeito freudiano pudesse, enfim, fixar residência. A fobia, foi, assim, sua maneira de lidar com a angústia automática do traumatismo, tornando-a um sintoma no qual o objeto encontrou uma definição, o cavalo, convertendo-a, assim, em medo.

O que Freud aprendeu, sobretudo, com Hans? Aprendeu que o significante não podia dominar tudo das pulsões que o assaltavam, e que, assim, a linguagem lhe era inapta para dizer tudo do real do corpo. Algo se livrara do simbólico e voltava sempre ao mesmo lugar, seu corpo, que se gozava sozinho e lhe era fonte de angústia. Hans, assim como Emma, verificava com seu sofrimento os ditos de Freud, de que, quando não se tem um nome para dar ao gozo, só resta ao sujeito responder com um  sintoma, para fixar o trauma, uma resposta, no entanto, que inclui o gozo.

Troumatisme: a mordida da linguagem

Assim como ele fez com os conceitos, depois com os discursos, no Seminário da “Angústia” Lacan também enumerou quatro termos que permitem dizer porque a experiência de vir falar a um analista, pode ser chamada de psicanálise: sujeito, gozo, objeto a, Outro, ao mesmo tempo em que nos ensina, que o sujeito surge de uma relação indizível com o gozo.

À beira do buraco que se abrira em seu saber, Hans encontrou um impossível de dizer que o ameaçava, como sujeito, de desaparecer. O sujeito tomou, então, uma posição: servindo-se dos significantes que lhe vieram do Outro, nos primeiros tempos de seus encontros corporais com o Outro, ele introduziu outra coisa em sua resposta, alguma coisa que o positivava. Foi o que Lacan nos ensinou no Seminário “De um Outro ao outro”: o sintoma que Hans criou, conjugando significante e corpo, significante e pequeno pedaço de corpo, significante e objeto a, nos diz que das formas que  o objeto a toma,  cada uma delas pode ser isolada como um pedaço de corpo, ou seja, como o que existe de mais estrangeiro para representar o sujeito (Nicéas, “O objeto a e o drama da subjetivação”, no boletim “Um por um”, n.32, VI Congresso da EBP: “A variedade clínica do objeto a”).

Há gozo no sintoma, portanto, e isso Freud já descobrira muito cedo, chamando-o de “benefício secundário”: porque o sujeito sofre com seu sintoma, ele goza e resiste a se desfazer dele por isso. A fobia de cavalos de Hans e a fobia de lojas de Emma, tentativas bem sucedidas de “fixar” o real do trauma, demonstraram a Freud que o que retornava sempre ao mesmo lugar na repetição, podia, enfim, ser tratado pelo simbólico.

Um breve retorno à função do corpo na psicanálise.  Ela a encontra quando o toma como um corpo engajado numa dialética significante, sua unidade tendo sofrido, assim, o efeito de sua entrada na máquina da linguagem. Um corpo do qual algo se separou, um corpo marcado, em consequência disso, com um sinal de menos, que Freud concebeu como corpo do qual uma parte foi sacrificada. De sua inscrição na linguagem, a falta que se fez, a partir de então irredutível, não encontrou jamais significante ou imagem que lhe correspondessem. Irredutível porque de estrutura, efeito de uma divisão inaugural, a entrada do sujeito mítico do gozo no lugar do Outro produziu um resto, uma separação, a castração entendida essencialmente como perda de gozo. Lacan nos ensina o efeito imediato que disso se deu: uma barra recaindo sobre o Outro e a produção do afeto de angústia. E, completando o quadro da divisão subjetiva, o surgimento do desejo correlativo à emergência do sujeito.
Em 1962-63, anos depois da publicação do “Estádio do espelho”, esse estatuto de objeto separável do corpo determinou o retorno ao ensino de Lacan de um outro registro freudiano do corpo, um corpo não referido somente à sua forma. Tratava-se, no seminário da “Angústia” de voltar-se para o corpo freudiano das zonas erógenas, um corpo, portanto, que não é o corpo “visual”, mas o corpo como organismo, apreendido como corpo fora do espelho, corpo das zonas de borda que Freud pôs em relevo e em função desde seus ensaios sobre a teoria da sexualidade.

