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A função do pai: uma articulação possível

Carmen Silvia Cervelatti

 

 

Tomando “Moisés e o Monoteísmo” como texto-base e passeando em “Totem e Tabu”, “O Futuro de uma ilusão”, “Dostoievsky e o parricídio”, “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância”, “Psicologia das Massas” e “O Ego e o Id”, tenho como ponto de mira pontuar o “pai” nestes textos.

 

Desde a perspectiva totêmica, Freud desenvolve os substitutos paternos: animal totêmico (o primeiro substituto), deuses, reis, heróis, Deus único. A série continua, conforme a civilização avança. Se há substitutos paternos é graças a um “pai primeiro”, do qual dependeria todos os seus substitutos?

 

O Pai Primevo, da horda primitiva, é aquele que tinha acesso a todas as mulheres, o único a poder gozar. O acesso às mulheres só foi possível por sua morte, mas isso vai exigir algo a mais. Pôde-se constatar que o acesso à mulher não podia ser direto desde que, assim, necessariamente, o mesmo lugar teria que ser ocupado por outro, o que restituiria o pai primevo a ser assassinado. Instituiu-se então um totem e dois tabus, uma ordem social baseada em duas interdições: a do incesto e não matar o pai. Os dois tabus são resultantes do sentimento de culpa filial e correspondem aos dois desejos recalcados do Complexo de Édipo.

 

Não é sem razão que Freud afirma que o pai tornou-se mais forte morto do que vivo (Totem e Tabu). Não é senão quando se quis aceder a um gozo absoluto (o do pai primevo) que se pode aceder à sua proibição, reinstalando que a satisfação toda é impossível. O recalque primário é irreparável, insolucionável e derradeiro.

 

Para sair do animal e ir para a ordem do humano há uma “renúncia”, da ordem do “sacrifício”. Em Freud se trata da “renúncia ao instinto”, à pulsão, e, com isso um “avanço em intelectualidade”, como ele trabalha em Moisés e o Monoteísmo no que tange ao povo judeu. . É uma renúncia ao gozo incestuoso, um consentimento em perder gozo, que instala uma marca, a da castração, separando o impossível a ser alcançado daquilo que se viabiliza daí por diante – o gozo fálico. Para sempre há o degrau da diferença entre o almejável e o possível, razão do desejo aí unido à lei, razão do pai morto. Por isso Lacan, no Seminário 17, diz que Freud articula o pai primevo como um impossível, é impossível gozar de todas as mulheres, e que é a partir da morte do pai que se edifica a interdição do “gozo do objeto supremo identificado à mãe”.

 

Há dois momentos bastante evidentes no mito da ordem primeva: 1) o pai enquanto vivo, que representa o gozo absoluto e a interdição, e, 2) o pai morto, que não faz mais par perfeito com a mãe, o que põe em ato a possibilidade dos filhos exercerem uma renúncia, confirmando assim a interdição (2 tabus), o assujeitamento à castração.

 

Ao analisar os “estádios no caminho da hominização”, especificamente na sucessão da ordem matriarcal pela patriarcal, Freud é incisivo frente a paternidade: “Mas esse afastamento da mãe para o pai aponta, além disso, para uma vitória da intelectualidade sobre a sensualidade – isto é, para um avanço em civilização, já que a maternidade é provada pela evidência dos sentidos, ao passo que a paternidade é uma hipótese, baseada numa inferência e numa premissa.” (Moisés e o Monoteísmo, p.136)

 

Há uma premissa e uma inferência que lançam o pai como uma hipótese, como uma suposição, pela não evidência. Vemos que há um processo lógico implícito nesta passagem e, se pudermos passar do “quem é o pai” para “que é o pai” podemos extrair algumas conseqüências.

 

Uma premissa é um “fato ou princípio que serve de base a um raciocínio”. Se o pai primitivo, da horda primeva, era o único a poder gozar de todas as mulheres, então ele é da ordem da exceção: existe um que pode, à exceção dos outros. Na medida em que está morto ratifica esta mesma posição. Com Lacan temos as fórmulas da sexuação que indicam o modo com que cada sujeito se inscreve do lado homem ou do lado mulher. Do lado Homem:

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Na fórmula de cima Lacan também localiza o necessário, uma das categorias modais, que é a proposição particular negativa. Na de baixo se localiza o possível , é a universal positiva. Assim podemos ler a indução: os homens só podem afirmar a universalidade da castração, que todos são sujeitos à função fálica desde que haja uma particular que a negue. Por isso a de cima é da ordem de uma necessidade lógica, sem essa não aquela, e, mais ainda, é só pelo possível da universalidade dos homens se inscreverem como fálicos (“x fx) e do contingente da mulher não-toda submetida à função fálica (quer nega o quantificador desta última fórmula), que se deduz esse princípio: de que existe ao menos um que nega a função fálica.

 

Desde o início de seu ensino Lacan nunca deixou de mostrar que Freud responde à questão: o que é um Pai? com o pai morto. O pai freudiano é o pai morto, retomado por Lacan como Nome-do-Pai (Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano). Pai morto articulado nos dois mitos freudianos: o pai da horda primeva e o pai do complexo de Édipo.

 

Para aquilo que não é mito, que vai além do mito, encontramos em Freud o complexo de castração, mola mestra do sujeito na psicanálise, eixo estrutural do sujeito dividido.

 

A castração marca a interdição, é da ordem do sacrifício. Tendo como contexto a via do mito da horda primeva naquilo que viabiliza a estrutura, como é o caso neste texto, podemos notar que o fato dos filhos não poderem aceder às mulheres num primeiro momento hipotético isso não indica necessariamente que eles seriam, dali por diante, castrados, apesar da lei já circular. Com o assassinato do pai fizeram um acordo, uma hipotética ordem social, um funcionamento viável ao instituir os dois tabus, de onde se deduz que algo passou pela subjetividade, cada um pôde assim renunciar e  consentir em perda, se submetendo à interdição. Aqui encontramos a função do pai como agente da castração, o pai não é o castrador e sim agente da castração, tendo a castração como enunciado de uma interdição.

 

Na Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano  encontramos a famosa frase de Lacan: “A castração quer dizer que é preciso que o gozo seja recusado para que ele possa ser atingido sobre a escala invertida da Lei do desejo.” (Escritos, p.310, Ed. Perspectiva). Nesta mesma página também encontramos que a castração é “o que rege o desejo”.

 

Desde que sujeito falante, dividido pelo acesso à ordem simbólica, desde que não mais animal e sim pertencente à ordem humana (no dizer de Freud), esse passo fundamental implica que o gozo absoluto foi recusado para poder se inscrever na lei do desejo, e qual o gozo possível? Gozo fálico para o conjunto dos homens e gozo fálico e  Outro gozo para uma mulher, sujeitos desejantes graças à castração e inscritos na sexualidade pela escolha do objeto sexual.

 

Artigo publicado na Carta de S.Paulo n. 22 – Abr-maio/97