A Civilização e seus Objetos a
Por Yaron Gilat
Depois que o coronavírus passar – é o que dizem ! – o mundo não voltará a ser o que era antes. Quando sairmos do outro lado da “toca do coelho” da pandemia, eles nos dizem, o mundo será diferente e nós também. As perspectivas atuais sugerem que uma crise é uma porta para o desconhecido e muitos tentam especular o que o futuro reserva, liberando uma onda de previsões fantasiosas e delirantes. No entanto, a maioria concorda que ainda é muito cedo para estimar o que pode acontecer depois que a pandemia se arrefecer.
Noventa anos atrás, quando o mundo estava em turbulência, em tempos de grandes mudanças políticas, sociais e econômicas, Freud publicou o que foi mal traduzido como “Mal-estar na Civilização” – “Das Unbehagen In Der Kultur” [1]. Apenas dez anos antes, ele perdeu sua filha, Sophie, para a gripe espanhola. A jovem democracia da república de Weimar era instável e frágil, a Quebra de Wall Street de 1929 e a crise financeira que se seguiu fizeram suas vítimas e o antissemitismo na Europa central estava em ascensão. Talvez tenha sido um senso de urgência que o levou a escrever este texto profético.
De modo a evitar o caos des-civilizado, o homem deve abrir mão da felicidade e da liberdade, afirmou Freud. Para que a cultura seja estabelecida e perdure, os seres humanos precisam renunciar às suas aspirações de felicidade completa e liberdade total. “Nunca dominaremos completamente a natureza”, escreveu Freud. “Parece fora de dúvida que não nos sentimos bem em nossa atual civilização”, acrescentou, e “A liberdade individual não é um bem cultural”, concluiu [1]. Admiravelmente, Freud foi muito longe com suas proposições, mas talvez não tenha ido até o fim.
Em seu Seminário XI – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise – Lacan disse que “Essa esquize constitui a dimensão característica da descoberta e da experiência analítica, que nos faz apreender o real, em sua incidência dialética, como originalmente mal-vindo. É por isso, precisamente, que o real é, no sujeito, o maior cúmplice da pulsão” [2]. O objeto perdido que habita essa esquize, como um vazio, é o que leva o nome na álgebra lacaniana – o pequeno [petit] a.
“Reconhecemos o desenvolvimento cultural como um processo peculiar, comparável à maturação normal do indivíduo”, afirmou Freud [1]. Desta forma, podemos sustentar que as culturas, assim como os sujeitos, se constituem sobre uma esquize, um Real, um objeto pequeno a, que é cúmplice da pulsão.
Nesse sentido, a felicidade e a liberdade renunciadas em nome da cultura, são apenas meros objetos de descarte, representando o objeto pequeno a, habitando o vazio do Real e ocultando a castração, apenas para serem constituídos como objetos perdidos antes de mais nada. Como tais, são apenas resquícios, fragmentos, restos dos quais se desfazer, para que a cultura se sustente.
Três anos após a publicação de “Das Unbehagen In Der Kultur“, Freud testemunhou como o Partido Nacional Socialista da Alemanha ganhou o controle do governo e embarcou no empreendimento para criar uma nova cultura e identidade alemãs, enquanto os judeus se radicalizaram como objeto a, incorporando um excesso Real que a estrutura do nazismo não poderia incorporar [3].
Na verdade, não podemos até agora dizer como iremos emergir do outro lado da pandemia, mas seja como for, quaisquer novas formas de cultura que apareçam, elas se materializarão de acordo com a escolha daquilo que ocupará o lugar de objeto pequeno a e será o cúmplice da pulsão.