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As (homo)sexualidades no falasser

 Cláudio Ivan Bezerra

Este texto é fruto de indagações despertadas durante o Seminário de Leitura da CLIPP: Amor, Sexo, Feminilidade, coordenado por Carmen Sílvia Cervelatti, que a partir da sua orientação temos percorrido um caminho bastante aprofundado das discussões dos primórdios do sujeito, desenvolvimento da libido, passando pela questão do feminino e a rota para o amor. Aqui deve-se sublinhar se tratar não do amor falado pelos poetas e apaixonados, mas sim do amor como instância estruturante, capaz de poder revestir um laço e organizar os demais dentro uma tríade borremeana.

Escalado para trabalhar as homossexualidades – masculina e feminina, este tema me fez eco sobre o teórico e a prática clínica, tornando-se meu produto de investigação, objeto de leitura e de pesquisa por semanas. Se por um lado pouco se inova na interpretação da questão homossexual na teoria psicanalítica por outro, que efeitos práticos teriam a passagem  do inconsciente freudiano ao parlêtre lacaniano na direção do tratamento? São questões que envolvem tanto a conceituação teórica e seus pontos de partida quanto a prática clínica na contemporaneidade. Será que há algo de novo no manejo clínico?

Breve relato sobre as homossexualidades

 Em 1905, no texto Três Ensaios sobre a Sexualidade, Freud relata o fluxo da libido como um rio em seu desenvolvimento, passando por etapas fixas e podendo assim chegar ao objetivo final, o sexo oposto. Toda e qualquer outra eleição objetal diferente da etapa final passa a ser considerada como desvio do objeto e a integrar o quadro de aberrações sexuais.

A preocupação com a inversão é tão forte nesse momento do ensino que Freud chega a propor uma prevenção à inversão : “Uma das tarefas implícitas na escolha do objeto consiste em não se desencontrar do sexo oposto(FREUD, 1901-1905, p. 216). O alerta vai na direção da educação infantil, que diz que, para as meninas, uma vez  criadas pela mãe, passam a desenvolver a rivalidade afetiva na relação mãe-filha, sem comprometer assim a eleição do objeto heterossexual.

A partir do caso da Jovem Homossexual, Freud aponta que a homossexualidade feminina está atrelada a um “recordatório, a persistência na mulher da atividade manifesta que encarnou o Outro primordial como presença intimamente exterior” (GUINARD-LUZ, 2011, p.185). Tratar-se-á da frustração com o real do sexo, o que pode gerar o complexo de masculinidade, deixando a mulher em posição  semelhante à mãe, tomando-a como objeto de amor.

Lacan vai mais além, repensa o caso da Jovem Homossexual e a  questão da posição sexual do sujeito, sua mais íntima relação com o atributo fálico o ter ou não ter.  Daí, uma vez identificado como aquele que tem o falo, o sujeito passa a dirigir um desafio imaginário ao pai e elege a mulher como eleição homossexual. A renúncia não se dá em todo seu sexo, pois é ao feminino que se dirige. (ARENAS, 2017, p. 184).

Já a questão da homossexualidade masculina é mais complexa, pois se  coloca em detrimento do semblante imaginário de portar o falo a atributo de grande apreço cultural que se manteve durante séculos como ordem normativa e de construção de uma sociedade diante o patriarcado. Isto é,  para se posicionar perante o Outro, o sujeito, sustentado por uma relação intensa e muito erótica com a mãe, passa a aceitar o lugar de falo da mãe, recusando a virilidade paterna. Categoriza-se assim uma espécie de fracasso da autoridade paterna. Assim o sujeito estaria salvo de uma possível castração materna, assim como uma lei paterna. (RUBISTEIN, 2007, p. 187).

Uma vez marcado pela ausência do pai, seja por divórcio ou morte, isto  poderia resultar não apenas na homossexualidade, mas também numa possível histeria masculina, conforme previsto por Freud.

