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Comentário do livro de Vladimir Safatle

Comentário do livro de Vladimir Safatle:

A paixão do negativo: Lacan e a dialética

 

Durval Mazzei Nogueira Filho

  1. À leitura do texto, a primeira impressão é que eu seria, antes de tudo, um aluno. Não que não seja obrigatória a passagem de Kant, Hegel, Adorno pelos olhos de um analista. O analista há que ser um homem letrado. Mas, pelo menos no meu caso, não correspondeu a um estudo detalhado e aprofundado das obras citadas. Quando Vladimir comenta que a leitura que Lacan de Hegel, via Kojève, pode não ser a melhor, a que contempla mais acertadamente o dito de Hegel, que se poderia dizer da minha leitura? Obediente ao meu estilo: solitária. Poder-se-ia dizer o pior.

 

  1. Assim, quando Vladimir ressalta que Lacan se equivoca quando resume a finalidade da dialética à síntese que esgota a antinomia. E antepõe a esta afirmação “que nem todas as sínteses são fundadas na anulação das antinomias” e fala de “uma dialética negativa [que] consiste exatamente no advento de uma síntese não totalizante, síntese formada com base na idéia de ‘constelação’, na qual a negação dos procedimentos de universalização totalizante é conservada”, a ação principal de minha parte é prestar na atenção no escrito e na argumentação do autor.

 

  1. Aliás, esta perspectiva de crítica e discussão do texto lacaniano é, de fato, um dos pontos altos do texto. Em algumas passagens, mais do que esclarecer Lacan, o pontua e o critica. Na nota de rodapé, à página 72, pergunta-se a razão de Lacan dizer no Seminário VIII a “permanência transcendental do desejo” e não a “transcendência do desejo”? Chega, apesar de recuar, a dizer se Lacan não confunde transcendência e transcendentalidade. Na página 80 contesta a atribuição de Lacan a Kant “que as idéias esquema de Kant se situam na ordem deste domínio [imaginário]”. Vladimir comenta que “Kant nunca cessou de sustentar uma distinção clara entre o esquema e a imagem, já que o esquema seria uma regra, um produto transcendental da imaginação que permite a produção de significado por meio do estabelecimento de relações entre categorias e o material empírico da intuição”. O que estaria mais próximo do registro do simbólico que no registro imaginário. Na página 109 levanta “uma crítica possível a essa concepção de metáfora”, concepção que salienta a função negativa da metáfora em relação ao referente. Vladimir salienta que a metáfora pode, muito bem, instaurar “uma positividade ao afirmar necessariamente algo sobre a referência”, pois “dizer simplesmente que a metáfora é escritura da inadequação significa perder aquilo que nos permite afirmar que há metáforas mais adequadas que outras”. Assim como lemos na página 134 quando o autor lança uma pergunta se “a hipóstase do impossível” não produz “o rebaixamento de todo conteúdo essencial do efetivo, ao mesmo tempo que permite a perpetuação de um gênero de suplemento da relação sexual próprio à perversão”. Na página 224 volta a comentar o equívoco da leitura lacaniana de Hegel ao dizer que “a dialética hegeliana… não podia se reduzir… a uma reflexividade imaginária”. Afirma dizer que Hegel percebia que a passagem do desejo ao trabalho implicava em uma “modificação de registro no qual o peso do reconhecimento pelo Outro se fazia sentir”. Enfim, não é hábito dos dedicados à leitura de Lacan uma abertura de espírito, como a que o texto assume, que leve a críticas sem que estas signifiquem rompimento ou invalidação do ensino de Lacan. Ao estilo François Roustang.

 