Então, depois da construção do “estádio do espelho”, como formador da função do Eu, Lacan foi reencontrar o objeto que angustia, na teoria freudiana, sob as espécies de uma “inquietante estranheza”, mas apreendendo-o, no entanto, a partir de sua própria construção do “estádio do espelho”. Assim, se, por um lado, o objeto no centro dessa construção – a imagem do corpo próprio – produz no sujeito um sentimento de júbilo, por outro lado, a experiência de “se ver” no espelho como uma “totalidade”, num momento ainda de não integração biológica, na forma do corpo próprio, não subtrai dessa identificação fundadora do eu, a marca da presença de um branco, designado por Lacan como menos phi, manifestação do não-especularizável: “O investimento da relação especular é um tempo fundamental da relação imaginária. Há um resto. (…)  Isso quer dizer que em tudo que é balizamento imaginário, o falo virá, desde então, sob a forma de uma falta. Onde se realiza (…) a imagem do corpo (…) como propriamente imaginária, isto é,  libidinizada, o falo aparece como um menos, como um branco. Apesar do falo ser, sem dúvida, uma reserva operatória, não somente ele não é representado no nível imaginário mas ele é delimitado, e para dizer a palavra, cortado da imagem especular (Livro X, 2004).

Em resumo, com a invenção de um objeto estruturado de outra maneira que o objeto especular, Lacan nos devolve então a um corpo sem forma sob as formas que toma o que ele chamou objeto pequeno a. Corpo das relações do objeto parcial e do desejo, corpo, enfim, do objeto apreendido essencialmente como separado, mas implicado também,  assim como  o foi o significante, na constituição do sujeito do inconsciente.

O testemunho de um AE que eu comentarei nas próximas jornadas da EBP-Rio, “Nós e o corpo”, abre-se com estas palavras: “O corpo que temos é feito daquilo que foi possível fazer com o que o Outro fez conosco Ele se constitui a partir do encontro do excesso que nos habita e a incidência do Outro em nossas vidas. O que se traça desse encontro define o que será e não será possível em termos de prazer e dor, assim como dos locais onde isso acontecerá”.(Segundo testemunho de Marcus André Vieira)

Talvez entendamos nisso que ele diz, que seja isso que um testemunho de passe deva tentar dizer, tentar falar do choque inicial da língua e do corpo, reconstruir o que, desse encontro, poderá ser passado adiante. Lacan não dizia que na análise devemos surpreender algo cuja incidência original foi marcada como traumatismo? E Miller, depois dele, não teria, por isso, chamado o analista de “surpreendedor de real”?

Lacan inventou um neologismo, num seminário inédito ainda, “Os não-tolos erram” (Les non-dupes errent) para falar, justamente,  desse encontro primeiro que faz trauma no corpo,  encontro que separa o sujeito de seu primeiro  objeto, imprimindo-lhe a marca indelével da mordida primeira da linguagem, a castração de seu  gozo: troumatisme.
A esse traumatismo de estrutura, nos ameaça devolver todo acontecimento que irrompa violentamente em  nosso campo de gozo, “o corpo que temos”, como nos lembra o AE, rasgando com sua brutalidade  o véu da fantasia que, à maneira de um escudo protetor,  evitava-nos um face a face direto com o imprevisível do  real que desampara.

Traumatismo, em Freud, lê-se clinicamente assim: surpreendidos, Emma e Hans não dispunham de um saber anterior para integrarem a violência repentina do acontecimento, e atrelá-lo à trama significante, e eles se viram diante de um impossível de dizer sobre a intrusão traumática de um gozo auto-erótico, que “só-depois” lhes foi possível incluir em sua história.

Com Lacan, o que aconteceu a Hans e a Emma permaneceu excluído do sentido, e na psicanálise essa exclusão reenvia o sujeito a um buraco no saber aberto em sua origem de falasser pela mordida da linguagem, é troumatisme de estrutura.

