CLIPP – “Das Unheimliche” foi traduzido como “O estranho”, “O inquietante”, “A inquietante estranheza”, “O inquietante familiar”, “O sinistro”, “O ominoso”, “O perturbador”, o que mostra o desafio presentificado por uma tradução, como Freud mesmo coloca em Os Chistes e sua relação com o inconsciente, fazendo uso da expressão “traduttore, traditore”.
A tradução de “Das Unheimliche” como o “Infamiliar” provocaria certa “estranheza” por ser um neologismo? Como justificar esta tradução para a nossa língua, como tentativa de recuperar o sentido dado por Freud, com um mínimo de traição?
Sérgio de Castro – A tradução de “Das Unheimliche”, seja como adjetivo, seja em sua forma substantivada pelo neologismo infamiliar, causa, de imediato, estranheza. Lembro-me de uma conversa informal de Gilson Iannini, editor responsável pelas Obras Incompletas de Freud, que acolhe e publica tal tradução, com duas colegas da EBP-MG onde, ao comunicar a elas que estava pensando nessa possibilidade de tradução para “Das Unheimliche”, obteve como resposta uma imediata discordância! Sou obrigado a confessar que naquele momento também participei dela.
No entanto, ao nos aproximarmos da questão, e do ensaio de Freud com esse título, constatamos, através da longa digressão no campo da linguística e da etimologia feitas logo no início do artigo por Freud, que será a própria formação, composição e sentido ambíguo de tal palavra o que chamará sua atenção para o fenômeno descrito. Ao comportar, em sua constituição, o termo heimlich (familiar, íntimo), e seu oposto, com a partícula de negação Un, como um evento externo ao sujeito, podemos dizer que o neologismo êxtimo, desta vez lacaniano, se mostra inteiramente apropriado para uma aproximação da questão.
No que diz respeito à tradução de tal palavra, uma vez constatado que no próprio alemão ela convoca a mais de uma camada de sentido, e muitas vezes excludentes, podemos dizer que ela será sempre problemática. Para nos atermos apenas a um autor do Campo Freudiano, Miquel Bassols, em sua conferência apresentada no VIII ENAPOL[1], dirá que: “Se tivéssemos que transpor literalmente tal termo para o espanhol (mas a questão se mantém no português), então melhor seria falar de in-familiar”. Bassols também ressalta ali que a partícula de negação Un, no alemão, é a mesma presente em Un-bewusste, que designa o inconsciente. A esse propósito, temos também a recém-publicada resposta de Lacan a Marcel Ritter[2], onde Lacan observa que o Un presente em algumas palavras alemãs – como Unheimliche, Unbewusste, assim como Unerkant, o não reconhecido – se liga e remete a um limite, o limite do dizível.
A escolha, portanto, da tradução da palavra alemã Unheimliche por infamiliar, que a organização do XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, por sugestão do Conselho da Escola adotou, parece-me, a partir de tais considerações, justificada. Poderíamos mesmo dizer, seguindo elaborações de Freud presentes na abertura do ensaio, que ela comportará algo de “intraduzível”, ou de residual, no próprio alemão, uma vez que não se deixa apreender inteiramente num sentido unívoco. Esta opacidade, em detrimento de sua face comunicacional e límpida, foi preservada em tal tradução.
CLIPP – O momento de pandemia vivido na atualidade presentifica o que se pode chamar “infamiliar”?
Sérgio de Castro – O momento em que vivemos comporta diversos elementos infamiliares. Basta que nos lembremos que um dos termos, junto ao retorno do recalcado, a que Freud anexa o infamiliar, é a angústia. Angústia diante da resistência de um real que, se a ciência ainda não conseguiu decodificar inteiramente, no que diz respeito às subjetividades, tal opacidade permanece. De certa forma, e guardadas as importantes diferenças, acho que a pandemia pode ser posta lado a lado com outros fenômenos contemporâneos que portam também algo do Unheimliche. A internet, e sua articulação ao Big Data, será um deles. Ali também, de vez em vez, somos surpreendidos por um Outro tão inconsistente e invisível quanto o coronavírus, que de tempos em tempos irrompe de forma inesperada e, muitas vezes, angustiante. Acho mesmo que o fenômeno do Unheimliche, se o pensarmos em circunstâncias que não se articulem apenas ao retorno do recalcado – que não opera mais da mesma forma, uma vez que falamos no declínio do Nome-do-Pai – pode ser uma importante chave de leitura da contemporaneidade.
CLIPP – Mais do que uma pandemia mundial, os problemas com o vírus se misturam a questões políticas que, em nosso país, parecem não ter um encaminhamento tranquilo. Podemos evocar também aqui o infamiliar?
Sérgio de Castro – Podemos constatar que o infamiliar se manifesta em nosso país também (mas não só) pelas circunstâncias políticas. Desde a estranha recusa ao discurso da ciência do atual governo, num momento em que uma adesão a ele seria uma clara tentativa de defender a vida, até o que se pode ver no famoso vídeo da reunião ministerial em que um ministro afirma que é preciso aproveitar as atenções da imprensa voltadas à pandemia para aprovar projetos obscuros e prejudiciais à sociedade. A propósito da recusa às orientações sanitárias defendidas pela OMS, os argumentos econômicos apresentados não parecem, de forma alguma, inteiramente convincentes. Não devemos nos esquecer de que o chamado “núcleo ideológico” do governo é composto por cristãos fundamentalistas de inspiração tomista. Essa certamente é a “ideologia” vigente hoje no Estado brasileiro ou, ao menos, a que se tenta impor. A partir daí, elementos ainda mais infamiliares podem ser detectados, onde a recusa sistemática a um enfrentamento mais consequente e responsável à pandemia também encontra argumentos.
Na verdade, vez ou outra detecta-se algo de um delírio que frequenta altos escalões do governo, onde termos como terraplanismo ou um entendimento do rock and roll como manifestação de Satanás, adornados com alusões ao nazismo, não deveriam ser inteiramente dissociados de certos posicionamentos com relação às normas sanitárias propostas. O tal “núcleo ideológico” é reacionário no sentido radical do termo: reage contra (contra o quê? Há aí uma questão que devemos enfrentar) produzindo respostas muito próprias e informadas a partir de referências político-religiosas. E, constatamos, profundamente infamiliares…