Invenções vs. Certezas
Por François Ansermet
Reflexões sobre algumas questões levantadas pela prática clínica que envolve os sujeitos transgêneros e a identidade de gênero na sociedade atual [*]
O gênero existe para a psicanálise? Se não, o que se poderia dizer que pudesse vir em seu lugar?
FA: Estamos vivendo em uma época que é definida por rupturas de gênero que, por si só, assumem muitas formas diferentes – entre gênero binário, bi-gêneros, fluidez de gênero, a-gêneros e muitos outros arranjos da diferença dos sexos. Cada um constrói seu próprio gênero. No entanto, isso não significa que a própria diferença seja afetada. Pelo contrário, é a posição de cada indivíduo em relação à diferença que é reivindicada como um direito, tanto do eixo da identidade como aquele do desejo. A questão do desejo não deve ser esquecida, mesmo que a da identidade tenha tomado conta. Hoje, um indivíduo pode se autodenominar um a-gênero e assexuado. Tudo é possível. Os sistemas de gozo podem ser reivindicados como direitos. Não cabe à psicanálise assumir uma postura conservadora em relação a essa evolução, mesmo que haja o risco de tomar essa direção. É preciso ficar com a clínica e seguir a solução de cada sujeito. Em vez de entrar em aspectos de gênero, precisamos, de fato, nos concentrar nas soluções de cada sujeito. A cada um, sua própria criatividade. A cada um, sua própria solução. Um novo mundo está sendo inventado: cabe a nós viver à altura da subjetividade de nosso tempo, o que Lacan nos instruiu a fazer já em seu Relatório de Roma. [1]
A teoria de gênero quer romper com a oposição binária entre homem e mulher, estabelecendo uma multiplicidade de gozos onde a identidade sexual é questionada. Quais são seus pensamentos sobre isso?
FA: Sim, é exatamente isso. Sempre existe o risco de as questões de identidade assumirem uma importância excessiva. Estamos em uma época de paixões no que diz respeito à identidade. Na verdade, é a questão do gozo que se deve colocar, a questão dos sistemas de gozo, incluindo o gozo de uma identidade! Se Deus está morto, as identidades tomaram seu lugar. Se, para alguns, Deus era único, as identidades, por outro lado, são múltiplas. É devido a essa multiplicidade de gozos que as identidades se multiplicaram. Tomar o gozo como referência permite orientar-se com mais precisão na prática clínica, em vez de se perder nos espelhos das identidades.
Você oferece o tempo lógico como um guia, e também acrescenta que devemos introduzir um tempo de invenção. Você pode explicar como devemos entender essa ideia?
FA: Existe o instante de ver: ‘Eu não sou aquele que sou’; ‘Eu não estou deste lado da diferença dos sexos’; ‘Não sou do gênero que supostamente represento’; ‘Eu não sou o que pareço ser’. Existe uma convicção, até mesmo uma certeza. Segue-se o tempo de compreender, que muitas vezes toma emprestados discursos trans ‘feitos em série’ estabelecidos: um tempo que é o da construção da nova identidade. Depois, chega o momento de concluir: é o momento do ato, da mudança de gênero, uma passagem ao ato que funciona como um ato de passagem. Alguns sujeitos seguem outro caminho. Eles decidem o contrário. Eles escolhem o caminho de fazer da vida sua própria criação. Eles se inventam de maneira diferente. Essa dimensão da invenção deve ser levada em consideração, antecipada em nossa prática clínica, mas sem nos tornarmos demasiadamente presos, sem ficar excessivamente fascinado, pela problemática transgênero. Colocar a invenção no lugar das certezas – essa seria a direção que uma clínica psicanalítica lacaniana oferece. […]
Você pode nos contar mais sobre essa ideia de suprimir a menstruação na puberdade e o uso de bloqueadores da puberdade?