  1. Algo havia passado desapercebido por mim: nos Escritos e Outros Escritos, o autor mais citado é Hegel. Depois de Freud. Curiosa a relação entre a Psicanálise e a Filosofia. Juranville, apesar de pretender incluir o inconsciente no discurso filosófico, e apresentar o discurso filosófico como distinto da “idéia de um saber perfeitamente demonstrativo” ao salientar que “a contestação aqui é a priori, é um pressuposto do questionamento filosófico. E é preciso dar todo o seu peso a essa contestação a priori: a indagação filosófica, sobre a qual dissemos que tinha no saber seu objeto, de fato, pressupõe que o saber é impossível, ou pelo menos que existe um pretenso saber, um saber que não o é”. E completa: “a filosofia é, antes de mais nada, contestação da mestria”. É no diálogo platônico, centrado em Sócrates, que Juranville sustenta essa relação da filosofia com o saber. Decerto uma maneira de aproximá-la da psicanálise. O que não impede este autor sacar o laço curioso que Lacan tem com a indagação filosófica, ao identificá-la justamente ao discurso do mestre (o detalhe de Lacan equiparar este mesmo discurso ao inconsciente indica que esta discussão está longe de terminar). Não deixa de ser um modo de polemizar com Lacan, dado que Lacan polemizou com os filósofos. Não sem surpreender. Diversamente de Freud que comentou e pediu auxílio à literatura e às artes em geral, as páginas de Lacan foram preenchidas por filósofos. Mais entre eles do que entre os outros psicanalistas. Ponto que não passou fora da atenção de Vladimir, assim como não ficou fora a tensão permanente entre os dois discursos. Procurar demonstrar, e neste sentido está do mesmo lado de Juranville, que a filosofia não é a glória da positividade choca com a insistência dos psicanalistas dizerem o contrário. Biagi-Chai e Relier dizem: “o filósofo nos ensina acerca da ética ao conduzir quem o escuta e o lê pelo caminho do conhecimento para tentar captar fora do corpo o objeto que uniria o prazer e o bem. Não poderíamos prescindir do filósofo neste aspecto. Mas o psicanalista não poderia tomar emprestado este caminho já que nenhum objeto que se pretenda universalmente verdadeiro pode responder à falta-a-ser de um sujeito”. A frase das autoras é uma maneira de tomar a filosofia como um monolito no qual cada filósofo ocuparia um lugar equivalente. O que não corresponde à inquietação de cada uma das falas dos filósofos. Que permite a pergunta se há A Filosofia. Miller chega a dizer que “a filosofia da antiguidade tem menos que ver com um saber teorético que com ‘arranjar-se habilmente’ com a dificuldade de viver em um contexto dado, em certo momento da civilização”. Segundo ele quando os filósofos deixaram este lugar vago, alojou-se aí a psicanálise. Creio que não possibilita chamar a psicanálise de ‘herdeira da filosofia’, mas deixa no ar uma interrogação. Não deixa de ser uma espécie de ‘contraprova’ a presença de Comte-Sponville, Luc Ferry e mesmo de Lou Marinoff e seu mais Platão e menos Prozac na cena filosófica contemporânea. Milner, entretanto, diz que o segundo classicismo de Lacan, o Lacan dos matemas, é marcado também pela antifilosofia, pela “exclusão mútua entre a filosofia e o matema da psicanálise”. Segundo Milner uma das sustentações da referência de Lacan à filosofia seria que “as armas da filosofia eram mais fortes do que armas da cultura” contra o cientificismo deturpado da IPA.  Miller segue uma linha similar ao comentar que a arma de Lacan contra “o modelo do aparelho psíquico fechado em si mesmo” foi “recorrer ao diálogo platônico, à noção de dialética, bem como à noção de intersubjetividade e à problemática da relação ao outro articuladas por Sartre, para fazer entender que o encontro da verdade surgia mais do diálogo e do intercâmbio que da solidão”.

 

 

  1. Este ponto, o cientificismo, armadilha na qual a IPA entrou alegremente, parece absolutamente fundamental na escolha de Lacan pela companhia de Hegel (companhia que, por outro lado, esteve presente na dialética do senhor e do escravo, no uso das expressões ‘lei do coração’ e ‘bela alma’ presentes na Fenomenologia do Espírito e em diversas passagens lacanianas). Em ‘Variantes do tratamento-padrão’, Lacan explicita muito claramente a concordância com Hegel na assimilação à “prematuração do nascimento” da “deiscência da harmonia natural exigida por Hegel como sendo a doença fecunda, a falha afortunada da vida, onde o homem ao se distinguir de sua essência, descobre sua existência”. Esta posição lista Hegel aos filósofos em oposição à filosofia da natureza, ao estilo Schelling ou ao homem-máquina de La Mettrie: o espírito é história. Um detalhe interessante que traz a Fenomenologia do Espírito ao momento atual é a crítica que faz Hegel a duas ciências de sua época: a fisiognomia e a frenologia. Encontra-se no subtítulo ‘A razão observante’, da Fenomenologia, o comentário sobre o equívoco que é a tentativa de exprimir o interior pelo exterior e reduzir o ser à forma do corpo. É de bom tom lembrar que estas duas ciências postulam basicamente, sem o aparato técnico contemporâneo, o mesmo que a atual coqueluche em torno da neuroimagem e sua função para além do diagnóstico clínico neurológico ou psiquiátrico. Não que este último papel não possa ser, apesar da aparência de adequação, questionado. Mas a função ‘além do diagnóstico’ encontra-se presente nos periódicos médicos com o objetivo de mapear as áreas cerebrais que são excitadas dependendo do que o sujeito fala ou do que o sujeito vê.