A fantasia, como o sintoma, também responde ao real do trauma, o veste, não é sua causa. Freud já sabia disso, mesmo depois que a aparente materialidade das cenas infantis de sedução revelaram-se a ele “realidade psíquica” a qual, em Freud, não é sinônimo de mundo interior.

Lacan nos diz, no Seminário “O avesso da psicanálise”, aonde aprender o que é essencial na psicanálise: “se há alguma coisa que a experiência psicanalítica nos ensina, é certamente o que tem a ver com o mundo da fantasia”. Jacques-Alain Miller, em “Alem do Édipo”, sua fala de fechamento do último “Pipol 6”, nos lembra, justamente, que Lacan depois de fazer do objeto da fantasia uma causa de desejo, e não seu alvo, “pôs a nu a estrutura,  que, no Édipo,  está velada pelo viés do mito”. O desejo, então, deverá ser puxado por “uma ponta que não está dada nos sonhos”, matéria prima freudiana para sua interpretação, a saber, a ponta da fórmula da fantasia.

Um ano antes de publicar “Para além do princípio do prazer”, em 1919, Freud desmontou uma construção feita de imaginário e de simbólico onde se alojava um sujeito identificado como  objeto de  gozo, a  fantasia classicamente  batizada como “Uma criança é surrada”, fantasia inconsciente originária que Freud vê como “momento anterior da organização sexual” e da qual ele diz que,  no inconsciente do sujeito, depois do recalque,  “não é seguramente a fantasia de ser amado”  pelo Outro, que fica,  mas a fantasia “masoquista” de ser “surrado” por ele.

Freud sublinhou, na frase simbólica da fantasia, sua forma passiva, e a submeteu a uma série de trocas sintáticas até demonstrar, logicamente, que na relação da fantasia com o desejo,   não se trata tanto, na desmontagem da fantasia pelo analista, de encontrar uma representação para o objeto  que é visado pelo desejo  mas, na sequência dos cenários imaginários, circunscrever  a posição de gozo do sujeito em sua afinidade com a dor e não com o prazer: “masoquismo erógeno” sobre o qual se assenta a construção da  fantasia fundamental, que Freud não  vê  como uma forma clinicamente definida de perversão, mas,   como “testemunho e vestígio do momento onde se cumpriu a liga, tão importante para a vida, da pulsão de morte e de Eros”, isto é, testemunho e vestígio   do gozo que unifica dor e   prazer. Freud tinha, então, um nome para o gozo: masoquismo erógeno.

A clínica do “para além do princípio do prazer” terminou por conduzir Freud a reconhecer  que o sujeito não somente quer a destruição do seu semelhante mas que, desde sua origem, ele goza onde sofre, como a fantasia “Uma criança é surrada”  permitiu-lhe  deduzir na experiência.

O gozo: como nos aproximar dele para apreender a importância desse conceito para a experiência?

As cenas de sedução contadas pelas histéricas trouxeram uma primeira convicção a Freud, no início da psicanálise: um Outro real abusou e gozou de seu corpo. Mas Hans,lhe falou também de um estranho Outro  que gozava excessivamente de seu corpo e lhe tirava o sossego : a pulsão. É sob o domínio da indomável pulsão que, depois  de ter a tranquilidade de sua vida intrauterina brutamente interrompida,   a criança se vê imediatamente excedida.

Os primeiros textos de Lacan desde sua entrada na psicanálise nos familiarizaram com o encontro do corpo do sujeito com um primeiro Outro, a mãe, que traduz seu grito e o inscreve, então, como um apelo ao qual ela vai responder: ela lhe dá não somente o alimento que lhe sacia a fome, mas “ao mesmo tempo o envolve com amor e palavras”, como nos lembra Sonia Chiriaco, resposta, diz ela, que vai inaugurar “as primeiras experiências de prazer do sujeito”, nas quais um primeiro esboço de fala é desenhado, o balbucio, que bebe nessa fonte de prazer e deixa traços de gozo da língua do sujeito.
A linguagem se enraíza num tempo que Lacan situa entre ela e o gozo do ballbucio e  para o qual, na conferência sobre o sintoma, em Genebra,  1975,  ele inventou um nome: “lalangue”, alíngua, em nossa língua particular, a psicanálise. Tempo das primeiras palavras, “do jogo com os significantes par fazê-los seus”, júbilo do encontro do gozo do corpo com o gozo da alíngua.