Um imbróglio clínico

Ainda assim com toda a hierarquia sobre o saber da sexualidade humana, o furo entre sexual e pulsional faz o próprio Freud admitir em sua conclusão dos Três Ensaios Sexualidade um ponto do impossível:

“É verdade que nos vemos impossibilitados de esclarecer satisfatoriamente a origem da inversão a partir do material apresentado até agora, mas podemos notar que nesta indagação chegamos a um conhecimento que talvez se revele mais importante para nós do que a solução da tarefa acima. Chamou-nos a atenção que imaginávamos como demasiadamente íntima a ligação entre pulsão sexual e objeto sexual. A experiência obtida nos casos considerados anormais nos ensina que neles há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que corríamos o risco de não ver em consequência da uniformidade do quadro normal em que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto. É provável que, de início, a pulsão sexual  seja independente do seu objeto, e tampouco deve            ela sua origem nos encantos deste.”  (FREUD, 1901-1905, p. 140)

Freud parece ter encontrado algo de proporções muito maiores em sua clínica, a ponto de sofisticar  sua teoria e localizar o conceito de  bissexualidade, como reflexo especial da própria natureza na nota acrescentada dez anos mais tarde.

Outro ponto chave de abertura dá se na construção do perverso polimorfo, condição tida para toda criança  –  a pulsão há de se satisfazer parcialmente – chegando a considerar toda sexualidade como perversa e homologar o conceito universal de perversão na sexualidade de todo ser falante. A rigor, uma vez traçada a  identificação do menino fixada à mãe como premissa homossexual,  abrem-se caminhos para a independência da escolha objetal em relação ao sexo do objeto e a liberdade de dispor igualmente de ambos  objetos  (FREUD, 1901-1905, p. 137).

Mais tarde, em resposta a uma mãe americana, Freud redige uma carta sem precedentes em reposta à preocupação à sexualidade do filho:

(…)“a homossexualidade não é, imediatamente, uma vantagem, porém não há nela nada do que se envergonhar: não é um vicio nem um aviltamento e não      se poderia qualificá-la como doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual provocada por uma interrupção do desenvolvimento sexual.” (FREUD, 1935)

Ainda que a carta tenha um valor documental inestimável sobre a legitimação do desejo, lugar  pouco explorado na investigação analítica, ela abre caminho para a despatologização da homossexualidade na clínica.

Lacan também cede ao mesmo imbróglio no primeiro momento da sua clínica, por volta da década de 1950.   Ele  acreditava na cura homossexual na época que lecionava  seu seminário As formações do Inconsciente [1975-1978] e, com ressalva, admitiu não saber como fazê-la. (MILLER, 2003, p.19)

A eleição objetal na heterossexualidade, antes tida como um triunfo pulsional entra em questão. A  psicanálise mostra que é simplesmente impossível dizer o que é um homem e uma mulher. (ANSERMET, 2016, p. 145) já que o percurso antes entendido como natural sobre as sexualidades e defendido por uma teoria desenvolvimentista se mostra caracterizado pelo discurso eugênico, ou seja, aquilo que promove a criação da raça pura.

A psicanálise, com seu compromisso ético inquebrável, mais uma vez  sofistica-se  à altura do seu tempo e passa dar vazão àquilo que conhecemos hoje como  desejo.

Quais as direções clínicas?

Retomando as minhas questões iniciais sobre como conduzir a clínica da homossexualidade ante o enigma do desejo,  parece-me que o fator interpretativo é deixado de lado e passamos a mudar a abordagem da investigação subjetiva a fim de encontrarmos outras saídas. Miller faz uma intervenção preciosa e orientativa no Colóquio da École de la Cause Freudienne (ECF) em 2003, em resposta às atualidades. Em relação  ao Édipo  afirma:

“A escolha do objeto homossexual apareceu como uma falsa saída, uma saída má do Édipo. Era reescrever, em termos de lei de estrutura, o que, para os analistas, era a norma do desenvolvimento.”  (MILLER,  2003, p.19)

A clínica da libido, regida pelo simbólico e, suas identificações à luz do patriarcado traz em si uma emboscada dos sintomas que não se dissolvem pela interpretação e gozos que não cessam de se inscrever.