 

 

  1. Este último tema não está intocado no texto de Vladimir. Logo no início está escrito “em nosso momento intelectual, momento no qual a figura do sujeito (pensado a partir da matriz cartesiana) é objeto de críticas virulentas endereçadas pela filosofia anglo-saxã da mente (o que torna uma das afirmações de Milner e de Lacan dirigida à filosofia um anacronismo: a inexistência de uma filosofia síncrona com a ciência), pelo pós-estruturalismo francês e pela filosofia neo-pragmática da intersubjetividade”. Faço aqui uma pequena brincadeira em torno de uma falha de impressão no texto. Está lá: “na verdade, a confrontação de Lacan com Adorno serve sobretudo para abrir as portas a uma reflexão mais ampla sobre o destino da dialética no século XX”. Creio que no texto deveria constar século XXI. Ora, não seria este acossamento pela neurociência, que justifica a filosofia da mente e a neo-pragmática anglo-saxãs, que faz certos espíritos perturbados pelo momento atual temerem pelo destino da dialética e, claro, da transcendência. Comprova-se esta preocupação quando Vladimir, nas páginas finais do escrito, topa com uma citação de Adorno e tem que esclarecer que o autor não é adepto de uma Naturphilosophie. Diz que pressupor “um conceito de natureza, em Adorno, pensado como horizonte de doação positiva de sentido. A natureza apareceria assim como um signo de autenticidade. O que vai contra toda possibilidade de um pensamento dialético da natureza”. Um pouco mais adiante volta ao tema “insistiu-se que deveríamos parar de ver, na idéia adorniana de mimese, o resíduo de uma filosofia que crê encontrar na natureza um plano de imanência e doação de sentido. Há ainda uma dificuldade em apreender o papel exato do conceito de natureza (tanto interna quanto externa) em um pensamento dialético, já que estamos diante de um pensamento que não admite nem uma relação expressiva nem uma relação convencionalista com a natureza. Para a dialética, a natureza não se reduz ao resultado da reificação de práticas de discurso, mas ela também não é um dado positivo e acessível de maneira imanente”. Pois então: é perfeitamente esta a noção de natureza como imanência doadora de sentido que corresponde ao discurso diante do qual devemos nos posicionar.

 

 

  1. Para confirmar: o caderno ‘MAIS!’ da Folha de São Paulo publicou no domingo 18 de junho a resenha do livro de Vladimir, por Lúcia Santaella. Uma resenha legal, direta, objetiva e realça o que é interessante na obra. É bom, entretanto, desviar o olhar para a página ao lado. Vemos lá três artigos: “O ‘por quê’ e o ‘como’?” do físico Marcelo Gleiser, constatando a impossibilidade da ciência produzir uma “explicação completa e absoluta de tudo”, afastando-a do discurso do mestre. O segundo artigo é “Genética de risco”, escrito por Amy Harmon para o New York Times. O texto gira em torno de um ‘chef’, Jason Dallas, que gosta de esportes radicais. Relata que este moço pensava neste gosto como “uma coisa de personalidade”. Até que soube de uma pesquisa com camundongos que demonstrava a doação de sentido a partir da natureza: camundongos sem um determinado gene não se preocupavam com a própria segurança. Este saber transformou Dallas em um homem “convicto que tem uma predisposição genética a assumir riscos”. E o artigo segue comentando a influência deste saber, influência inevitável, no modo como as pessoas pensam a respeito de si mesmas e do efeito inútil da educação. Amy termina o texto citando o programador de computadores obeso, Mike DeWolfe. Ele diz “eu realmente queria fazer um teste, porque aliviaria a minha culpa”. O teste seria para defini-lo como um portador de alguma anomalia genética que o tranqüilizasse em relação a julgar-se um glutão descontrolado, incapaz de frear seus impulsos. Cabe aqui mais um parênteses. Ons diz que a separação entre Lacan e Hegel alcançou o cume no Seminário X, quando a angústia e o objeto a tornam-se centrais na reflexão lacaniana. De certa maneira não discorda da proposição de Vladimir, que aponta Kant com Sade e o seminário VII, ‘A ética da psicanálise’, o ponto de ruptura. Não é impossível traçar o caminho ao objeto a, a partir deste momento. Segundo a autora uma das razões desta ruptura é a concepção da angústia. Diz: “a angústia como o que não engana é a objeção irredutível ao idealismo hegeliano, a resistência do particular ao esforço de sua inclusão no universal”. Não obstante, um dos movimentos mais concretos da neurociência é o retorno da angústia ao leito do universal. Decerto um universal sem transcendência, o universal da biologia como o terreno que iguala a todos. O terceiro texto, escrito pelo sociólogo Marcelo Leite, chama-se “O paradoxo da Fluoxetina”. O sociólogo comenta que a redução da taxa de suicídio, que até 1988 – data da entrada no mercado do Prozac – flutuava entre 12,2 a13,7 por cem mil para 10,4 por cem mil, deve-se ao tratamento farmacológico da assim chamada depressão. Correlaciona as curvas estatísticas – taxa de suicídio declinante e prescrição de antidepressivos ascendente – para demonstrar sua tese. É o caso de se perguntar como ficou Camus: do problema maior da filosofia a objeto de tratamento farmacológico, o suicídio banalizou-se. Como deverá acontecer com todo o resto.