FA: Os hormônios são necessários para bloquear a puberdade. Em seguida, para alterar as características físicas em uma direção ou outra. Alguns para fugir do feminino, outros para ir em sua direção; da mesma forma para o masculino, seja para recusá-lo, seja para obtê-lo. Todos os tipos de correções são possíveis graças à plasticidade do corpo. Para não ter mais menstruação. Para ter uma barba. Para suprimir o crescimento do cabelo. Para mudar a voz. Para alterar a curvatura dos quadris. Vale tudo para mudar o corpo, para que ele possa encarnar a posição do sujeito em sua relação com a diferença dos sexos, num desejo absoluto de mudar de sexo.
Então, por outro lado, alguns escolhem o caminho da ambiguidade, ser bissexual ou assexuado, ou fazer com que caiba ao outro fazer a escolha de lhes atribuir um gênero ou outro. Para tanto, optam por um corpo ambíguo que os deixa com a liberdade de serem indefiníveis, de deslizarem à vontade de um gênero para o outro – como se não houvesse ato de passagem irreversível, como se o gênero fosse reversível, bilateral, intercambiável.
O que resta de gênero uma vez que nos libertamos das normas?
FA: Esta é uma questão muito boa! Com efeito, passamos de uma época que foi marcada pelo conceito de norma para todos, norma de escopo universal, para o fato de hoje estarmos mais no registo de ‘cada um segundo a sua norma’, ou mesmo de um ‘fora-da-norma’ para todos. O gênero é uma construção social que se situa para além do biológico: o que o gênero se torna em um mundo que quer estar livre das normas? O gênero se descobre, paradoxalmente, normativo? Essa seria uma observação desconcertante, visto que o mal-estar de gênero tem sido a ocasião para tornar aceitáveis novas posições em relação ao gênero, novas formas de considerar as diferenças dos sexos; estes, por sua vez, tornaram-se direitos de ocupar posições que são singulares, ao invés de normativas. Vemos aqui algo semelhante à reivindicação de casamento para todos: uma afirmação da marginalidade que se torna uma nova norma, o desaparecimento de uma espécie de rebelião pela aceitação social. Como se passássemos da norma para todos para fora-da-norma para todos!
O fora-da-norma para todos é um relativismo tornado totalitário – um desejo de universalizar a norma diferente, se podemos permitir tal oximoro. Essa tendência se manifesta pela afirmação de novas identidades às quais cada uma teria direito: uma paixão pelas identidades, onde cada um quer coletivizar sua diferença, sua própria norma, até mesmo impô-la. Surge então uma situação paradoxal, em que passamos do direito de ser diferente para um fora-da-norma para todos, uma reversão da singularidade em direção a uma tendência para a universalização. As diferenças se reúnem sob o signo de identidades que são reivindicadas como direitos.
O mais impressionante é que o que vemos de fato é “a captura do sujeito por sua situação” [2], onde o particular se torna universal, e torna-se um ‘feitos em série‘ para todos. O resultado final disso pode ser a reprodução assistida: onde um homem que fez a transição para uma mulher, e guardou seus espermatozoides, pode exigir ser reconhecido como pai enquanto é mulher; ou uma mulher que se tornou um homem pode reivindicar ser reconhecida como mãe, tendo um filho no ventre que ela manteve. Em suma, podemos ter pais que são mulheres e mães que são homens; confundindo todos os pontos de referência anteriores e invertendo as normas. Ao se afirmar plenamente, um indivíduo pode acabar negando a si mesmo. […]
Onde estamos indo? Que tipo de mundo está sendo construído? Devemos nos preocupar? Ou devemos valorizá-lo como criador de soluções – soluções que se encontram fora das normas – em relação aos impasses contemporâneos? Soluções em que a psicanálise pode participar. Ao invés de privilegiar uma norma para todos, ou um fora-da-norma generalizado, a psicanálise visa permitir que cada indivíduo constitua sua solução – uma solução que é sempre única, diferente, singular; irredutivelmente, subversivamente, situada além do escopo da norma ou fora-da-norma.