O Nome do Pai que antes funcionava como um agente regulador do gozo fracassa, pois há sempre um resto impossível de ser descoberto, uma vez que permissão do gozar não se altera em nada em relação à estrutura do gozo. Miller (2003) mais uma vez adverte:

“Erraríamos se congelássemos nossa clínica na eternidade da estrutura, enquanto o reconhecimento social, a demanda do Outro social, suas variações, as formas mutantes da censura social são outros fatores que condicionam tanto a clínica quanto a experiência analítica.” ( p. 17)

O fato é que deixamos de lado as questões relevantes da primeira clínica, como identificações e eleição do objeto, e partimos para a clínica do gozo, uma vez que o gozo sempre conserva uma relação com a verdade (idem, p. 20).

Na perspectiva do parlêtre, Lacan acentua que o sujeito pode responder de diversas formas à impossibilidade de escrever a relação sexual. Ou seja, há modalidades singulares para lidar com a castração e os modos de gozo.  Nos anos 1960, Lacan introduz o termo  la père-version como efeito de uma zombaria do Édipo, e revê a questão do privilégio do Nome do Pai, passando a pluralizá-lo, atualizando a clínica analítica e retirando a psicanálise de um contexto dogmático para um estatuto pragmático.

 

O que esta clínica nos ensina?

A investigação das clínicas parece abrir caminhos importantes para  pensar a relação mais intrínseca do assujeitamento às pulsões, do Outro no campo da  linguagem e de um real sem lei. Com isto, o profícuo da estratégia de trabalho analítico  consolidado através da investigação da experiência. Com Joyce somos levados ao saber fazer do sintoma ao sinthoma. Já estudiosos do autismo aproximamo-nos do troumatisme, enquanto nas psicoses à questão da insondável decisão do ser.

Pensar sobre as homossexualidades a partir do conceito do falasser me parece avançar sobre questões importantes da atualidade, tanto no que tange ao desejo, a relação com o objeto, os semblantes àquilo de real que se apresenta a um corpo pré-inscrito, cifrado e marcado pela linguagem. Ou seja, o substrato clínico sobre as homossexualidades em análise reflete uma abertura muito maior sobre a  égide da sexualidade humana, sem distinção. Para cada falasser resta o saber fazer em sua relação mais íntima com o enigma do desejo, aliado ao seu modo de gozo.


 

Obras Consultadas
ANSERMET, François. Identidade Sexual In: Scilicet: O Corpo Falante – Sobre o Inconsciente no século XXI. Rio de Janeiro. Escola Brasielira de Psicanálise, 2016.
ARENAS, Alicia. Homossexualidade Feminina. In: Scilicet dos Nomes do Pai. Opção Lacaniana, 50 (p. 184-186). São Paulo. Ed. Eolia, 2007.
CASTANET, Hervé. Homoanalizantes. Homosexuales em análisis.  Buenos Aires. Grama Ediciones, 2016.
FREUD, Sigmund. Um caso de Histeria, Três Ensaios sobre a Sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Edição Standart.  Rio de Janeiro. Imago Editora,
2006.
FREUD, Sigmund. Em carta escrita em 1935, Sigmund Freud negou  possibilidade de cura gay In: FOLHA. <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/09/1920160-em-carta-escrita-em-1935-sigmund-freud-negou-possibilidade-de-cura-gay.shtml> Acesso em 05 jan 2021.
GUINARD-LUZ, Ima. Homossexualidade feminina In: Scilicet – A Ordem Simbólica No Seculo XX Belo Horizonte.  Scriptum, 2011.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 19: … ou pior. Rio de Janeiro. Zahar, 2012.
MILLER, Jacques-Alain. Gays em análise?. Opção Lacaniana, 47. São Paulo. Ed. Eolia, 2003, p. 15-22
RUBISTEIN, Adriana M. Homossexualidade Masculina e Nome-do-Pai In, Scilicet dos Nomes do Pai. Opção Lacaniana, 50 (p. 187-190). São Paulo. Ed. Eolia, 2007.
ZBRUN, Mirta. Biblió Especial Biblió. Referências do Seminário, Livro 19… ou pior. Jaques Lacan(1971-1972). Edição bilíngue. Petrópolis. KBR, 2013.