A passagem da alíngua para o significante, no entanto, acarreta perda de gozo, e o real que se impõe ao sujeito, que descobre, a partir daí, que a linguagem não serve somente ao prazer das palavras:  “significante e sexual não coincidem”, conclui Sonia Chiriaco. Foi isso que Hans descobriu surpreendido pela chegada repentina do gozo sexual em seu pequeno corpo que se gozava sozinho e que lhe era fonte de angústia.

Gozo: conceito que Lacan forjou para unificar os dois polos do último binário pulsional de Freud: Eros e Tânatos, conceito que amarra, num único nó, prazer e dor, satisfação e mal-estar, inscrevendo-os na dimensão de uma antinomia interna: o gozo remete a derradeira oposição freudiana das pulsões de vida e das pulsões de morte  ao registro essencial de uma nova satisfação onde o seu contrário está nela mesma incluído.

“Para além do princípio do prazer”, me remete, para concluir, à palavra de Lacan no livro XVII do Seminário, “O avesso da psicanálise”.  Na lição III, ele nos dá o sentido do primeiro passo de Freud descobrindo o inconsciente: “o inconsciente permite situar o desejo (…) não somente implicado mas propriamente articulado na “Interpretação dos Sonhos”. Isso para ele está adquirido até que, num segundo tempo, aquele aberto pelo “Além do princípio do prazer”, ele articula que devemos levar em conta essa função que se chama  a repetição” Em seguida Lacan nos orienta  a pensar o alcance desse outro passo de Freud, o passo dado em 1920.

“É o gozo que necessita a repetição (…). É na medida em que há procura do gozo como repetição que se produz o que está em jogo no passo à frente freudiano: o que nos interessa enquanto repetição  e que se inscreve numa dialética do gozo, é propriamente o que vai contra a vida. É no nível da repetição que Freud se vê constrangido pela estrutura mesma do discurso, a articular a pulsão de morte.” Para Lacan  é este o escândalo freudiano:  nos ensinar que “a repetição não é somente função dos ciclos que comporta a vida, ciclos da necessidade e da satisfação mas de  outra coisa, de um ciclo que comporta o desaparecimento dessa vida como tal, e que é retorno ao inanimado” Por isso, ele enfatiza: “Inanimado. Ponto de horizonte, ponto ideal, cujo sentido se indica à análise estrutural”.

Foi para esse horizonte que Freud remeteu a direção do tratamento para saber fazer com o gozo que exige repetição e roça a morte. Se até então, a regência era concedida ao princípio do prazer, na experiência, “princípio da mínima tensão” a ser mantido para que a vida subsista, em 1920 Freud  se rende  clinicamente à evidência de que, “em si mesmo,  o gozo o transborda”, ele somente mantém “o limite quanto ao gozo”, precisa Lacan.

A experiência que orienta Lacan em sua interpretação do texto freudiano, o faz insistir que “a repetição está fundada num retorno do gozo. E, sobre isso, ele nos lembra,  Freud articula ainda um outro dado:  na repetição  produz-se algo que é fracasso, falta, (…) o que se repete só poderia ser dito  em termos de perda. (…) Há qualquer coisa que é perda e sobre essa perda,  desde a origem,  Freud insiste: na repetição perde-se gozo”. (…)  “É nesse ponto que ganha  origem no discurso freudiano a função do objeto perdido”.  Daí, diz ele, “seu texto inteiro girar expressamente em torno do masoquismo, concebido somente sob a dimensão da busca desse gozo arruinador”.

 

Rio, outubro de 2013

AME, membro da EBP e da AMP.

O texto integral da conferência de Carlos Augusto Nicéas – UMA CONVERSA SOBRE O TRAUMATISMO – proferida na CLIPP em 21 de outubro de 2013 encontra-se publicado neste site na seção BIBLIOTECA – Artigos.
Agradecemos ao autor a disponibilidade.
Diretoria da CLIPP